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domingo, 11 de dezembro de 2011

Crack


As brigas de ontem
ecoando hoje
A última briga

Tantas palavras
usadas para um único fim:
                                    [ferir.

E no entanto
sempre foi  com palavras
que tentamos evitar as feridas
que sempre deixaram
cicatrizes hediondas.

Nunca foi pelo dinheiro
Nem pelo ciúme
O carro batido
Bicicleta furtada
Um chute
Um vexame

Nunca pelos objetos quebrados
Empurrões cuspidas hematomas
Aquário partido
Televisor partido
A morte dos peixes
O tédio

Aquilo que sempre implodiu
qualquer possibilidade de diálogo
Que só gera desamor

Câncer
Lepra
Lupus
Gastrite

Que cerra os dentes
E não deixa dormir
Que faz os beijos mais ternos
Sangrarem
Que se alimenta de nossa incapacidade
Que fede a álcool
[O vício]
Mas não é lúbrico

Que faz o menino e o homem
Desejar nunca ter nascido
Aquilo que tem cura
E grassa desordenado
Letal e obsceno
À luz do dia
e à noite

Como uma epidemia
De crack.

domingo, 10 de julho de 2011

Ivan Ilitchi está morrendo


Ivan Ilitch via que estava morrendo e desesperava-se.

No fundo do coração sabia que estava indo embora e, longe de acostumar-se com a idéia, simplesmente não conseguia entendê-la.

O exemplo de um silogismo que aprendera na Lógica de Kiezewetter, “Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal”, parecera-lhe a vida toda muito lógico e natural se aplicado a Caio, mas certamente não quando aplicado a ele próprio. Que Caio, ser abstrato, fosse mortal estava absolutamente correto, mas era não era Caio, nem um ser abstrato. Não: havia sido a vida toda um ser único, especial. Fora o pequeno Vanya, com mamãe e papai Mita e Volodya, com brinquedos e um tutor e uma babá; e mais tarde com Kátia e todas as alegrias e prazeres da infância, da adolescência e da juventude. O que sabia Caio do cheiro da bola de couro de que Vanya tanto gostava? Por acaso era Caio quem beijava a mão de sua mãe e escutava o suave barulho da seda de suas saias? Foi por acaso Caio quem se envolveu em protestos quando estudante de Direito? Foi Caio quem se apaixonou? Quem presidiu sessões como ele?

E Caio certamente era mortal e era mais do que justo que morresse, mas ele, o pequeno Vanya, o Ivan Ilitch, com todos os seus pensamentos e emoções, é completamente diferente. Não pode ser verdade, isso seria terrível demais.

Era assim que se sentia por dentro.

“Se eu tinha que morrer assim como Caio, deveriam ter me avisado antes. Uma voz dentro de mim desde o início deveria ter-me dito que seria assim. Mas não havia nada em mim que indicasse isso; eu e todos os meus amigos sabíamos que no nosso caso seria diferente. E eis que agora... Não... não pode ser e no entanto é assim! Como entender isso?”

Trecho de “A Morte de Ivan Ilitch”, de Leon Tolstoi.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Inspiração

Sentado à mesa da cozinha, esperando a água do chá ferver, Vladimir foi arrebatado por uma idéia genial para um romance, que nasceu bem atrás do olho esquerdo e, grandiosa, logo se espalhou por toda a cabeça. Foram cerca de quarenta segundos de uma deliciosa euforia que terminou com o escritor tombando no chão frio. Incomodada com o zunido da chaleira, sua mulher acorreu à cozinha e pôde socorrê-lo. No hospital, após uma bateria de exames, o médico deu o diagnóstico: AVC. “Querida, você trouxe meu bloco de notas?”, indagou um débil Vladimir no leito da UTI, segurando com firmeza a mão da esposa.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Elas pareciam muito estranhas, sorriam e conversavam e eram felizes.

Foi no jardim de infância que conheci as primeiras crianças da minha idade. Elas pareciam muito estranhas, sorriam e conversavam e eram felizes. Não gostei delas. Sempre me sentia enjoado e o ar tinha um aspecto estranhamente calmo e puro. Pintávamos com tinta guache. Plantávamos sementes de rabanete no jardim e algumas semanas mais tarde os comíamos com sal. Gostava da senhora que ensinava no jardim de infância, gostava mais dela que dos meus pais. Um problema que eu enfrentava era ir ao banheiro. Estava sempre apertado, mas tinha vergonha de deixar os outros saberem da minha necessidade. Assim, eu segurava. Era realmente terrível conter a vontade. E o ar estava puro, e eu sentia vontade de vomitar, vontade de cagar e de mijar, mas não dizia nada. E quando algumas das outras crianças voltavam do banheiro, eu pensava: vocês estão sujas, vocês fizeram algo lá dentro...

As garotinhas eram bacanas em seus vestidos curtos, com seus cabelos longos e seus belos olhos, mas eu pensava, elas também fazem as coisas lá dentro, mesmo que finjam que não.

O jardim de infância era em grande parte constituído de ar puro...

(Trecho de "Misto-quente", de Charles Bukoski. Tradução de Pedro Gonzaga. L&PM Pocket - 316 páginas.)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A juventude do artista

O problema dele é que não está preparado para fracassar. Quer um A ou um alfa ou cem por cento em todas as tentativas, e um grande Excelente! na margem. Ridículo! Infantil! Ninguém precisa lhe dizer isso: pode ver por si próprio. Mesmo assim. Mesmo assim não pode agir. Não hoje. Talvez amanhã. Talvez amanha tenha vontade, tenha coragem.

Se fosse uma pessoa mais cálida, sem dúvida acharia tudo mais fácil: a vida, o amor, a poesia. Mas não há calor em sua natureza. E não é o calor que leva a escrever poesia. Rimbaud não era cálido. Baudelaire não era cálido. Quente, sim, mas era preciso – quente na vida, quente no amor -, mas não cálido. Ele também é capaz de ser quente, não deixou de acreditar nisso. Mas no momento, no momento indefinido, ele é frio: frio, congelado.

E qual o desfecho dessa falta de calor, dessa falta de coração? O desfecho é que está sentado sozinho na tarde de domingo no quarto de cima de uma casa no fundo do campo de Berkshire, com corvos crocitando no campo e uma névoa cinzenta no céu, jogando xadrez sozinho, ficando velho, esperando a noite cair para, sem nenhuma culpa, fritar suas lingüiças para comer com pão no jantar. Aos dezoito anos, podia ter sido um poeta. Agora não é um poeta, nem um escritor, nem um artista. É um programador de computador, um programador de computador de vinte e quatro anos num mundo em que não existe programadores de computador de trinta anos. Trinta é velho demais para ser programador; a pessoa se volta para alguma outra coisa – algum tipo de empresariado – ou se mata. Só porque é jovem, porque os neurônios em seu cérebro ainda estão disparando mais ou menos infalivelmente, é que tem um pé na indústria de computadores britânica, na sociedade britânica, na Grã-bretanha em si. Ele e Ganapathy são dois lados da mesma moeda: Ganapathy morrendo de fome não porque está separado da Mãe Índia, mas porque não come direito, porque apesar de seu mestrado em ciência da computação não sabe nada sobre vitaminas, minerais e aminoácidos; e se trancou num fim de jogo debilitador, jogando consigo mesmo, a cada lance mais encurralado, mais derrotado. Um dia desses, os homens da ambulância terão de ir ao apartamento de Ganapathy e tirá-lo de lá numa maca com um cobertor em cima da cara. Depois de levar Ganapathy, podiam vir buscá-lo também.


