quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Alguns dos melhores filmes que vi em 2010

Sem ordem de preferência:

Ervas Daninhas

À Prova de Morte

Um Homem Sério

Tudo Pode Dar Certo

Ilha do Medo

Vício Frenético

A Estrada

Ponyo – Uma amizade que veio do mar

O Escritor Fantasma

Como treinar o seu dragão

Férias Frustradas de Verão

Toy Story 3

A Rede Social


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A juventude do artista

O problema dele é que não está preparado para fracassar. Quer um A ou um alfa ou cem por cento em todas as tentativas, e um grande Excelente! na margem. Ridículo! Infantil! Ninguém precisa lhe dizer isso: pode ver por si próprio. Mesmo assim. Mesmo assim não pode agir. Não hoje. Talvez amanhã. Talvez amanha tenha vontade, tenha coragem.

Se fosse uma pessoa mais cálida, sem dúvida acharia tudo mais fácil: a vida, o amor, a poesia. Mas não há calor em sua natureza. E não é o calor que leva a escrever poesia. Rimbaud não era cálido. Baudelaire não era cálido. Quente, sim, mas era preciso – quente na vida, quente no amor -, mas não cálido. Ele também é capaz de ser quente, não deixou de acreditar nisso. Mas no momento, no momento indefinido, ele é frio: frio, congelado.

E qual o desfecho dessa falta de calor, dessa falta de coração? O desfecho é que está sentado sozinho na tarde de domingo no quarto de cima de uma casa no fundo do campo de Berkshire, com corvos crocitando no campo e uma névoa cinzenta no céu, jogando xadrez sozinho, ficando velho, esperando a noite cair para, sem nenhuma culpa, fritar suas lingüiças para comer com pão no jantar. Aos dezoito anos, podia ter sido um poeta. Agora não é um poeta, nem um escritor, nem um artista. É um programador de computador, um programador de computador de vinte e quatro anos num mundo em que não existe programadores de computador de trinta anos. Trinta é velho demais para ser programador; a pessoa se volta para alguma outra coisa – algum tipo de empresariado – ou se mata. Só porque é jovem, porque os neurônios em seu cérebro ainda estão disparando mais ou menos infalivelmente, é que tem um pé na indústria de computadores britânica, na sociedade britânica, na Grã-bretanha em si. Ele e Ganapathy são dois lados da mesma moeda: Ganapathy morrendo de fome não porque está separado da Mãe Índia, mas porque não come direito, porque apesar de seu mestrado em ciência da computação não sabe nada sobre vitaminas, minerais e aminoácidos; e se trancou num fim de jogo debilitador, jogando consigo mesmo, a cada lance mais encurralado, mais derrotado. Um dia desses, os homens da ambulância terão de ir ao apartamento de Ganapathy e tirá-lo de lá numa maca com um cobertor em cima da cara. Depois de levar Ganapathy, podiam vir buscá-lo também.


Trecho final do romance Juventude, de J. M. Coetzee.

sábado, 13 de novembro de 2010

Um Deus das pequenas e das grandes causas

São raras as vezes em que penso em Deus. Apesar disso, tenho um fundo religioso, uma ânsia de religião. Queria me convencer de que definitivamente tenho uma definição de Deus, um conceito de Deus. Mas não tenho nada semelhante. São raras as vezes em que penso em Deus, pelo simples fato de que o problema me excede tão demasiada e soberanamente, que chega a me provocar uma espécie de pânico, uma debandada geral de minha lucidez e de minha razão. “Deus é a totalidade/’, diz Avellaneda com freqüência. “Deus é a Essência de tudo”, diz Aníbal, “o que mantém tudo em equilíbrio, em harmonia, Deus é a Grande Coerência. Sou capaz de entender uma e outra definição, mas nem uma nem outra são a minha definição. É provável que eles estejam no caminho certo, mas não é desse Deus que necessito. Necessito de um Deus com quem conversar, um Deus em quem possa buscar amparo, um Deus que responda aos meus questionamentos, que suporte as metralhadas das minhas dúvidas. Se Deus é a Totalidade, a Grande Coerência, se Deus não é mais que a energia que mantém vivo o Universo, se é algo tão incomensuravelmente infinito, que importância posso ter para Ele, um átomo tão precariamente alçado a um insignificante piolho de seu Reino? Não me importa ser um átomo do último piolho de seu Reino, mas me importa que Deus esteja ao meu alcance, me importa poder agarrá-lo, não com minhas mãos, claro, nem sequer com meu raciocínio. Importa agarrá-lo com meu coração.

