sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Diário de um chimpanzé (III)

Bem ou mal, ele está no jogo. I’m in, reporta o agente secreto ao chefe da missão. O chimpanzé doido continua a dar corda no músculo cardíaco precocemente debilitado. Periga rebentarem-se as frágeis estruturas do órgão. Ele se levanta do banco onde tentara relaxar debalde. A recepcionista morena (sim, ela é morena e bonitinha) segue lixando as unhas pontudas e pintadas de roxo. Com licença. Não; ele não diz isso porque não estamos num filme americano dublado. Diz: obrigado. E se encaminha à sala estanque do dono dos porcos (a expressão é do pai). À esquerda do corredor que desemboca no escritório do chefe, um grupo de funcionárias do setor administrativo grasna sem parar. Quase não é possível ouvir o que dizem aos berros porque, além das vozes agudas se anularem umas às outras, o tapume que separa o departamento do corredor produz um certo isolamento acústico. Ele sente uma vontade quase irrefreável de permanecer parado no meio do corredor, tentando captar e entender o que aquelas mulheres conversam. Mas faz um esforço para não dispersar sua atenção, que deve estar totalmente voltada para a entrevista que terá lugar dentro de instantes. Respira fundo, ajeita a camisa dentro da calça, tateia os cabelos ralos. Bate três vezes na porta. Entre, por favor, responde a voz do outro lado. E agora sim ele diz com licença, como num filme americano dublado. Postado atrás de uma mesa simples de madeira escura, o entrevistador, um senhor na casa dos 70, de aparência saudável, bem vestido, e com duas discretas bolsas de gordura sob os olhos castanhos denotando abatimento, aponta a cadeira para que o candidato se acomode. Apertam-se as mãos. Uma vez sentados, encaram-se taciturnos e assim permanecem por alguns segundos, como num jogo infantil em que dois adversários medem forças para ver quem consegue sustentar o olhar por mais tempo. A mesa está abarrotada de blocos de notas, faturas, calendários, porta-retratos, porta-lápis, celulares e calculadoras. Um relógio retangular com o logotipo da loja e um pôster do Palmeiras guarnecem a parede atrás da mesa. À direita, há uma estante repleta de arquivos, e à esquerda um frigobar e um sofá bege de dois lugares, rente à varanda cuja vista não chega a ser exatamente enaltecedora.

- Gostei muito do seu currículo. Não entendo por que você não conseguiu uma colocação até hoje. Você está com quantos anos mesmo? – e põe-se a examinar a folha bem diante dos olhos.

- Vinte e quantro!?

- Isso.

- E sua única experiência foi como estagiário!?

Ele responde que sim e passa a fornecer detalhes sobre o estágio. Apesar do indisfarçável ar de enfado, o dono dos porcos quer saber mais a seu respeito. Pergunta se mora com os pais, no que eles trabalham, quantos irmãos tem.

- Em que setor você gostaria de trabalhar?

Perguntinha cavilosa. À qual ele responde não sem titubear.

- No setor que for mais conveniente... E sabendo que precisa ser mais específico: Com sinceridade, eu não me vejo trabalhando na linha de frente; os bastidores me caem melhor. Mas não fujo aos desafios. Estou pronto a assumir com responsabilidade e dedicação a função que o senhor me confiar.

Não deu pra aferir o efeito que sua retórica abobalhada causou no entrevistador, pois a campainha do telefone soou em seguida. Ele aproveitou os dois ou três minutos que o homem ficou ao telefone para pensar no que poderia dizer para salvar a entrevista. Não lhe ocorreu nada. Dissera o que achara fundamental: tinha conhecimento disso e daquilo, disposição para contribuir e aprender; o pai estava desempregado, as contas se acumulavam, o irmão pequeno...

- Muito bem. Como eu já disse, gostei do seu currículo. Agora, no começo do ano, há sempre remanejamentos, reestruturações etc. etc. Eu vou conversar com a chefe do RH para ver se consigo encaixá-lo à equipe, provavelmente no setor administrativo. O.k.?

- O.k.

Levantam-se e trocam outro aperto de mão.

- Em breve entraremos em contato para darmos um parecer definitivo. Foi um prazer conhecê-lo, garoto – diz o dono dos porcos.

- O prazer foi meu. Obrigado pela sua atenção. Tenha um bom dia.

Ele deixa a sala amargando a derrota que lhe pareceu tão palpável quanto qualquer um dos inúmeros objetos que atulhavam a mesa de madeira escura do entrevistador. A equipe de mulheres do setor administrativo continuava a grasnar. Ao passar pela recepção, agradeceu novamente a mocinha das unhas roxas e ato contínuo ganhou a rua.
***
Louis Armstrong interpretando La vie en rose num clipe da animação Wall-E, um dos filmes mais apaixonantes do ano passado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário