domingo, 28 de junho de 2009

Correspondência II

Em 26 de março de 2009, eu escrevi:

Já é sexta-feira? Acho que sim. Todos parecem tão cansados, tão absortos. Nas ruas, tenho deparado pessoas assustadiças, demasiado desconfiadas - como se estivéssemos em plena guerra civil. Será o apocalipse? Que me diz da mortandade das baleias, dos recém-nascidos, dos toxicômanos...? Muita gente se matando; já tomei conhecimento de três só aqui nos arredores. Algum numerólogo sabe o porquê? As cartas, os búzios? Algum sacerdote ou pastor? Você aí, sabe?

E onde anda o velho Alexandre, você sabe?

Pronto. A "entidade" já subiu. Agora é sério. Aqui quem vos escreve é o mais novo tecnólogo (desempregado) da praça. Colei grau no último dia 18. E tu, por onde tem andado? Vai bem de saúde? Working hard? E as crianças? Casaste? Que tem achado da política? Da economia? Da campanha do Guará no Paulistão? E o Obama, hein? Como bom cristão, torço por ele, mas haja verdinha pra saciar a fome dessa tal de crise! Biscate! Haja creolina pra desinfetar tanto ativo tóxico!

Então. Assim, vou-me indo porque já é quase sexta e, ademais, estou tentando seguir a caravana do Saramago, o bom velhinho, cujo objetivo é tanger um elefante asiático chamado Salomão de Lisboa até Viena d' Áustria.

Abraço. E apareça lá no meu burgo - o Chimpanzé -, que, diga-se, anda meio às moscas.

Mas o velho Alexandre não respondeu.

Onde andará o velho Alexandre?

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Luto em Neverland

A morte de Michael Jackson repercute de modo impressionante pelo mundo todo. O choque provocado pela abrupta partida do cantor levou as pessoas a relembrarem o grande talento que encantou gerações e estabeleceu definitivamente o conceito de pop star. De repente, a convicção que os fãs de Michael nunca abandonaram foi partilhada por admiradores comuns de todas as partes do globo. Todos apontam uma qualidade marcante do rei do pop, um hit inesquecível, um videoclipe. E, como carreiras de grandes astros da música e do cinema costumam ser marcadas por polêmicas e escândalos, o lado ruim da trajetória de Michael Jackson - quiçá o maior ícone individual da história do show business -, também está sendo rememorado.

Meses atrás, ao rever alguns clipes do cantor na tevê, eu e meu irmão nos entreolhamos e concordamos: ele era o maior. Tinha uma voz especial, inconfundível. Dançava maravilhosamente bem, sem deixar transparecer qualquer esforço. Parecia mesmo flutuar no palco. Acerca dessa sua habilidade admirável, o crítico de cinema Inácio Araújo escreveu em seu blog:

Michael dançando era um corpo que desorganizava o mundo ao seu redor, reduzindo nossos corpos, os corpos de todos os outros, a coisas mal-ajambradas. E depois reorganizava-o pelo simples efeito de sua elegância, da impressionante agilidade dos gestos.

A busca pela juventude eterna levou Michael Jackson a transformar seu corpo de tal modo, que o Michael de meia-idade, de pele alabastrina e rosto disforme, em nada lembrava o Michael mulato e de traços simétricos e suaves do início da carreira. As ilações a respeito dos motivos dessa transformação física brutal do cantor são muitas, mas as certezas são poucas. Assim como as acusações de pedofilia que recaíram sobre ele nunca foram confirmadas, apesar de seu comportamento muitas vezes ter fomentado esse tipo de denúncia.

De menino prodígio a rei do pop. Cinqüenta anos de vida e quarenta e cinco de carreira. Há anos Michael Jackson não se apresentava nem gravava discos. Apenas as polêmicas e as excentricidades do cantor eram veiculadas na mídia nos últimos tempos. Seu retorno triunfal estava marcado para o mês que vem: uma turnê de 50 shows no Reino Unido. Um desafio enorme para alguém com a saúde tão debilitada. Talvez nem o próprio Michael acreditasse na sua capacidade de cumprir esses compromissos.

Talvez sua morte restabeleça a dignidade perdida pelos maus passos dados. Porque a convicção de que Michael foi um grande artista ela já trouxe de volta.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Correspondência

No dia 18 de Junho de 2009, meu amigo F. escreveu:

Bruno,

Como vai de emprego novo? Você deu uma sumida, ou será que fui eu? Ainda não tive tempo de imprimir o seu livro para ler. Gosto de papel. Mas quero ler tão logo eu consiga respirar um pouco.

Aliás, eu terminei o meu livro (uma pequena coletânea de contos) e gostaria que você lesse. O que acha?

Abraços,

F.

Cerca de quatro horas depois, eu respondi:


Caro F.,

não foi você quem sumiu, fui eu. E o motivo tem a ver com o fato de eu ainda estar me adaptando à nova rotina, que inclui menos horas de sono diárias, menos tempo para leitura (e para a escrita, por conseguinte), para cinema, internet, tevê, passeio, namoro, para pensar na morte do bezerro - em vez de pensar na nossa; e mais responsabilidade, compromisso, enfim, uma legítima "vida adulta."

Até publiquei um postezinho - como diria João Ubaldo Ribeiro, cujo "Sorriso do Lagarto" estou lendo - sobre esse assunto lá no meu blog / burgo.

Ando meio broxa pra literatura, digo, pra criação literária. Nunca pensei que fosse sentir uma espécie de saudade do período em que trabalhei no... romance, vá lá. Naquela época, embora o estigma do desemprego me vexasse e privasse de muitas coisas, eu sentia, agora percebo, um prazer enorme em dedicar algumas horas por dia a um ofício inútil, contraproducente, e tributário da loucura. Num dado momento, fui acometido de um estranho, porém agradável, sentido de dever, como se concluir o livro fosse a missão que justificasse minha existência.

Admito que esse negócio de predestinação é piegas e cafona como o quê. Mas eu fui de fato tomado por esse sentimento quase místico, que, a bem da verdade, não se traduziu em grande literatura - e sim, no máximo, num texto razoavelmente bem estruturado e irregular.

(O emissor da crítica acima é o autor do livro. Portanto, favor desconsiderá-la.)

Contudo, quero deixar claro ao amigo que não estou me queixando - longe de mim. Como cantou o grande poeta e filósofo Zeca Pagodinha, para mim a coisa mais feia é gente que vive chorando de barriga cheia.

A vida, confessou-me um garçom certa noite num boteco fantasma, tem de ser cortada em cubos e servida à milanesa para consumo próprio e geral.

Abraços bêbados,

Bruno.

Ps - Será um prazer (e uma honra) ler sua coletânea de contos. Pode mandar!

E então a vida seguiu seu curso natural, tangida pela irretroatividade do tempo.

***

Espero que F. não fique chateado por eu ter publicado parte de nossa correspondência on-line aqui, pois o fiz com a melhor das intenções.

Como prova do respeito que devoto à nossa amizade, deixo o vídeo com essa magnífica interpretação de Chopin:

sábado, 20 de junho de 2009

A garota do call center

Vocês já devem saber que a revista piauí é uma das publicações mais interessantes surgidas no Brasil nos últimos anos. Se não me trai a memória - estou me referindo exclusivamente à minha memória real, sem qualquer consulta a sites de busca como (são) Google e quejandos -, o primeiro número de piauí chegou às bancas em outubro de 2006, e desde então vem sendo sucedido mês a mês por novas edições tão boas ou melhores que aquela.

Tenho alguns exemplares da revista, inclusive o primeiro, com a já célebre capa criada pelo cartunista Angeli, na qual um pingüim (pingüins serão sempre pingüins, nunca pinguins) de geladeira, usando uma boina militar cinza esverdeada, figura solitário em cima de uma geladeira vermelha. Este primeiro número contém ótimas e variadas colaborações, como a do escritor brasileiro radicado na Inglaterra, Ivan Lessa, que, além de contribuir com um excelente texto sobre sua volta ao Rio de Janeiro após quase trinta anos de exílio voluntário no Reino Unido, ainda criou, sob o pseudônimo de Chantecler, uma série de doze textos curtos e irreverentes para a sessão (hoje extinta) de horóscopo da revista, o que se repetiria ainda por algumas edições.