Trecho do romance A Trégua, do uruguaio Mario Benedetti.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Lendo-endo-endo

Não sei por que (cinismo!), mas quando encontro velhos amigos eles sempre me perguntam o que estou lendo no momento. Ninguém fala do “meu tricolor”, nem pergunta se fui ao show da dupla sertaneja ou do grupo de pagode da atualidade no último domingo, nem se tenho feito exercícios físicos com regularidade, nem se tenho ido à igreja, nem se casei ou tenho procriado por aí. Querem apenas saber o que estou lendo.

Pois bem. Para os que vivem querendo saber que livros jazem à minha cabeceira, aí vai:

Comarc McCarthy e Philip Roth – Dois dos maiores – se não OS MAIORES – romancistas americanos contemporâneos. Do primeiro, estou lendo "Todos os Belos Cavalos”, estória de meninos-rancheiros, haciendas mexicanas, e, claro, cavalos, muitos cavalos. (Aliás, o título, “All The Pretty Horses”, me é caro porque considero o cavalo uma das mais belas e fascinantes criações da natureza. Posso não saber montar e não entender bulhufas de eqüinos, mas não há como ignorar a força e o porte magnífico dessa espécie.) McCarthy é preciso nas descrições, usa poucos adjetivos, “abusa” da conjunção “e” em muitas sentenças, tornando-as mais longas e fluidas, além de ser bastante hábil na construção dos diálogos. O narrador em terceira pessoa atém-se o tempo todo aos fatos, à superfície dos corpos, aos gestos. Os sentimentos e pensamentos das personagens nunca são revelados; estamos distante do campo do “fluxo de consciência” à James Joyce, por exemplo.

Não seria descabido considerar “Todos os Belos Cavalos” um road novel, já que boa parte dos acontecimentos se dá na estrada – com a diferença de que o meio de transporte utilizado é o cavalo, e não o automóvel.

Para leitores citadinos, a trama e a ambientação rural do romance podem até soar enfadonhas, mas é praticamente impossível não admirar a boa e sofisticada prosa de Comarc McCarthy.

***

A Humilhação: Trigésimo livro do profícuo Philip Roth, que costuma lançar um livro por ano. O tema desta novela curta (são aproximadamente 100 páginas) é o talento. Um famoso ator sexagenário enfrenta uma grave crise pessoal e profissional: é abandonado pela mulher, sofre com terríveis dores na coluna, e se vê incapacitado de atuar de repente.

Privado de seu talento, o protagonista mergulha numa depressão profunda, que o leva a se internar numa clínica psiquiátrica. Após um breve período de internação, ele retorna para casa e se fecha para o mundo. Mesmo os apelos do agente e melhor amigo para que volte a trabalhar são inúteis. Ele se convence de que está irremediavelmente arruinado e de que nada de inspirador pode voltar a acontecer consigo. Até o dia em que uma mulher vinte e cinco anos mais jovem do que ele entra sorrateiramente em sua vida.

Roth é um mestre da narrativa longa. Seu texto é conciso e elegante. Sua capacidade de criar personagens complexos e de expor suas aflições de modo claro e original é rara. Poucos escritores atuais possuem uma verve narrativa tão vigorosa quanto a sua. E embora este “A Humilhação” não traga o melhor de seu talento, é sem dúvida um deleite para os apreciadores da boa literatura.

domingo, 11 de julho de 2010

Viver é bom

Mais um email que não encontrou resposta. Onde andará meu velho amigo?

