domingo, 11 de julho de 2010

Viver é bom

Mais um email que não encontrou resposta. Onde andará meu velho amigo?

Caro Alexandre,

Há tempos tenho ensaiado um contato, mas por algum motivo, geralmente fútil e pedestre, esse gesto não se concretiza. Não faltam oportunidades; elas estão sempre aí, por mais que as desperdicemos. E como o fim de ano é um grande pretexto para reatar laços (de amizade, de admiração, de respeito etc.) frouxos ou estropiados, resolvi me sentar e escrever - atitude da qual alguém com ambições semelhantes às minhas nunca deveria prescindir.

Talvez o amigo não tenha recebido o último email que enviei, pois não obtive retorno. Ou talvez essa mensagem tenha perecido frente à quantidade de ocupações e preocupações que nos consomem dia a dia. Não importa. Março já vai longe no retrovisor e devemos manter nossa atenção na estrada longa e sinuosa que aos poucos se desenha à nossa frente.

Às vezes algum conhecido comum me pergunta de você e eu não sei o que responder. Dia desses estive com o Paulão no shopping e ele me pediu notícias da “turma”. O Paulão, aliás, continua o mesmo. Quem também sempre me pergunta de você é a Bianca, quando conversamos pela internet. Outro dia pensei tê-lo visto passar de carro pela avenida João Pessoa, à altura da Câmara Municipal, mas acho que me equivoquei. Assim como quase cumprimentei um careca nas Lojas Americanas, pensando que era o nosso querido Nenê.

Mas então: como andam as coisas? Está bem de saúde? Continua trabalhando no Fórum? Ainda morando no Rony? Pensei em te ligar, mas perdi seu número. Não é a primeira vez que isso acontece, eu sei, mas ser distraído é parte da minha natureza. Tal qual o Paulão, eu acho que continuo o mesmo. A bem da verdade, estou bem mais calvo, como não poderia deixar de ser, a menos que eu tivesse recorrido a um implante capilar. Ah, agora não pertenço mais à classe dos desempregados; figuro noutra linha estatística: a dos “jovens que conseguiram o primeiro emprego”. Estou trabalhando numa financeira há seis meses. Acordo cedo, dou graças aos deuses que me vêm à memória por mais uma noite mal dormida, me arrumo, e vou trabalhar, resignadamente. Não é tão ruim.

Pra variar, já me alonguei demais para os padrões de um email. Um dia eu aprendo. Melhor ir me despedindo, porque ainda tenho de tomar banho, jantar, ver um pouco de televisão, ler dez ou quinze páginas do livro que me acompanha no momento, e ir dormir. Nós dois sabemos que amanhã tem mais.

Espero que este texto tenha melhor sorte que o anterior e alcance o amigo. Tomara que eu consiga mandar um salve para o Alexandre.

Grande abraço! E até a volta.

Dezembro de 2009
* * *
Para os amigos que partiram, para os amigos presentes, e para os que ainda virão.



terça-feira, 6 de julho de 2010

Para não esquecer

Nasci em 1984, em pleno processo de abertura política, de redemocratização. Não vivi, portanto, os chamados “anos de chumbo” da ditadura, mas nem por isso tenho uma visão romântica do período. Todo o material que li, ouvi, e vi a respeito da “revolução” de 1964 é suficiente para que eu não incorra na leviandade de acreditar que a repressão político-ideológica por parte do governo da época tenha sido branda. Não foi. Está documentado. Nosso regime pode até não ter sido tão mortal quanto o foram o argentino e o chileno, mas foi violento, torturou, matou, deixou graves seqüelas.

Por isso é fundamental a criação de livros, filmes, museus etc. sobre as nossas “tragédias históricas”. Para que não as esqueçamos. Para que não se repitam jamais.

***

No livro Meu Querido Vlado (editora Objetiva), o jornalista Paulo Markun narra sua experiência como preso político e as circunstâncias que envolveram a prisão e a morte de seu amigo, o também jornalista Vladmir Herzog.

Há no livro trechos de depoimentos de outros presos políticos e de documentos oficiais da época que comprovam a brutalidade do regime.

A seguir, dois documentos extraídos do livro: uma recomendação de um chefe do Doi-Codi paulistano para tratamento de um preso, e o relato desse mesmo preso sobre as máquinas de aplicar choque utilizadas pelos militares.

Tratamento de Marco Antônio T. Coelho. Proibição de usar roupas, colchão, coberta, proibição de fumar e ler jornais; só pode tomar o café-da-manhã (pão e um caneco de café com leite) e uma colher de arroz no almoço e outra no jantar; só pode beber um caneco de água por dia (duas vezes, um caneco pela metade); deverá ser interrogado das nove da manhã até sete horas da manhã do dia seguinte, sem interrupção. Essa é uma determinação para as turmas A, B e C, a fim de quebrar a pretensa superioridade intelectual e cultural desse elemento.
***
Quando lá passei existiam três dessas máquinas. Elas são armadas em caixas de madeira, mais ou menos toscas. A menor, a que chamam de “pimentinha”, foi pintada de vermelho; outra chamam de “brochômetro” e outra tem um dizer gravado – “saudações revolucionárias”. Às vezes ligam em série duas ou três dessas máquinas ao mesmo tempo. No principio, os fios são ligados nas mãos e / ou nos pés; depois passam para o pênis; em seguida “evoluem” para os tímpanos e a boca.