Trecho final do romance Juventude, de J. M. Coetzee.

sábado, 13 de novembro de 2010

Um Deus das pequenas e das grandes causas

São raras as vezes em que penso em Deus. Apesar disso, tenho um fundo religioso, uma ânsia de religião. Queria me convencer de que definitivamente tenho uma definição de Deus, um conceito de Deus. Mas não tenho nada semelhante. São raras as vezes em que penso em Deus, pelo simples fato de que o problema me excede tão demasiada e soberanamente, que chega a me provocar uma espécie de pânico, uma debandada geral de minha lucidez e de minha razão. “Deus é a totalidade/’, diz Avellaneda com freqüência. “Deus é a Essência de tudo”, diz Aníbal, “o que mantém tudo em equilíbrio, em harmonia, Deus é a Grande Coerência. Sou capaz de entender uma e outra definição, mas nem uma nem outra são a minha definição. É provável que eles estejam no caminho certo, mas não é desse Deus que necessito. Necessito de um Deus com quem conversar, um Deus em quem possa buscar amparo, um Deus que responda aos meus questionamentos, que suporte as metralhadas das minhas dúvidas. Se Deus é a Totalidade, a Grande Coerência, se Deus não é mais que a energia que mantém vivo o Universo, se é algo tão incomensuravelmente infinito, que importância posso ter para Ele, um átomo tão precariamente alçado a um insignificante piolho de seu Reino? Não me importa ser um átomo do último piolho de seu Reino, mas me importa que Deus esteja ao meu alcance, me importa poder agarrá-lo, não com minhas mãos, claro, nem sequer com meu raciocínio. Importa agarrá-lo com meu coração.

Trecho do romance A Trégua, do uruguaio Mario Benedetti.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Lendo-endo-endo

Não sei por que (cinismo!), mas quando encontro velhos amigos eles sempre me perguntam o que estou lendo no momento. Ninguém fala do “meu tricolor”, nem pergunta se fui ao show da dupla sertaneja ou do grupo de pagode da atualidade no último domingo, nem se tenho feito exercícios físicos com regularidade, nem se tenho ido à igreja, nem se casei ou tenho procriado por aí. Querem apenas saber o que estou lendo.

Pois bem. Para os que vivem querendo saber que livros jazem à minha cabeceira, aí vai:

Comarc McCarthy e Philip Roth – Dois dos maiores – se não OS MAIORES – romancistas americanos contemporâneos. Do primeiro, estou lendo "Todos os Belos Cavalos”, estória de meninos-rancheiros, haciendas mexicanas, e, claro, cavalos, muitos cavalos. (Aliás, o título, “All The Pretty Horses”, me é caro porque considero o cavalo uma das mais belas e fascinantes criações da natureza. Posso não saber montar e não entender bulhufas de eqüinos, mas não há como ignorar a força e o porte magnífico dessa espécie.) McCarthy é preciso nas descrições, usa poucos adjetivos, “abusa” da conjunção “e” em muitas sentenças, tornando-as mais longas e fluidas, além de ser bastante hábil na construção dos diálogos. O narrador em terceira pessoa atém-se o tempo todo aos fatos, à superfície dos corpos, aos gestos. Os sentimentos e pensamentos das personagens nunca são revelados; estamos distante do campo do “fluxo de consciência” à James Joyce, por exemplo.

Não seria descabido considerar “Todos os Belos Cavalos” um road novel, já que boa parte dos acontecimentos se dá na estrada – com a diferença de que o meio de transporte utilizado é o cavalo, e não o automóvel.

Para leitores citadinos, a trama e a ambientação rural do romance podem até soar enfadonhas, mas é praticamente impossível não admirar a boa e sofisticada prosa de Comarc McCarthy.

***

A Humilhação: Trigésimo livro do profícuo Philip Roth, que costuma lançar um livro por ano. O tema desta novela curta (são aproximadamente 100 páginas) é o talento. Um famoso ator sexagenário enfrenta uma grave crise pessoal e profissional: é abandonado pela mulher, sofre com terríveis dores na coluna, e se vê incapacitado de atuar de repente.

Privado de seu talento, o protagonista mergulha numa depressão profunda, que o leva a se internar numa clínica psiquiátrica. Após um breve período de internação, ele retorna para casa e se fecha para o mundo. Mesmo os apelos do agente e melhor amigo para que volte a trabalhar são inúteis. Ele se convence de que está irremediavelmente arruinado e de que nada de inspirador pode voltar a acontecer consigo. Até o dia em que uma mulher vinte e cinco anos mais jovem do que ele entra sorrateiramente em sua vida.

Roth é um mestre da narrativa longa. Seu texto é conciso e elegante. Sua capacidade de criar personagens complexos e de expor suas aflições de modo claro e original é rara. Poucos escritores atuais possuem uma verve narrativa tão vigorosa quanto a sua. E embora este “A Humilhação” não traga o melhor de seu talento, é sem dúvida um deleite para os apreciadores da boa literatura.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Escrever: velhos esboços

Encontrei essas notas avulsas em velhas cadernetas e resolvi publicá-las aqui. Com exceção de um ou outro pensamento tolo, e de algumas platitudes dispensáveis, não me envergonho dessas linhas. Elas são um testemunho da minha “adolescência estrangulada”, e um prelúdio do que seria o início da minha vida adulta.

“Escrevo. E ao fazê-lo é como se reconstituísse os filamentos de meu coração doente”.
* * *
“O ato de escrever é essencialmente um ato solitário, e isso, de certo modo, agride as pessoas. Não as culpo. Pelo contrário. Encaro sua hostilidade com ares de resignação. Afinal de contas, ninguém é obrigado a aceitar a loucura dos outros. Eu mesmo às vezes me pego olhando para uma atividade alheia de modo preconceituoso, sem que a pessoa em questão tenha feito algo de ruim para me atingir. Portanto não posso ser agressivo com quem não suporta me ver escrevendo. Escrever é nadar contra a maré, e quando se nada contra a maré, há sempre alguém disposto a nos fazer voltar atrás – a impedir que nos afoguemos”.

* * *
“Hoje, enquanto esperava pela chegada de pães frescos no supermercado, pensei em como não sou uma pessoa difícil, mas como também não sou fácil. Sou raso de tão profundo. É isso! Ou melhor: De tão profundo, chego a ser raso. Sei lá! Dá na mesma! Tudo o que eu escrever aqui deporá contra mim mais tarde. Portanto tenho de tomar cuidado. Mas não pretendo bancar o covarde. Minha cabeça funciona sem parar – a mil por hora, para empregar um clichê. (Vou fechar a janela porque os pernilongos estão invadindo o quarto.) Pronto. Eu dizia que sou raso de tão profundo, e que meus pensamentos me obsedam. Principalmente meu medo da morte. A sensação de que a morte me cerca causa-me pavor. Vou usar de outro chavão gigantesco: Sou jovem demais pra morrer velho. Ou seria o contrário? E escrever? Escrever é viver, ou é uma maneira bem estúpida de fugir à vida? Eu sinceramente não sei. Só sei que preciso me manter atento, para não me calar de uma vez por todas. Isso seria muito ruim. Também preciso cuidar para não me viciar em diários. Diários me assustam. Diários me parecem invariavelmente um ato desesperado. Morte aos diários!”
* * *
“Tenho escrito algumas linhas bobocas no computador e esporadicamente a lápis, em papéis avulsos. Ora delas resultam contos, ora lamentos quase insuportáveis, de tão melancólicos. Alguns escritos eu tenho preservado para análise posterior, as quais me permitirão saber se de fato o que escrevi é aproveitável ou simplesmente um lixo completo. Se bem que até hoje não possuo juízo formado sobre contos que escrevi há três, quatro anos atrás. (Aliás, a expressão “há tantos anos atrás” me parece caracterizar um pleonasmo, mas uso-a assim mesmo, pois às vezes ela se faz necessária para dar ênfase à passagem do tempo).