Caro Alexandre,

Há tempos tenho ensaiado um contato, mas por algum motivo, geralmente fútil e pedestre, esse gesto não se concretiza. Não faltam oportunidades; elas estão sempre aí, por mais que as desperdicemos. E como o fim de ano é um grande pretexto para reatar laços (de amizade, de admiração, de respeito etc.) frouxos ou estropiados, resolvi me sentar e escrever - atitude da qual alguém com ambições semelhantes às minhas nunca deveria prescindir.

Talvez o amigo não tenha recebido o último email que enviei, pois não obtive retorno. Ou talvez essa mensagem tenha perecido frente à quantidade de ocupações e preocupações que nos consomem dia a dia. Não importa. Março já vai longe no retrovisor e devemos manter nossa atenção na estrada longa e sinuosa que aos poucos se desenha à nossa frente.

Às vezes algum conhecido comum me pergunta de você e eu não sei o que responder. Dia desses estive com o Paulão no shopping e ele me pediu notícias da “turma”. O Paulão, aliás, continua o mesmo. Quem também sempre me pergunta de você é a Bianca, quando conversamos pela internet. Outro dia pensei tê-lo visto passar de carro pela avenida João Pessoa, à altura da Câmara Municipal, mas acho que me equivoquei. Assim como quase cumprimentei um careca nas Lojas Americanas, pensando que era o nosso querido Nenê.

Mas então: como andam as coisas? Está bem de saúde? Continua trabalhando no Fórum? Ainda morando no Rony? Pensei em te ligar, mas perdi seu número. Não é a primeira vez que isso acontece, eu sei, mas ser distraído é parte da minha natureza. Tal qual o Paulão, eu acho que continuo o mesmo. A bem da verdade, estou bem mais calvo, como não poderia deixar de ser, a menos que eu tivesse recorrido a um implante capilar. Ah, agora não pertenço mais à classe dos desempregados; figuro noutra linha estatística: a dos “jovens que conseguiram o primeiro emprego”. Estou trabalhando numa financeira há seis meses. Acordo cedo, dou graças aos deuses que me vêm à memória por mais uma noite mal dormida, me arrumo, e vou trabalhar, resignadamente. Não é tão ruim.

Pra variar, já me alonguei demais para os padrões de um email. Um dia eu aprendo. Melhor ir me despedindo, porque ainda tenho de tomar banho, jantar, ver um pouco de televisão, ler dez ou quinze páginas do livro que me acompanha no momento, e ir dormir. Nós dois sabemos que amanhã tem mais.

Espero que este texto tenha melhor sorte que o anterior e alcance o amigo. Tomara que eu consiga mandar um salve para o Alexandre.

Grande abraço! E até a volta.

Dezembro de 2009
* * *
Para os amigos que partiram, para os amigos presentes, e para os que ainda virão.



terça-feira, 6 de julho de 2010

Para não esquecer

Nasci em 1984, em pleno processo de abertura política, de redemocratização. Não vivi, portanto, os chamados “anos de chumbo” da ditadura, mas nem por isso tenho uma visão romântica do período. Todo o material que li, ouvi, e vi a respeito da “revolução” de 1964 é suficiente para que eu não incorra na leviandade de acreditar que a repressão político-ideológica por parte do governo da época tenha sido branda. Não foi. Está documentado. Nosso regime pode até não ter sido tão mortal quanto o foram o argentino e o chileno, mas foi violento, torturou, matou, deixou graves seqüelas.

Por isso é fundamental a criação de livros, filmes, museus etc. sobre as nossas “tragédias históricas”. Para que não as esqueçamos. Para que não se repitam jamais.

***

No livro Meu Querido Vlado (editora Objetiva), o jornalista Paulo Markun narra sua experiência como preso político e as circunstâncias que envolveram a prisão e a morte de seu amigo, o também jornalista Vladmir Herzog.

Há no livro trechos de depoimentos de outros presos políticos e de documentos oficiais da época que comprovam a brutalidade do regime.

A seguir, dois documentos extraídos do livro: uma recomendação de um chefe do Doi-Codi paulistano para tratamento de um preso, e o relato desse mesmo preso sobre as máquinas de aplicar choque utilizadas pelos militares.