Caminhando para o seu terceiro aniversário, piauí ainda mantém o padrão original, que inclui colaborações fixas e eventuais, com perfis e reportagens longos, publicação de historietas em quadrinhos, ensaios fotográficos, narrativas ficcionais curtas, poemas, artigos, trechos de diário de anônimos e famosos, etc.

Na edição do mês passado, a revista publicou trechos do diário da paulistana Barbara Pina, uma estudante de 18 anos que trabalha meio período no call center de um provedor de tevê por assinatura. Além de bem-humorado, o relato dessa menina inteligente e batalhadora é comovente e esclarecedor sobre vários aspectos. Recomendo veementemente a leitura.

Para ler o texto todo, clique aqui. Abaixo, reproduzo dois trechos do depoimento de Barbara:

“Quero ser artista plástica. O call center é meu primeiro emprego com carteira assinada. Antes dele fiz estágios e bicos, nada que tenha durado mais do que dois meses. Percebo que em toda entrevista de trabalho , quando questionada sobre "planos futuros/interesses profissionais" , ao responder que quero ser artista plástica, é ali que eu perco a vaga. Não se dá oportunidade a quem não está interessado em seguir carreira na profissão X ou Y.”

“Dia desses, atendi um cliente que não saía de casa fazia um ano. Mora na rua dos Pinheiros, próximo ao largo do Batata. Ele contou ter decidido não mais sair de casa: assinou uma tevê a cabo, uma internet banda larga e passa agora 24 horas por dia entre quatro paredes. Me assegurou ser bem mais feliz assim. Pensei: "Nada mal..."

domingo, 14 de junho de 2009

Um poema e uma canção. Ou A preguiça do blogueiro

Incapaz de administrar seu tempo de maneira produtiva, o blogueiro apenas lamenta – e admira. Por vezes, inverte a ordem, então admira (a capacidade alheia de gerenciar o tempo) e lamenta (sua falta de talento para criar, construir, fazer acontecer, nas horas em que não está tentando garantir seu sustento ou descansando).

***
Um poema de Roberto Piva que vive na minha cabeça:

O SÉCULO XXI ME DARÁ RAZÃO
(se tudo não explodir antes)

O século XXI me dará razão, por abandonar na linguagem & na ação a civilização cristã oriental & ocidental com sua tecnologia de extermínio & ferro-velho, seus computadores de controle, sua moral, seus poetas babosos, seu câncer que-ninguém-descobre-a-causa, seus foguetes nucleares caralhudos, sua explosão demográfica, seus legumes envenenados, seu sindicato policial do crime, seus ministros gângsters, seus gângsters ministros, seus partidos de esquerda fascistas, suas mulheres navios-escola, suas fardas vitoriosas, seus cassetetes eletrônicos, sua gripe espanhola, sua ordem unida, sua epidemia suicida, seus literatos sedentários, seus leões-de-chácara da cultura, seus pró-Cuba, seus anti-Cuba, seus capachos do PC, seus bidês da direita, seus cérebros de água choca, suas mumunhas sempiternas, suas xícaras de chá, seus manuais de estética, sua aldeia global, seu rebanho-que-saca, suas gaiolas, seus jardinzinhos com vidro fumê, seus sonhos paralíticos de televisão, suas cocotas, seus rios cheios de latas de sardinha, suas preces, suas panquecas recheadas com desgosto, suas últimas esperanças, suas tripas, seu luar de agosto, seus chatos, suas cidades embalsamadas, , sua tristeza, seus cretinos sorridentes, sua lepra, sua jaula, sua estricnina, seus mares de lama, seus mananciais de desespero.
***
Um filme visto no fim de semana: Árido Movie, do pernambucano Lírio Ferreira. Belo. Divertido. Irregular. Penso que Bianca iria gostar desse filme. Acho que iria apreciar principalmente a trilha sonora. Da qual "extraí" o samba-canção Naquela mesa, clássico de Sérgio Bittencourt cantado por Otto, ao final do filme, e por Nelson Gonçalves, na versão abaixo:

sábado, 6 de junho de 2009

Eu ando pelo mundo prestando atenção em tudo... (2)