Encher uma página de palavras sempre me dá prazer, ainda que o texto seja uma porcaria. Esse vício, contudo, é extremamente prejudicial a qualquer pessoa que queira escrever bem, pois ajuda a tornar o redator mais relapso e, conseqüentemente, menos criterioso com seus próprios escritos.

Eu também já escrevi em outro lugar que a pior parte do trabalho de um escritor é reler o que escreveu. Isso pode destruir carreiras se o sujeito não possuir o mínimo de jogo de cintura. Tenho feito o seguinte: procuro não ler um texto imediatamente após sua composição, para me preservar de uma eventual “depressão pós-parto”. Isso geralmente funciona, a não ser que o texto seja deveras ruim. Então só volto a minha cria horas, dias, ou semanas depois, sempre lutando contra um impulso natural de querer retomar o fruto engendrado o mais rápido possível. Essa luta é também contra minha ansiedade crônica, que me prejudica até quando estou em pleno processo criativo. Levando isso em conta, acredito que a ansiedade não me auxilia em absolutamente nada, muito menos quando estou compondo um texto literário - ao contrário do que afirmei em um de meus relatos de há não muitos dias”.

* * *
“Clarisse Lispector dizia que nunca relia seus textos depois de prontos, pois quando o fazia sempre sentia nojo; nunca achava que estava bom. Mas eu não sou Clarisse Lispector. Não há comparação possível. Clarisse era um talento nato e irrefreável. Por mais que lhe colocassem amarras, ela continuava a criar maravilhosamente. Já eu duvido do meu talento diariamente. Tenho medo de dar com os burros n’água, e quem tem medo não consegue escrever – a própria Clarisse repetia isso aos jovens escritores que lhe pediam uma opinião a respeito do trabalho deles. Com medo não há literatura. Literatura alguma brota no campo infértil do medo. É preciso libertar-se dos próprios medos e limitações de quaisquer espécies para poder fazer boa literatura. E eu não sei se estou preparado para isso. Escrever sobre a incapacidade de escrever também não me interessa. Muitos grandes autores já o fizeram com maestria. John Fante, com “Pergunte ao Pó”, e Fernando Sabino, com “O Encontro Marcado”, para citar dois exemplos totalmente díspares. Se bem que boa parte da Literatura é composta de reiteração, de releituras e de intertextualidade. Enfim, Literatura é conhecimento ao contrário – é chão repisado sem propósito”.

domingo, 28 de março de 2010

Olhos Castrados

Para os outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o grito do galo ou ao ouvirem o céu estrelado. Em geral, apreciam os “prazeres da carne”, na condição de que sejam insossos.

(Trecho de História do Olho, de Georges Bataille.)

***
Sonho nº 12

Como de hábito, eu tinha passado as dezoito horas em que me mantivera acordado em constante conflito comigo mesmo. Naquela noite, o sono me engolfou por volta das quinze para as duas, depois de eu ter ficado meia hora pensando em como fazia tão pouco tempo que eu não adormecia sem antes me persignar e agradecer a Deus pelo meu bem-estar e o de meus familiares. Aos quatorze anos, eu era um menino temente a Deus, que sofria de insônia, e só se apaixonava por “garotas problemáticas”. Hoje não bendigo nem maldigo Deus nem o diabo, alterno noites de insônia crônica com períodos de folgada hibernação, e procuro sempre renovar meu amor pela mesma mulher: aquela que criei para mim mesmo tão-logo me vi envolvido pelas coisas do amor e do sexo (e da morte, claro!) há mais ou menos vinte anos.

Foi com essa mulher que sonhei aquela noite. Era então apenas uma amiga que tinha pudor em chorar apoiada em meus ombros. Eu era seu confessor mais fiel. E o mais que ela sabia sobre mim era que eu disfarçava minha solidão – mal e porcamente, ressalte-se – enviando mensagens de esperança e de adeus em garrafas de cerveja para ninguém. No sonho eu me negava a admitir que estava irremediavelmente apaixonado por ela. Para não correr o risco de ser desnudado pela força arrebatadora do seu olhar, eu tentava me manter o mais distante possível do seu campo de visão. Às vezes baixava a guarda e era surpreendido por uma investida sua que, por mais que eu relutasse em aceitar, acabava por extrair de mim revelações que só viriam à tona em sonhos ou em pesadelos febricitantes. Nossos momentos de maior intimidade se davam quando ela chorava e dizia desconhecer o cerne de sua dor. E o mais próximos que chegávamos da lubricidade era quando nos entregávamos desvairadamente à nossa idiotia galhofeira que nos provia de imensos e prazerosos risos.

Certo dia ela desapareceu resguardada pela neblina do sonho. E, para minha surpresa, seus amigos mais próximos me atiraram pedras. Diziam que eu só podia ser cego para não perceber que ela se afastara porque sentia que eu nunca corresponderia a seus anseios de mulher apaixonada. Fiquei furioso. Arranquei meu coração à unha e o guardei dentro de uma gaveta. Ela nunca mais voltou. E eu simplesmente acordei.

sábado, 20 de março de 2010

Aparições

"Desde sempre, dormíamos cada irmão em seu quarto. Cumpri o dever de ser homem e deitei-me sozinho (...) Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava."


(Trecho do romance Aparição, do português Vergílio Ferreira)

***

Sonho nº 3

Ontem sonhei com Isabela Rosselini e perdi a hora para o trabalho. Encontrei-a numa festa de amigos comuns e pus-me a falar de minha admiração por ela desbragadamente. Era uma reunião íntima num apartamento modesto porém aconchegante, e - absurdo dos absurdos - os anfitriões eram seres sem rosto. Isabela foi gentil e atenciosa, mas parecia não compreender muito bem meu inglês middle brown. Descrevi o quanto seu trabalho me afetara em filmes como Veludo Azul e Amantes, por exemplo, enquanto bebíamos uma garrafa de vinho branco. Tamanho era meu entusiasmo ao falar de como suas performances em determinadas cenas eram de uma beleza quase etérea que me levava às lágrimas (ref. A cena da despedida com Joaquim Phoenix, na escada do prédio, em Amantes), que a certa altura Isabela pareceu descrer de minha sinceridade. Mas não havia a menor mossa de cinismo em minha postura, tudo o que eu desejava era dizer à Isabela o quanto eu a amo; o quanto admiro sua beleza clássica e seu domínio dos silêncios em cena. Eu bem que tentei transmitir isso a ela e acho que não me saí muito bem porque, sempre cortês e sensual, ela sorria e dizia oh, thank you! Kind of you, dear! Até que seu marido apareceu para apanhá-la. Assim que o vi pensei: esse sujeito não me é estranho, apesar de seu rosto estar oculto por uma esfera branca e lisa, tal qual os dos donos do apartamento. E mal o casal se despediu, eu acordei com o berro do meu celular. Era meu patrão, que, furioso, me chamava à responsabilidade.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Highsmith-Dickinson-Skylab



A escritora americana Patricia Highsmith (1921-1995), criadora da série de romances policiais do personagem Ripley, em foto dos anos 40.