Tratamento de Marco Antônio T. Coelho. Proibição de usar roupas, colchão, coberta, proibição de fumar e ler jornais; só pode tomar o café-da-manhã (pão e um caneco de café com leite) e uma colher de arroz no almoço e outra no jantar; só pode beber um caneco de água por dia (duas vezes, um caneco pela metade); deverá ser interrogado das nove da manhã até sete horas da manhã do dia seguinte, sem interrupção. Essa é uma determinação para as turmas A, B e C, a fim de quebrar a pretensa superioridade intelectual e cultural desse elemento.
***
Quando lá passei existiam três dessas máquinas. Elas são armadas em caixas de madeira, mais ou menos toscas. A menor, a que chamam de “pimentinha”, foi pintada de vermelho; outra chamam de “brochômetro” e outra tem um dizer gravado – “saudações revolucionárias”. Às vezes ligam em série duas ou três dessas máquinas ao mesmo tempo. No principio, os fios são ligados nas mãos e / ou nos pés; depois passam para o pênis; em seguida “evoluem” para os tímpanos e a boca.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

*Alguma coisa urgentemente

Sabe aquela sensação de que seu organismo, sua mente, seus anseios, seus medos, sua rotina estão te matando aos poucos? Uma sensação de sufocação que nos leva gradativamente ao desespero. Então...

Tudo bem, eu já esperava que você fosse objetar que qualquer pessoa, bem ou mal de saúde, satisfeita ou insatisfeita com sua vida, está morrendo aos poucos. Mas ocorre que a ansiedade gerada pelo descontentamento acelera o processo de envelhecimento e compromete a saúde de modo geral. (Não fui eu que descobri isso; consulte a literatura médica, ou o Google, tanto faz.) E era exatamente esse ponto que eu queria ressaltar.

Pena que seja tarde demais. Como foi que cheguei a essa conclusão? Não precisa ser nenhum gênio para saber. Você simplesmente acorda agitado no meio da noite e descobre que é tarde demais; que as coisas estão perigosamente distantes do ideal, e que por mais que você corra, jamais alcançará aquele bonde chamado satisfação, plenitude, maturidade.

(Puta que pariu! E não é que estou escrevendo igual à Lya Luft? Deve ser resultado de mandinga dos meus desafetos – que são poucos, graças a Deus.)

A juventude é uma mulher fatal. Um vírus incubado que pode se manifestar abruptamente caso você se torne um deslumbrado ou adquira o mau hábito de chorar com pena de si mesmo. Num dia você se sente apto a levantar os mais pesados halteres e a dirigir bêbado e em alta velocidade na contramão, e no outro você se descobre mais humano, matutando, algo acovardado, a respeito do seu futuro que se anuncia inglório. Eu queria ser muito mais, mas acabei me transformando nisso! E o pior é que a culpa não é dos meus pais, nem dos sucessivos governos corruptos e ineficientes, ou do pé na bunda que levei na oitava série. A culpa é minha e sua, porra!

Ouvir aquela velha canção do Bob Dylan te faz relembrar os amigos que se foram, os vivos e os mortos. Pequenas madeleines embebidas em cerveja preta suscitam mergulhos existenciais e engendram maremotos de melancolia. A recorrência e o apelo da infância são sempre um bom conhaque para noites frias e inóspitas. Mas talvez a estratégia mais eficaz para combater os dissabores do presente seja se apegar às pequenas conquistas, às virtudes incontestes que persistem mesmo na adversidade. E então gozar por um instante de uma felicidade “por assim dizer sem motivo”, como diria Clarisse.