Semana passada meu chefe me perguntou do que eu menos gostava na vida. Estávamos sozinhos no escritório, ali por volta de meio-dia e meia, e de repente ele parou o que estava fazendo no computador, contornou sua baia e veio na minha direção. Com o mesmo ar enigmático de quem está perto de solucionar um grande mistério, ele me encarou: De que você realmente não gosta? O que mais o aborrece? Surpreendido por aquela pergunta fora de hora e de contexto, refleti durante cerca de vinte segundos antes de responder que o que mais me desagradava era a ignorância. A ignorância das pessoas. Mas essa é uma resposta muito vaga, ele objetou. Durante sua entrevista de emprego você me disse que o que mais o chateava era ter de varrer a casa, ajuntou. Sim, mas na ocasião você indagou qual a tarefa doméstica de que eu menos gostava, justifiquei. Então ele pôs-se em marcha mais uma vez, as mãos ocultas nos bolsos da calça verde-escura e exemplarmente vincada, e só depois de desarmar a expressão insondável que o caracteriza sempre antes de uma abordagem, voltou à carga: Eu não gosto de almoçar sozinho, entende? Isso sim é uma resposta objetiva, direta. Eu não sabia aonde ele queria chegar. Mas insisti na questão da ignorância. Que não suportava pessoas que além de não saber se negam a tomar conhecimento de qualquer coisa. Que tinha ojeriza a intolerâncias de quaisquer espécies. E que perto disso varrer o chão de casa chegava até a figurar como uma tarefa agradável. Entendi. Agora entendi, ele disse por fim, retornando à sua baia e retomando o trabalho no computador que abandonara minutos antes, quando fora acometido por aquela súbita e estranha curiosidade.
***
Após esse episódio, lembrei de uma canção de Adriana Calcanhoto, a qual gostaria de compartilhar com vocês e com meu distinto patrão:

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Eu ando pelo mundo prestando atenção em tudo... (1)

O governo do Estado de S. Paulo baniu os pobres (?) dos fumantes dos estabelecimentos públicos. A próxima providência deveria ser expulsar os espalhafatosos. 13:40 - apenas um terço das mesas do restaurante estão ocupadas. Meia dúzia de gatos pingados retardatários almoça rápida e silenciosamente; só se ouve o barulho de mastigação, de talheres que se chocam, e dos funcionários do estabelecimento. Vez ou outra a campainha do painel de senhas apita e todos (mesmo os que não aguardam pedidos) olham invariavelmente para o visor e acompanham a sucessão dos números: 21, 22, 23... 30, 31... Tudo na mais ordinária e reconfortante calma, até que uma voz altissonante e rouquenha abala a trama de placidez em que todos os comensais repousavam. Quase engasgo com um naco de carne vermelha. Mais que depressa me esforço por localizar a origem daquele grasnado, e após varrer brevemente o salão com minhas "retinas tão fatigadas", avisto a dona de tão incômoda voz. Uma loira alta e robusta, quase gorda, muito maquiada e vestida como uma boneca barbie. Seu discurso é mais potente que o de Heloísa Helena e o da ministra Dilma Rousseff, com a diferença de que não possui nenhum viés político; antes, está carregado de futilidade e, ainda pior, de intimidade. Em instantes todos os presentes tomam conhecimento de boa parte da vida pessoal e profissional da loira, com destaque para sua atribulada vida sexual. Que falta faz um "som ambiente" numa hora dessas, penso, uma vez que com o bom senso não se pode contar mesmo. A barbie grasna sem parar, expansiva, e sua vítima principal, a amiga com quem divide a mesa e uma porção de frango a passarinho, também parece um pouco constrangida diante de tamanha falta de compostura. Expõe indignações, resmunga em alto e bom som, confessa intimidades sem sequer ruborizar. Não contente com a pirotecnia verbal, ainda gesticula desbragadamente, à italiana. Deve ser surda, pondero sem qualquer ironia, mesmo não acreditando muito na hipótese. E seguimos almoçando sob a bufonaria da loira que, agora percebo, possui um belo par de seios, o que contudo não a redime. Termino minha refeição. Como de hábito, limpo a boca uma última vez antes de deixar a mesa. E, enquanto me encaminho para o caixa, sou surpreendido por um funk que eclode do nada e preenche em segundos todo o ambiente, causando risos e má digestão. O celular da loira começara a tocar.