Existe um árido prazer
Que da alegria difere
Como o gelo, do rocio -
Embora o mesmo elemento sejam.

Para a flor, o orvalho é festa,
e a geada é desprazer -
O mais fino mel congelado
Não tem valor para a abelha.

(Emily Dickinson, in Poemas escolhidos, 2008, L&PM)



Rogério Skylab canta "La mer", este segundo hino francês, de Charles Trénet.


domingo, 21 de fevereiro de 2010

Entrevista com o livreiro

O jornal Folha de S. Paulo publicou na edição de hoje uma ótima entrevista com Paulo Herz, dona da Livraria Cultura. Nela, o livreiro discorre, entre outros assuntos, sobre o futuro do livro, o problema da falta de leitores no país, e como a recente crise econômica mundial não afetou seus negócios.

Abaixo, reproduzo algumas declarações de Herz que chamaram minha atenção:

A novidade dos e-readers

“Em março vamos disponibilizar 150 mil títulos em formatos para e-readers. Eu acho que é uma opção a mais para o leitor. Não vamos vender o hardware, só conteúdo.”

O futuro dos e-readers

“Não sei bem, está tudo muito cru, muito no início, e não sei bem como serão as vendas. Acho que bem pequenas.

“Acho o e-reader uma ferramenta fantástica, mas daí a virar o substituto do livro... Já vi esse filme antes, já vi o VHS chegar e dizer que ia acabar com o cinema. Já vi, na Feira de Frankfurt, dizerem que o mundo ia virar CD-ROM, e o mundo não virou CD-ROM. Dois anos depois não se falava nisso, as editoras me falavam: "Pô, perdemos um dinheirão, admitimos um monte de gente e não deu em nada". A sensação que eu tenho é que a gente está vendo uma nuvem, que vai passar. Pode ser que chova, mas, num curto prazo, não vai acontecer nada.”

E-reader x livro de papel

“Imagina um advogado que vai fazer uma audiência no Acre e tem que levar aquela papelada do processo. Um editor de uma grande editora de livros, que recebe 50 livros novos por semana de todo mundo, para resolver se vai publicar ou não, ter isso digitalizado e num voo de 12 horas para a Europa ir dando uma olhada no que interessa ou não. É de uma utilidade fantástica, mas não sei se é a melhor ferramenta para o leitor de livros. E tem outra pergunta que eu faço: fará novos leitores? Quem não lê livro de papel, não vai passar a ler por causa do livro eletrônico.”

A formação de leitores

Acredito que quem faz leitor são os pais, inegavelmente. Os jovens leitores são filhos de leitores. Dificilmente aparece uma criança ou adolescente que não tenha os pais leitores. A grande campanha que na minha opinião deveria ser feita pelo governo é mais ou menos assim: "Se você não lê, como quer que seu filho leia?". Essa é a pergunta que deve ser feita. Porque os meus filhos "liam" sem ser alfabetizados, pegavam o livro na mão para imitar os meus gestos.

O faturamento da livraria

Segundo informações do repórter Fábio Victor, a Livraria Cultura possui atualmente 5 lojas (cinco em São Paulo e as outras em Campinas, Recife, Porto Alegre e Brasília), e pretende inaugurar mais três em 2010: em Salvador, Fortaleza e uma segunda na capital federal.

A rede tem mais de 3 milhões de títulos em catálogo e 1.400 funcionários (serão mais 400 para as três novas lojas). Em 2009, obteve faturamento de R$ 274 milhões, crescimento de 18% em relação a 2008.

“As vendas pela internet representam 16% do faturamento em 2009. É a nossa segunda loja. A primeira é a da Paulista (...) [No período mais grave da crise, entre 2008 e 2009] Nós crescemos legal, 18%.

A grande ameaça

A grande ameaça que existe é a não-formação de novos leitores. As famílias [ricas] que tinham cinco filhos há um século, hoje ou não têm nenhum ou têm um, no máximo dois. O número de leitores cresce pouco, se é que cresce. Se você pegar o universo da classe D, esse pai não tem orgulho nenhum do que faz, nem a mãe. Então a compra de um lápis significa para ele um investimento na educação de um filho. Acho isso extremamente bacana, é um raciocínio válido, mas sabemos que é insuficiente. O apagão do ensino taí, a dificuldade que temos de admitir gente é homérica. A gente aplica testes básicos dos básico de conhecimentos gerais razoáveis. A gente quer que o candidato leia jornais, uma revista, que seja atualizado. Você pergunta para ele quem escreveu "Dom Casmurro", metade levante e vai embora. E são todos universitários formados. E não sou o único que tem esse tipo de problema. Falei com outros empresários, de outras áreas, que têm exatamente o mesmo problema. Gente que não encontra engenheiros, que não encontra médicos. Veja o resultado do Enem. Está difícil acreditar. Esse crescimento anunciado é sustentado? Ou é um momento de paternalismo que está aí? Estou procurando gente [para as lojas] no Nordeste, tem gente que não quer ser registrada. Perguntamos por que, e dizem: "Ah, porque eu recebo a Bolsa [Família], minha mulher recebe a Bolsa. E a população cresce nesses lugares do Nordeste. E gente esclarecida que pode ter filhos está tendo cada vez menos, se é que está tendo. Conheço casais de amigos, leitores, muito bem casados, felizes, que preferiram não ter filhos.

Livros usados

“Minha mãe começou a livraria achando que muito livro valia a pena ser lido e não ser comprado. Ela começou alugando livro. Sou francamente favorável ao comércio de livros usados. E há espaço para todo mundo. (...) O que eu condeno é que um irmão mais novo não possa aproveitar o livro do irmão mais velho na escola. O que é que mudou na aritmética e na geografia? Por que tem que jogar fora esse livro. Hoje o governo até faz uma campanha para o aproveitamento [do livro didático], extremamente salutar, mas não é só. Por que o livro novo tem que ter um leitor por exemplar? Não tem biblioteca. Um livro, um leitor, é pouco.”

Bibliotecas públicas

[Sobre a nova Biblioteca de São Paulo]

“O [secretário estadual de Cultura, João] Sayad me falou que eles se inspiraram muito no modelo da [Livraria Cultura da avenida] Paulista, que é um local onde as pessoas ficam. Fiquei orgulhoso. É possível criar um lugar onde as pessoas se entretêm, têm opções para aprender e ver alguma coisa de concreto. A coisa mais bacana que achei é que ela vai funcionar nos fins de semana. Gente, o Brasil é o único país em que as bibliotecas fecham no fim de semana, quando os pais podem levar os filhos.”