É possível que você tenha lido os livros errados. Como é mesmo que se faz para viver um grande amor, seu Vinicius? Talvez esteja na hora de aderir definitivamente à “onda verde” e reciclar seus valores. Se você foi desmamado cedo demais, se descobriu precocemente que seu pai é um imbecil (e que você não é muito melhor que ele), se foi vítima de bullying, se em algum momento se sentiu confortável nadando neste caldo azedo de cultura em constante ebulição que banha desde Nova Iorque até o “cu do mundo”, se vive impelido a fazer alguma coisa urgentemente para não “desperdiçar sua vida” - e se, por fim, você passar a descrer da humanidade, com agá minúsculo ou maiúsculo, saiba que você não está só. Pulsos cortados, jorrando sangue, e um marmanjo dependurado numa corda atada ao pescoço podem até ser imagens românticas e, é preciso admitir, sedutoras, mas o apelo do suicídio nos é mais útil se encarado como “sopro de vida” (Clarisse de novo).

Bem, eu e você queremos crer quê, não?

* O título é o mesmo de um excelente conto do escritor João Gilberto Noll.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Olhos de Chimpanzé

Tive que postar na íntegra esse artigo do Luiz Felipe Pondé, que saiu na Folha de S. Paulo de ontem. Leiam e entendam por quê.

Os olhos do macaco

VOCÊ JÁ OLHOU nos olhos de um chimpanzé? Da próxima que for a um zoológico, faça isso. Você perceberá que ali existe uma alma presa como a sua. Seus olhos carregam um misto de espanto e tristeza que só humanos conhecem, que parece brotar de excesso de sensibilidade.

Sim, simpatizo com o darwinismo. Mas nem por isso sou ateu. Tampouco tem razão o grande filósofo Daniel Dennett, cujos livros devoro e a quem admiro na sua luta para combater a velha covardia humana travestida de fé, quando supõe que qualquer relação entre darwinismo e tradição monoteísta ocidental implica medo do ateísmo.

Não tento "casar" o darwinismo com qualquer "prova" da existência de Deus. Provar a existência de Deus me dá sono, nem acho possível prová-la. Como não levo a razão tão a sério, não temo suas incoerências.

Pelo contrário, minha simpatia está sempre contra as certezas da razão. Penso, sim, que não há nenhuma grande coerência na vida, nem uma narrativa única. Uma vida dilacerada entre narrativas contrárias me parece sempre mais sólida.

O conforto da certeza me entedia. Sou da velha escola: o sofrimento é que molda o caráter.

O darwinismo me comove, assim como Shakespeare. Quando ouço Macbeth dizer "a vida é um conto narrado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada", eu penso na luta cega de nossos ancestrais cuja humanidade foi cozida em sangue. E isso me comove.Converti-me ao darwinismo desde criança, ao ver aqueles desenhos nos quais imagens de hominídeos vão paulatinamente virando imagens de homens.

Mais tarde, quando não era não mais criança, convenci-me da verdade do darwinismo quando me vi diante das análises do comportamento humano produzidas pela psicologia evolucionista.

Não creio nas teorias que afirmam a construção social dos comportamentos, apesar de que algum grau de influência social em nosso comportamento obviamente existe.Prefiro a ideia de comportamento como destino, maldição. Mas minha relação com o darwinismo sempre foi mais estética do que um mero convencimento racional.

O que primeiro me cativou no darwinismo foi a descrição da origem do ser humano como uma saga contra um meio ambiente terrível e contra os horrores de nossa própria "alma" pré-humana.

A solidão dos nossos ancestrais combatendo os elementos externos e internos me parece uma ode à beleza humana, arrancada da indiferença das pedras.

A escuridão e a solidão do universo me encantam. Pensar que homens e mulheres são areia que um dia tomou consciência de si mesma e de sua solidão me parece um épico que canta nossa dignidade visceral.

A dignidade que só cabe aos desgraçados. Reconheço essa dignidade nos olhos do macaco: a dignidade da testemunha assombrada.

O horror de nosso passado, para mim, sempre foi motivo de orgulho. Sim, vejo o darwinismo como um drama cósmico do qual temos o privilégio de ser testemunhas assombradas. Sim, repito, a humanidade dos humanos foi cozida em sangue, uma pérola numa imensa massa cega de matéria.

