sábado, 24 de janeiro de 2009

A falta que ela não me faz


Não sinto falta da máquina de escrever. Nunca cheguei a usar uma para fins utilitários. Em criança eu às vezes teclava algumas frases numa máquina velha da secretaria da escola onde minha mãe era inspetora de alunos. Mas nunca cheguei a compor um texto completo. Para mim era só mais um brinquedo. Dotado de atrativos, sem dúvida, como o tac-tac das letras formando-se no papel e o contato dos dedos com as teclas, que o computador também proporciona.

Todavia sempre me pego imaginando grandes escritores tecendo suas obras em máquinas pequenas ou enormes, feias ou bonitas. Lembro a foto de Clarice Lispector com sua máquina no colo, e imagino a relação de amor e ódio que Clarice vivia com seu equipamento de trabalho, por meio do qual materializava seu pensamento sempre além das palavras.

Horas e mais horas a teclar. Fumando ou bebendo. Sendo interrompidos muitas ou poucas vezes. Assim como também havia os que por opção trabalhavam isolados do resto do mundo e não eram interrompidos nunca. Garcia Márquez em sua água-furtada em Bogotá (?), dando vida aos Buendía em “Cem anos de Solidão”; Érico Veríssimo fechado num quartinho em algum canto do sul do Brasil, traçando o destino de um certo Capitão Rodrigo, e tantos outros.

E ao imagina-los escrevendo, é como se eu estivesse lá, ao lado deles, quando de seus momentos de maior entrega. Vendo Guimarães Rosa travando um verdadeiro duelo com sua máquina de escrever para preencher as tantas laudas do “Grande Sertão: Veredas”. Cavalgando por desertos e paragens mineiras reais ou fantasiosas, acompanhado de Riobaldo e dos outros jagunços, léguas e mais léguas “sem topar com casa de morador.” Após a pausa para o cafezinho, outros rumos, verbos, adjetivos. Ajeitando o papel, trocando a fita, sem jamais perder os filamentos da estória.

Ponho-me no lugar dos autores estreantes, em busca do tom e das palavras certas. A ansiedade dos novatos e o forte bater dos dedos nas teclas, como se assim o texto adquirisse uma densidade maior. Com pressa de chegar logo ao fim da estória para poder soltar o “filho” no mundo, deixar que vá, que encontre seus leitores abrindo caminho por entre preconceitos e recusas de toda sorte.

E penso ainda naqueles que trocaram suas máquinas por computadores. Como devem ter sofrido. Ou será que sofriam mais antigamente, com equipamentos obsoletos e toscos? Não sei. Acho que há os que sofreram e os que comemoraram o advento da informática. Como também há os que ainda escrevem à máquina e os que escrevem à mão. Que preferem ignorar esses objetos cômodos porém pouco confiáveis que são os computadores. Eu mesmo - como bom cidadão do século XXI - não confio nenhum pouco neles. Mas até que demorei a aprender a lição. Tive primeiro que amargar a perda de vários escritos próprios – contos, crônicas, poemas, trabalhos acadêmicos etc. – para então passar a me precaver contra eventuais falhas e danos causados por esse ser astuto e diabólico que atende pela alcunha de Vírus, e que fez com que eu me sentisse tão mal quanto o velho Hemingway, na ocasião em que sua esposa Hadley, numa viagem de trem à Suíça, perdeu um baú com vários contos que o marido escrevera durante anos, e que os leitores jamais conhecemos.

Mesmo saudoso dos momentos de intensa criação que grandes escritores viveram com seus equipamentos de trabalho, tenho de admitir que, embora o computador muitas vezes suscite ódio e desprezo de minha parte, não sinto falta da máquina de escrever. Acho-as charmosas. Mas também as encaro como símbolo indelével de burocracia. E basta-me passar em frente a algum escritório e escutar um ruidoso tac-tac para que se avive em mim um profundo desprezo pelo estabelecimento.

20/08/2006

2 comentários:

  1. Muito legal seu blog!!!
    Qnt a máquina, eu também já tive emu flerte com ela.
    Porém eu sou uma mulher grande, com mãos grandes.
    Essas mãos grandes faziam com que eu sempre teclasse errado nela.
    E a máquina de escrever sempre foi limitada qnto a erros.
    Tem que ser mto bom e com uma otima coordenação motora pra escrever nela.
    Não é o meu caso.

    ResponderExcluir
  2. Oi, Juju.

    Obrigado pela visita e pelos elogios.

    Quando eu era garoto, as máquinas de escrever me causavam um certo fascínio, talvez porque eu não soubesse utilizá-las e invejasse os que sabiam. Agora isso passou. Gosto de ver esses objetos apenas em filmes. Aliás, no filme "Mistérios e Paixões" há uma máquina de escrever bastante singular: ela tem o formato de um besouro.

    Um abraço. E apareça quando quiser.

    ResponderExcluir