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Contos embrionários I

Vocês não me são estranhos

As carrancas virtuais dos meus amigos não me assustam. O silêncio pesado dos meus seguidores desconhecidos também não. Temer semelhantes coisas está além de minha capacidade. A promiscuidade reinante nas redes de relacionamento me causa no máximo estranheza. Tudo o que omito dos meus “amigos virtuais” me agride – sinto-me um grande cretino quando deixo de compartilhar um aspecto qualquer de minha intimidade com os demais integrantes da rede. Tenho um prazer sádico em não responder a e-mails e ignorar comentários dos que me seguem e de quem eu sigo. Demoro a confirmar a amizade a quem me adiciona como amigo só pela satisfação de saber que causo ansiedade e desconforto ao solicitante. A mitomania é minha maior bandeira on-line. E o efeito mais nocivo dessa minha inclinação irrefreável à mentira é a desconfiança gerada por cada asserção legítima que solto na web - o que me aborrece e diverte ao mesmo tempo. O exemplo mais recente desse tipo de qüiproquó aconteceu há cerca de três ou quatro meses quando, num acesso incomum de sinceridade, relatei de maneira sucinta um acontecimento extraordinário que acabara de se dar comigo. Enquanto tomava meu segundo banho do dia – pois tomo dois banhos diários invariavelmente, um pela manhã, e outro quando chego do trabalho, ali pelas sete da noite – descobri, ao massagear meu coro cabeludo coalhado de xampu condicionante com ambas as mãos, a fim de produzir espuma em abundância, uma pequena protuberância bem no topo da minha cabeçorra ovalada. Palpei a região saliente durante um bocado de tempo, e tudo teria sido facilmente esquecido caso eu não tivesse experimentado uma ligeira dor aguda a cada vez que pressionava com um pouco mais de força o calombo. Do chuveiro mesmo gritei minha mulher, que demorou alguns minutos a vir em meu socorro porque estava ocupada com a correção de uma penca de trabalhos escolares. Ela é professora primária. Tão logo notou um elevado grau de desespero em meu chamado, minha esposa abandonou sua tarefa e invadiu o banheiro como um agente de polícia invade um cativeiro. Acompanhei aflito sua silhueta embaçada aproximar-se através da parede do box. Com as mãos entrelaçadas, eu formava uma cuia protetora sobre a cabeça como se desejasse guarnecer a moleira que se tinha fechado definitivamente havia quase quarenta anos. Minha mulher praticamente pulou sobre mim, decerto por ter pensado que os anos de sedentarismo e má alimentação finalmente tivessem resultado num grave enfarte. Contudo tratei de tranqüiliza-la e, sem lhe dar chances de elaborar qualquer tipo de pergunta, peguei sua mão direita e a coloquei sobre a parte abaulada da minha cabeça. O que é que tem isso?, ela perguntou, visivelmente irritada, mas não demasiado, de vez que conhecia meu pendor para a hipocondria desde nosso tempo de namoro. Dói, eu disse, e pressionei sua mão, que não chegava à metade do tamanho da minha, contra a região sensível, no intuito ilógico de lhe fazer experimentar a dor lancinante que eu sentia toda vez que repetia aquele gesto. Quase me mata de susto, baixou o tom de voz, recolhendo a mão examinadora até o peito galopante. Não era nada, repetia ela, enquanto eu insistia na hipótese de uma hérnia craniana, um traumatismo, ou uma outra anomalia qualquer. E se não consegui convencê-la de que algo maligno eclodira no alto da minha cabeça, ao menos lhe propiciei um prazer infantil traduzido numa longa e estridente gargalhada que só arrefeceu depois que iniciamos ali mesmo, no chuveiro, uma maratona de carícias cuja intensidade só havíamos experimentado em nossas primeiras manobras amorosas.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Melhores de 2009 (II)

E dando seqüência às minhas listas de melhores de 2009, aqui vão os livros mais interessantes que li no ano passado.

Os títulos estão em ordem de preferência:

1 – A Sibila, Agustina Bessa-Luís
2 – Austerlitz, W. G. Sebald
3 – As Virgens Suicidas, Jeffrey Eugenides
4 – Notas do Subsolo, Fiodor Dostoiévski
5 – Juventude, J. M. Coetzee
6 – Diário de Um Velho Louco, Junichiro Tanizaki
7 – Histórias de Cronópios e de Famas, Julio Cortázar
8 – Bartleby e Companhia, Enrique Vila-Matas
9 – Fun Home, Alison Bechdel
10 – eXato acidente, Tony Monti
11 – Um Esporte e Um Passatempo, James Salter
12 – A Viagem do Elefante, José Saramago
13 – Indignação, Philip Roth
14 – Longe da Água, Michel Laub
15 – A Louca da Casa, Rosa Montero
16 – O Lugar Escuro, Heloísa Seixas

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Achaque natalino

Ele acreditava que não tinha obrigação de presentear ninguém. Pelo menos era assim que pensava, até as quinze horas do dia vinte e quatro de dezembro, quando acordou com uma baita ressaca, resultado de uma noite tão festiva quanto aborrecida. Bastaram um banho mal tomado e um almoço às pressas para ele se sentir disposto a empreender umas compras de última hora.

***
O senhor pode parcelar em até cinco vezes no cartão, informou a moça negra de rosto ovalado, olhos castanhos e cintilantes, e cabelo trançado em cascata. Atrás dele, uma fila enorme de pessoas mais ou menos contentes portando um sem-número de sacolas. Vou pagar no débito, ele diz sem hesitar, e entrega o cartão à operadora de caixa. Em poucos segundos a transação é concluída e seu cartão devolvido. Obrigado e bom Natal. Próximo!

Agora ele é mais um circunstante que caminha pelo shopping munido de sacolas personalizadas. Na altura do corredor que leva aos sanitários, ele cansa e encosta-se em uma pilastra ladrilhada de verde. Abre as três sacolas que porta e confere o que comprou até então: um carrinho de controle remoto para o afilhado, um relógio de pulso para a mãe, e um rádio portátil para o pai acompanhar os jogos de futebol. Enquanto retoma seus passos largos mas cadenciados, pensa nos familiares cujos presentes ainda falta comprar. Pensa também em quanto falta para alcançar o limite de seu cartão: pouco, bem pouco. Ele trabalha num escritório ordinário numa função mais ordinária ainda, o que justifica o fato de seu limite de crédito ser tão baixo. Todos os meses tem de rebolar para saldar as dívidas e não terminar no vermelho. Não que ele goste disso, mas já se acostumou.

***
O balconista da loja de artigos religiosos é muito jovem, uma criança loura, de olhos claros e serenos. Você conhece São Camilo?, ele questiona o balconista, que depois de tocar um cacho de cabelo que alcança a altura do colarinho da camisa branca que está vestindo, lhe devolve um olhar perdido. Porque eu não conheço, emenda. Então encaram a enorme prateleira repleta de imagens de santos à sua frente, à procura de um santo desconhecido para ambos. Certo de que não obterão sucesso em sua busca, o balconista resolve recorrer a um livro de hagiografias. Após folhear o livro por alguns segundos, ele abre um sorriso discreto porém revelador. São Camilo de Lelis: nascido a 1550 em Bucchianico, nos Abruzzos, no antigo Reino de Nápoles. Foi um homem que media mais de um metro e noventa e tinha um porte elegante, tal como o navegador Pedro Alvarez Cabral. Jogador compulsivo e soldado do exército na juventude, ficou conhecido como um sacerdote que cuidava dos enfermos e dos desvalidos em geral. Conhecendo a imagem do santo italiano, fica fácil encontrar sua escultura em meio às dezenas de outras de variadas cores e tamanhos que compõem um painel capaz de satisfazer à demanda de pessoas com as mais distintas devoções. Vou levar, diz, satisfeito, assim que o rapaz louro, de olhos calmos, e cabelos encaracolados - que se parece muitíssimo com um anjo, ele sente vergonha de pensar, embora nunca tenha visto um - pousa a estátua de São Camilo no balcão. Embrulhe pra presente, por gentileza.