Os ateus não deixam de ter razão quando apontam o pânico que muitas pessoas têm diante de descrições da vida como a darwinista. O filósofo Nietzsche (século 19) chama esse pânico de ressentimento. Daí nasceriam as bobagens platônicas e cristãs acerca de um outro mundo onde não haveria sofrimento.Mas o ressentimento de gente como Platão ou cristãos não é nada se comparado ao ridículo de algumas crenças atuais, mas que respondem ao mesmo pânico.

Por exemplo, pensemos na crença em "energias". Que os deuses me protejam de cair um dia no ridículo de "acreditar em energias". Odeio a palavra "energia". Energia isso, energia aquilo, hoje em dia qualquer um usa a palavra "energia" para seus delírios religiosos de consumo.

Digo sempre: quer uma religião? Procure uma de, no mínimo mil anos de existência, e preferivelmente que não tenha passado pela Califórnia ou pela física quântica.Seu sofá está sobre um cano de água? Humm, más energias. Você tem um câncer? Precisa "limpar" as más energias. O tratamento energético não te curou? Ahhh, você não estava preparado, precisa abrir sua mente. Ovos têm energia, alfaces têm energia, o azul da parede tem energia. As energias vão resolver o conflito israelo-palestino. As energias vão parar teu envelhecimento.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Escrever: velhos esboços

Encontrei essas notas avulsas em velhas cadernetas e resolvi publicá-las aqui. Com exceção de um ou outro pensamento tolo, e de algumas platitudes dispensáveis, não me envergonho dessas linhas. Elas são um testemunho da minha “adolescência estrangulada”, e um prelúdio do que seria o início da minha vida adulta.

“Escrevo. E ao fazê-lo é como se reconstituísse os filamentos de meu coração doente”.
* * *
“O ato de escrever é essencialmente um ato solitário, e isso, de certo modo, agride as pessoas. Não as culpo. Pelo contrário. Encaro sua hostilidade com ares de resignação. Afinal de contas, ninguém é obrigado a aceitar a loucura dos outros. Eu mesmo às vezes me pego olhando para uma atividade alheia de modo preconceituoso, sem que a pessoa em questão tenha feito algo de ruim para me atingir. Portanto não posso ser agressivo com quem não suporta me ver escrevendo. Escrever é nadar contra a maré, e quando se nada contra a maré, há sempre alguém disposto a nos fazer voltar atrás – a impedir que nos afoguemos”.

* * *
“Hoje, enquanto esperava pela chegada de pães frescos no supermercado, pensei em como não sou uma pessoa difícil, mas como também não sou fácil. Sou raso de tão profundo. É isso! Ou melhor: De tão profundo, chego a ser raso. Sei lá! Dá na mesma! Tudo o que eu escrever aqui deporá contra mim mais tarde. Portanto tenho de tomar cuidado. Mas não pretendo bancar o covarde. Minha cabeça funciona sem parar – a mil por hora, para empregar um clichê. (Vou fechar a janela porque os pernilongos estão invadindo o quarto.) Pronto. Eu dizia que sou raso de tão profundo, e que meus pensamentos me obsedam. Principalmente meu medo da morte. A sensação de que a morte me cerca causa-me pavor. Vou usar de outro chavão gigantesco: Sou jovem demais pra morrer velho. Ou seria o contrário? E escrever? Escrever é viver, ou é uma maneira bem estúpida de fugir à vida? Eu sinceramente não sei. Só sei que preciso me manter atento, para não me calar de uma vez por todas. Isso seria muito ruim. Também preciso cuidar para não me viciar em diários. Diários me assustam. Diários me parecem invariavelmente um ato desesperado. Morte aos diários!”
* * *
“Tenho escrito algumas linhas bobocas no computador e esporadicamente a lápis, em papéis avulsos. Ora delas resultam contos, ora lamentos quase insuportáveis, de tão melancólicos. Alguns escritos eu tenho preservado para análise posterior, as quais me permitirão saber se de fato o que escrevi é aproveitável ou simplesmente um lixo completo. Se bem que até hoje não possuo juízo formado sobre contos que escrevi há três, quatro anos atrás. (Aliás, a expressão “há tantos anos atrás” me parece caracterizar um pleonasmo, mas uso-a assim mesmo, pois às vezes ela se faz necessária para dar ênfase à passagem do tempo).