***
Passa das seis e meia da tarde. O horário de verão garante a luminosidade necessária – entrevista pelos portais de acesso ao shopping - para que ninguém se sinta aflito por ter adentrado a noite de vinte e quatro de dezembro fazendo compras de Natal. Quanto a ele, restam-lhe energia e paciência de sobra para dar seqüência à sua busca por presentes, que já se aproxima do fim. Sente-se realizado por ter encontrado o presente que julga ideal para a avó: São Camilo de Lelis, padroeiro dos enfermeiros; ex-viciado em jogo; um metro e noventa de altura; e toda uma vida de abnegação. Ele mesmo não é um homem abnegado; pouco mais de um quarto de século de vida e nenhuma abnegação – apenas algum senso de ridículo, um romantismo cafona, e um bocado de resignação. Não tem a mínima noção do que significam os vinte e cinco anos que já desperdiçou, nem tampouco do que a vida lhe reservará dali por diante. Está na média; sim, integra a massa de seres humanos que não sabe bem o que fazer com esse treco esquisito e tosco e que traz anexo outro troço estranho e – dizem – metafísico chamado alma: o corpo. Isso o deixa... aliviado. É tomado por uma sensação de alívio que aos poucos se traduz em zonzeira. Zonzeira de ressaca. Atravessa a praça de alimentação, que pouco a pouco se esvazia. Passa pela casa do Papai Noel, cujo humor também já principia a escassear nessa altura. Meia-dúzia de pais de família formam a fila do caixa-eletrônico. São sete da noite e os lojistas começam a baixar as portas.

***
Ainda falta o presente do irmão mais velho. Não pode deixar de presenteá-lo. O irmão mais velho é um homem íntegro que beira os quarenta anos e em quem ele tenta se espelhar. Por sorte já sabe o que comprar para ele: uma camisa nas cores cinza e branco tão bonita e íntegra quanto o irmão. Sai da loja de roupas carregando aquela que acredita ser a última sacola de suas compras. Não quer, não vai comprar mais nada. Não tem mais dinheiro, não tem mais crédito, não tem mais vontade de nada. Está abarrotado de sacos plásticos contendo caixas e embrulhos, e isso de certa forma o envergonha. Alguém, conhecido ou desconhecido, amigo ou inimigo, qualquer uma dessas pessoas que entram e saem das lojas, que gastam dinheiro que têm ou que ainda precisarão ganhar, que carregam sacolas, listas, e crianças, que exibem sorrisos e carrancas, que desejam boas festas e felicidades a outras pessoas queridas ou estranhas – qualquer um desses aí pode apontar o dedo para sua cara e chamá-lo de consumista fútil, de hipócrita, de filho da puta. Qualquer um deles pode. Vão apontar o dedo para ele, tratá-lo como igual? Ele merece?

***
Comprou os presentes que queria comprar. Achava que não precisava presentear ninguém. E não precisava mesmo. Mas já gastou o que tinha e o que não tinha, já utilizou seu cartão de crédito até o limite e amealhou dívidas até março do ano vindouro. Não adianta reclamar. Comprou e está acabado. Quinze para as oito. Ele se encaminha para a saída do shopping. As portas metálicas já foram baixadas. Só resta uma portinhola entreaberta, guarnecida por um segurança espadaúdo, de orelhas achatadas e cara fechada, que reage espantado a seu boa-noite.

Ganha a rua. O céu está parcialmente nublado e algumas bátegas de chuva caem sobre o asfalto quente produzindo vapor. Segue para o ponto de ônibus. As sacolas pesam demais e comprometem a cadência de seus passos. Cinco minutos para as oito da noite. Natal é uma bosta. Que bom que já vai passar. Oxalá essa zonzeira passe logo também.

domingo, 29 de novembro de 2009

Verdades literárias

Todos desejamos resgatar por intermédio da memória cada fragmento de vida que subitamente nos volta, por mais indigno, por mais doloroso que seja. E a única maneira de fazê-lo é fixá-lo com a escrita.

A literatura, por mais que nos apaixone negá-la, permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o que o olhar contemporâneo, cada dia mais imoral, pretende deslizar com a mais absoluta indiferença.

Enrique Vila-Matas / Bartleby e companhia


Alguns fatos só se tornam verdadeiramente críveis quando colocados no papel. Certas experiências só adquirem sua real dimensão quando consubstanciadas em literatura. O mero relato oral ou o discurso jornalístico nem sempre se prestam à melhor exposição de determinados acontecimentos. Às vezes, apenas uma forma alternativa de narrar, que nem sempre é a mais clara ou a mais razoável, consegue transmitir sensações e idéias dos mais variados matizes.

Quando iniciei meu roman à clef Paroxetina, não tinha idéia do estilo de narrativa que desejava criar. Só sabia que precisava compartilhar certos aspectos da minha vida que - devido a uma série de fatores, mas principalmente pelo fato de eu ser uma pessoa muita reservada (leia-se extremamente tímida) - sempre foram circunscritos ao conhecimento de poucos. E o que eu pretendia com isso? A bem dizer, o motivo ainda não me é claro até hoje, um ano após a conclusão do livro, porém tenho certeza de que ele está muito mais relacionado à busca por autocompreensão e à necessidade de * “compartilhar minha solidão, torná-la meio de conhecimento”, do que a alguma compulsão autodepreciativa ou à urgência de clamar por ajuda.

O estilo por assim dizer “tragicômico” só foi definitivamente adotado quando a narrativa já se encontrava pelo meio, o que me obrigou a reescrever boa parte da história. Esse tom foi escolhido no intuito de mitigar um pouco a natureza extremamente dramática / pesada dos temas tratados (alcoolismo, violência doméstica, síndrome do pânico, esquizofrenia, bissexualismo; a velhice, a solidão; o “fim da inocência”; o fim do mundo...). Se tivesse optado por um tom mais seco, solene, ou jornalístico, talvez a leitura do livro se tornasse insuportável. Não que este tipo de narrativa não renda boa literatura, pelo contrário. (E J. M. Coeetze é o nome que me vem com mais força à memória como exemplo de grande escritor sisudo.) O importante é que o estilo adotado seja coerente com o teor da narrativa.

Um livro que acabo de ler e que está cheio de “coerência narrativa” é Fun Home – Uma Tragicomédia em Família, romance gráfico da americana Alison Bechdel, que descreve o conturbado relacionamento da autora com o pai, e os prazeres e dissabores de se crescer num lar disfuncional.

Fun Home é a primeira graphic novel que leio, uma agradabilíssima surpresa. Impossível não se emocionar com o texto e os traços criados por Bechdel, alguém que soube se utilizar brilhantemente de duas linguagens complementares para contar uma história tão íntima, delicada, triste, e divertida. Ou seja, uma história universal.

Aqui, uma análise de Fun Home por Michel Laub.

* Isso é Drummond.

sábado, 21 de novembro de 2009

A Resposta

dedicado à senhorita D.