Encher uma página de palavras sempre me dá prazer, ainda que o texto seja uma porcaria. Esse vício, contudo, é extremamente prejudicial a qualquer pessoa que queira escrever bem, pois ajuda a tornar o redator mais relapso e, conseqüentemente, menos criterioso com seus próprios escritos.

Eu também já escrevi em outro lugar que a pior parte do trabalho de um escritor é reler o que escreveu. Isso pode destruir carreiras se o sujeito não possuir o mínimo de jogo de cintura. Tenho feito o seguinte: procuro não ler um texto imediatamente após sua composição, para me preservar de uma eventual “depressão pós-parto”. Isso geralmente funciona, a não ser que o texto seja deveras ruim. Então só volto a minha cria horas, dias, ou semanas depois, sempre lutando contra um impulso natural de querer retomar o fruto engendrado o mais rápido possível. Essa luta é também contra minha ansiedade crônica, que me prejudica até quando estou em pleno processo criativo. Levando isso em conta, acredito que a ansiedade não me auxilia em absolutamente nada, muito menos quando estou compondo um texto literário - ao contrário do que afirmei em um de meus relatos de há não muitos dias”.

* * *
“Clarisse Lispector dizia que nunca relia seus textos depois de prontos, pois quando o fazia sempre sentia nojo; nunca achava que estava bom. Mas eu não sou Clarisse Lispector. Não há comparação possível. Clarisse era um talento nato e irrefreável. Por mais que lhe colocassem amarras, ela continuava a criar maravilhosamente. Já eu duvido do meu talento diariamente. Tenho medo de dar com os burros n’água, e quem tem medo não consegue escrever – a própria Clarisse repetia isso aos jovens escritores que lhe pediam uma opinião a respeito do trabalho deles. Com medo não há literatura. Literatura alguma brota no campo infértil do medo. É preciso libertar-se dos próprios medos e limitações de quaisquer espécies para poder fazer boa literatura. E eu não sei se estou preparado para isso. Escrever sobre a incapacidade de escrever também não me interessa. Muitos grandes autores já o fizeram com maestria. John Fante, com “Pergunte ao Pó”, e Fernando Sabino, com “O Encontro Marcado”, para citar dois exemplos totalmente díspares. Se bem que boa parte da Literatura é composta de reiteração, de releituras e de intertextualidade. Enfim, Literatura é conhecimento ao contrário – é chão repisado sem propósito”.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Algumas cinematográficas III


O Livro de Eli – Mais um filme em que um “cavaleiro solitário” vaga por uma terra devastada em busca de vestígios de civilização. Denzel Washinton é o paladino da vez. Durão e justo, ele avisa seus adversários dos perigos que correm ao desafiá-lo. Em vão, obviamente. Os malfeitores que cruzam seu caminho são massacrados, e tudo é filmado de maneira bastante estilizada (leia-se pouco inventiva) pela dupla de diretores, os Irmãos Hughes – responsáveis pelo interessante Do Inferno.

Denzel / Eli carrega consigo o último exemplar da Bíblia Sagrada, que por sua vez é cobiçado pelo vilão interpretado por Gary Oldman. Este acredita que o livro possui poderes que lhe permitiriam controlar as pessoas, e então encarrega seus capangas de roubá-lo. Mas a tarefa se mostra mais complicada do que ele supunha. Eli é um tipo de messias disposto a tudo para preservar o livro em cujas páginas estão as diretrizes para uma vida boa e justa. E, como em todo filme de ação que se preze, ele encontra uma partner jovem, bela e rebelde, que o ajudará a chegar ao povoado em que as lições da Bíblia poderão ser passadas adiante.