E como o escritor houvesse respondido a todas as suas perguntas de modo lacônico até então, expelindo ásperos monossílabos que lhe feriam não só os ouvidos como também a auto-estima, a jovem jornalista não acreditou que uma última questão pudesse salvar a entrevista.

Antes de decidir-se a formular uma derradeira pergunta, ajeitou-se uma vez mais no sofá do escritório. Um sofá macio de dois assentos, coberto com uma manta verde-água que cheirava a livros e cachorros velhos. O escritor estava sentado numa cadeira de alumínio estofada e reclinável a pouco mais de um metro e meio de si. Ela precisava inclinar ligeiramente a cabeça para o alto a fim de encará-lo nos olhos, uma vez que ele se encontrava num patamar cerca de trinta centímetros acima do seu.

O senhor disse uma vez que não acredita na escrita como fruto de uma necessidade. O que o incita a escrever? Por que o senhor escreve?

O escritor descruzou as pernas e pousou languidamente os braços longos e flácidos sobre elas. O mal-estar que não se esforçara por ocultar durante toda a conversa tornava ainda mais fundos os vincos que lhe sulcavam a face septuagenária. Abriu a boca de finos lábios arroxeados e ensaiou um preâmbulo que não passou de muxoxos e outros sons ininteligíveis. Alguns segundos depois, ele ditou a resposta:

Eu escrevo para aliviar a dor dos reumáticos e dos cancerosos. De todos os que sofrem enfim, nesta terra onde os homens vivem a gemer*. Escrevo para que os bons ressuscitem e os maus padeçam. Escrevo para desbastar as almas torvas, aguar os sítios áridos. Eu escrevo para fazer dormir os insones e despertar os letárgicos. Para que haja entendimento entre os povos. Justiça. Fraternidade. Solidariedade entre os homens. Escrevo para aplacar o ímpeto dos suicidas, a aflição dos solitários e a ansiedade dos compulsivos. Eu escrevo para que as crianças cresçam saudáveis e os velhos retornem à terra com o mínimo de angústia e o máximo de entendimento. Para que nenhuma espécie ou ecossistema se extinga. Para impedir as queimadas. Deter as pequenas tragédias cotidianas. Escrevo para conter o derretimento das calotas polares. E para que as tartarugas retornem à praia onde um dia eclodiram do ovo com o fito de depositar outros ovos. Eu escrevo para amplificar o clamor dos oprimidos e abafar os desmandos dos tiranos. Para evitar colisões aéreas. Para consolar os pais que enterram os filhos e os filhos que velam os pais. Para que os campos floresçam e os arsenais nucleares mingúem. Eu escrevo para expiar a culpa dos arrependidos e disseminar o perdão. Escrevo para. Eu escrevo...

Deteve-se abruptamente, como se suas cordas vocais houvessem se rompido. A frase morreu insipiente. Os olhos bastos quedaram-se fixos num ponto inexistente, parecia que a alma tinha-se esvaído do corpo por uma fresta escusa qualquer.

Sensibilizada – talvez essa não seja a palavra correta – com o destempero do velho romancista, a inexperiente repórter, incapaz de sacá-lo do estado de torpor em que mergulhara, juntou seus pertences – um bloco de notas, uma esferográfica, gravador, e o último romance do mestre que saíra por uma pequena editora em tiragem ainda menor -, levantou, não sem alguma dificuldade, do sofá, agradeceu pela atenção e caminhou na direção da porta.

Antes de deixar o escritório, a jornalista não pôde se furtar a dar uma última olhada para trás. A figura tétrica continuava na mesma posição em que ela a abandonara, a mesma efígie insondável. Saiu e ato contínuo fechou a porta quase bruscamente. Quando ganhou o saguão do edifício, pensou em retroagir e tentar insuflar algum ânimo ao velho romancista, mas preferiu confortar-se com a idéia de que ele voltara a escrever tão logo ela fechou a porta.

(Conto publicado originalmente no site Arlequinal, com o qual contribuo de vez em quando.)

*Verso do poema Ode a um rouxinol, de John Keats.

domingo, 15 de novembro de 2009

Algumas literárias I

Juventude – Esse romance de formação (ou deformação, como bem definiu André de Leones num post antigo) do escritor sul-africano J. M. Coeetze é um verdadeiro portento para os apreciadores da boa prosa. Narrado em terceira pessoa, no estilo conciso e sóbrio de Coeetze, consagrado em obras-primas como Desonra e Diário de um ano ruim, esse livro traz as memórias romanceadas do jovem John, um estudante de matemática e aspirante a poeta que ganha a vida trabalhando como programador de computadores numa sucursal da IBM na Londres dos anos 60. No seu tempo livre, além de dedicar-se à poesia, John visita museus, vai ao cinema, paquera, e faz leitura crítica dos escritores que admira. Na medida em que o emprego começa a lhe tolher as energias, ele acredita que não conseguirá alcançar seu fito maior, que é se tornar um bom poeta. Então lhe ocorre que a prosa é o caminho escolhido por aqueles que não conseguiram “encontrar a poesia”, ou seja, que a prosa é o refúgio dos poetas medíocres. Dúvidas as mais variadas o assaltam ao longo da narrativa, marcada por observações preciosas e agudas, do tipo que só os grandes escritores são capazes de produzir sem jamais cair no lugar-comum. Nada de muito extraordinário acontece no decorrer das cerca de 180 páginas em que acompanhamos a vida de John, e é incrível como Coeetze transforma essa “ausência de aventuras” num ponto positivo do romance, extraindo reflexão e grandeza do cotidiano insosso e não raro melancólico do protagonista. Juventude é o típico livro que, mal terminamos a leitura, dá vontade de começar de novo.

Austerlitz – Não sei que palavras usar para qualificar esse romance do escritor alemão W.G. Sebald. Fantástico, extraordinário, fabuloso, magistral – nenhum desses adjetivos define com justeza a obra de Sebald, e simplesmente dizer que se trata de uma obra-prima não ajuda a dar a dimensão da sua importância. Talvez o mais coerente seja afirmar que Austerlitz, com sua mistura de ficção, ensaio e memória, seja um livro inclassificável. Suas frases longas e sinuosas, de uma exatidão acadêmica, mas sempre repletas de cores, cheiros, sensações, nos transportam para um universo muito particular, causam uma espécie de suspensão do tempo real, e durante a leitura, o que não diz respeito a essa dimensão estanque se nos afigura irrelevante. Também as fotos que ilustram o livro nos causam grande arrebatamento, pois estão de tal modo relacionadas a esse mundo próprio no qual estamos mergulhados, que é como se emergissem de nossa própria consciência. E do que trata o romance, afinal? Grosso modo, Austerliz narra a história de um professor de arquitetura, Jacques Austerlitz, homem culto e viajado, cuja trajetória de vida foi brutalmente alterada pelo Holocausto. O narrador em primeira pessoa é um viajante que encontra o professor Austerlitz por acaso, numa estação ferroviária em Antuérpia, na década de 60, e se encanta pelos depoimentos que ouve dessa rica personagem com quem volta a se encontrar algumas vezes.

Quem tiver interesse em obter mais informações sobre a vida e a obra de W.G. Sebald, pode começar lendo este excelente texto escrito por Almir de Freitas para a revista Bravo.

sábado, 24 de outubro de 2009

Meninos Incompreendidos

Antoine Doinel e Jason Taylor são dois garotos de 13 anos do século XX. O primeiro vive na França da década de 50, e o segundo na Inglaterra dos anos 80. Ambos são saudáveis, inteligentes, e vivem em família. A família de Antoine é pobre e negligente para com ele; já a de Jason é de classe média, e o prove de conforto material e afeto. Por viverem na Europa, continente em que a maioria dos países preza pela educação, os dois adolescentes freqüentam boas escolas públicas - e passam por dificuldades diferentes também. Os problemas que Jason enfrenta na sua rotina escolar são, em sua maioria, decorrentes dos conflitos com colegas mais fortes e imbecis que ele. Antoine Doinel, ao contrário de Jason, não é impopular nem tampouco vítima de perseguição dos colegas; seu nome está associado a um tipo de liderança negativa, e não ao de um grupo de crianças bem comportadas e introvertidas que sofrem nas mãos dos colegas sádicos.

Antoine Doinel é o protagonista de Os Incompreendidos (1959), filme de estréia de François Truffaut e marco da Nouvelle Vague. Monumento de simplicidade e beleza, este longa-metragem narra as aventuras e os dissabores vividos por esse alter-ego de Truffaut na Paris do pós-guerra. Movido por um misto de curiosidade e revolta, Doinel confronta a autoridade dos pais e dos professores, e se encaminha para uma vida anárquica e precoce. Filho adotivo, o garoto interpretado por Jean Pierre Léaud vive numa casa humilde onde dorme num catre no quartinho dos fundos. A mãe, uma mulher jovem e bonita, nos é apresentada numa bela seqüência em que chega do trabalho, põe-se a despir as meias-calça e a reclamar os chinelos que não encontra. De início percebemos seu desprezo pelo filho. Ele é cobrado e criticado o tempo todo, não recebe nenhuma manifestação de carinho ou apoio, e muitas vezes é tratado como um simples empregado doméstico. Os olhos de Antoine / Jean Pierre ora lembram os de um cão vadio, ora expressam agressividade e ressentimento. Quando miram o pai, no entanto, os olhos do menino ganham alguma vivacidade. Há um clima de camaradagem entre os dois, que só é desfeito quando Antoine comete suas traquinagens e pequenos delitos, ou quando resolve se insurgir contra as arbitrariedades dos próprios pais e da sociedade em geral.

Jason Taylor é o narrador-protagonista de Menino de Lugar Nenhum, romance de formação do escritor britânico David Mitchell, lançado o ano passado no Brasil pela editora Cia das Letras. Ele vive numa cidadezinha do interior da Inglaterra chamada Black Swan Green, título original do livro. Amado e protegido pela família, Taylor não encontra a mesma acolhida de que dispõe em casa na escola. Vítima de gagueira, é alvo constante de chacota dos outros garotos, que o apelidam de Verme. Para minimizar o problema da gagueira, chamada por ele de Carrasco, Jason recorre a uma fonoaudióloga. Além de se interessar por atividades caras à maioria dos garotos de sua idade, Jason dedica-se (secretamente) à poesia. Reconhece, em dado momento da narrativa, que se os colegas descobrissem esse seu hobby sua vida social estaria comprometida de vez. Por isso envia poemas para concursos e revistas locais sob o pseudônimo de Eliot Bolívar. “Quando você mostra pra alguém uma coisa que escreveu, está oferecendo uma estaca pontiaguda, deitando no caixão e dizendo ‘Quando você quiser’”, diz na ocasião em que encontra Madame Crommelynck, senhora culta e experiente que faz críticas construtivas à sua obra.

As narrativas de Truffaut e Mitchell têm pontos em comum, como a fluência e o lirismo. Não há espaço para a pieguice nem para a divagação gratuita. Mas o humor está presente em ambas, principalmente como antídoto a um possível laivo de (auto)comiseração que poderia arruinar os relatos de cunho autobiográfico. Os personagens também não são caricatos nem agem segundo uma disposição maniqueísta. Por mais cruéis que os pais de Antoine Doinel possam ser, eles são dotados de algum senso de justiça, e soam sinceros quando se põem a ministrar conselhos que julgam importantes para a formação do filho. Por vezes os personagens de Menino de Lugar Nenhum podem parecer estereotipados, mas isso não é um problema narrativo, e sim uma conseqüência do olhar imaturo e parcial do protagonista-narrador. Seus algozes, por exemplo, são naturalmente descritos como bestas-feras despidas de bons sentimentos. Os pais, apesar de cuidar para que nada lhe falte, vivem às turras, o que é motivo de descontentamento para Jason.

Dois adolescentes de natureza diversa vivendo no mesmo século em décadas diferentes. Jason Taylor e Antoine Doinel. O primeiro tenta se livrar do assédio dos colegas de escola e sofre com a separação dois pais. O segundo possui espírito livre e se esforça para adaptar-se à vida em sociedade, a qual julga castradora e injusta.

François Truffaut e David Mitchell. Um cineasta e um romancista de origens e épocas diferentes. Dois grandes artistas. Duas grandes obras.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Angústia II

A linguagem em Angústia é extremamente concisa e percuciente. A sensação de asfixia gerada pelos períodos curtos e a aspereza dos adjetivos denotam o mal-estar do narrador frente ao mundo. Como ressaltei anteriormente, não obstante seu relato seja marcado pela desesperança e pelo ódio, de um modo geral Luis da Silva sente compaixão pela gente humilde com que ele convive. Dona Adélia, por exemplo, a mãe de Marina, fora “carrapeta”, vivaz, e não devia se sentir culpada por ter se transformado numa pessoa infeliz. Já o marido, Seu Ramalho, é um homem trabalhador e honesto, que não merecia o desgosto causado pela leviandade da filha. Seu Ivo é um sujeito imprestável mas bom, que ora amarga a ira de Luis, ora goza de sua generosidade. A prostituta, a empregada, a datilógrafa, o pai, o avô (Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva), os antigos escravos e empregados da fazenda – todos perpassam as memórias de Luis da Silva, que os descreve de maneira sóbria e ampla, expondo suas faltas e suas virtudes. A única personagem que não recebe qualquer misericórdia por parte do narrador é Julião Tavares, a personificação do que Luis da Silva julga haver de pior num ser humano.

Os ratos que infestam a casa de Luis da Silva “mijam na literatura”; Marina faz a higiene no banheiro do quintal, dá uma “mijada sonora.”A poesia em Angústia é de origem orgânica: cheiros, feições e fluidos são evocados ao longo de todo o romance, compondo uma atmosfera poética única em nossa literatura, que talvez só encontre paralelo em algumas obras de Aloísio Azevedo, como O Cortiço.

Luis da Silva se ufana intimamente de sua erudição, mas nunca a alardeia. Tanto o repugnam as pessoas que desprezam a educação e a cultura quanto os beletristas, os parnasianos e seus preciosismos. É inclemente com os livros ruins e seus autores, tal qual Graciliano tinha fama de ser. Aliás, é fácil, e por isso mesmo perigoso e inapropriado, identificar semelhanças entre autor e personagem. Como todo grande ficcionista, Graciliano Ramos certamente deve ter emprestado muito de si a Luis da Silva. Vícios e qualidades do mestre devem ter sido empregados na construção dessa personagem tão complexa e fascinante que é Luis da Silva, alguém com quem nos identificamos por ser, em certa medida, parecido com todos nós.