Pode-se fazer várias leituras do filme. É possível considerá-lo tanto uma crítica ao fanatismo religioso quanto apologia ao cristianismo. Me pareceu extremamente conservador. Algo como: só existe salvação em Cristo. (Para tornar a sessão suportável, encarei o enredo genericamente como um elogio da leitura, do conhecimento.) E por mais que os diretores tenham tentado dar uma roupagem cool ao filme, tudo resulta muito cafona.
***
Chico Xavier – A tão alardeada cinebiografia do médium mais famoso do Brasil chegou às telas do cinema e tem atraído um grande número de espectadores. O fato é que Daniel Filho, diretor do filme, não deve estar surpreso com o bom desempenho de Chico Xavier nas bilheterias, uma vez que se trata de um projeto meticulosamente calculado para o sucesso comercial. Um personagem carismático. Um roteiro bem amarrado. Atores da TV Globo. Emoção e humor “na dose certa”. Elementos presentes no filme de Daniel Filho – e praticamente a norma que rege quase a totalidade das fitas da Globo Filmes.

O que se vê durante as duas horas de duração do longa é basicamente uma hagiografia. Em menino, Chico sofria com as visões e as vozes do além a que apenas ele tinha acesso. Já na adolescência, o surgimento de seu “guia espiritual”, Emmanuel, lhe dá certo conforto e o prepara para a completa aceitação de sua sina: ajudar ao próximo. Cônscio de seus “poderes”, Chico passa a usá-los para, por exemplo, exorcizar demônios e psicografar mensagens de mortos famosos e anônimos. Logo a fama do médium corre o mundo. Ele passa a atender a pessoas vindas das mais variadas regiões, o que atrai a atenção da imprensa e gera investigações sobre a autenticidade de seus poderes paranormais.

A maioria das cenas que mostram o protagonista na velhice se passa num programa de entrevista que serve de base para todo o roteiro. Nelas, brilham as figuras de Tony Ramos, o diretor de TV, e Nelson Xavier, o intérprete do Chico idoso.

Ao final, resta a sensação de ter assistido a uma dramatização de programa jornalístico, como aquelas do extinto Linha Direta da TV Globo. Produção caprichada, interpretações esmeradas, roteiro ok. Ou seja, nada memorável.
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Ilha do Medo – Adaptação do romance Paciente 67, do americano Dennis Lehane, por um dos maiores cineastas vivos dos EUA: Martin Scorsese. Mais uma vez, é Leonardo DiCaprio quem interpreta o protagonista, um detetive federal que, juntamente com seu parceiro, Mark Ruffalo, é incumbido de investigar o desaparecimento de uma paciente de um manicômio situado numa ilha em Boston, a Shutter Island. Ocorre que, o que poderia resultar num suspense convencional, se torna algo bem mais interessante graças à genialidade de Scorsese, artista que domina como poucos as técnicas cinematográficas e conhece profundamente a história do cinema. Temos então um thriller psicológico em que a veracidade das imagens é sempre dúbia, em que realidade e sonho se confundem, e onde as identidades são sempre imprecisas, mutáveis.

Todo o elenco está muito bem. Destaque para as atuações de Leonardo DiCaprio, Ben Kingsley, Max von Sydow e Jackie Earle Haley.
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Como Treinar o Seu Dragão – Um garoto desengonçado chamado Soluço vive numa vila de vikings. Seu pai é um grande guerreio e líder da comunidade. A maior ameaça à prosperidade da vila são os dragões, que vivem realizando ataques surpresas que se desdobram em grandes batalhas. A falta de talento para a guerra faz com que Soluço seja motivo de chacota entre os habitantes da vila, para decepção de seu pai. Isso só muda quando o garoto captura um “Fúria da Noite”, espécie de dragão mais temida pelos vikings, e aprende a como domá-lo.

Soluço passa a aplicar as técnicas aprendidas na convivência com o Fúria da Noite Banguela nos treinamentos nas aulas de combate a dragões da escola viking. Isso faz com que ele conquiste o respeito da comunidade e seja visto como um futuro grande guerreiro. O maior desafio de Soluço será convencer a todos de que os dragões não são seres malignos, e que a convivência entre eles e os humanos pode ser pacífica.

É esse o entrecho da última e bem-sucedida animação da Dremworks. Com esse argumento inspirado no livro homônimo de Cressida Crowell, os diretores Chris Sanders e Dean Deblois criaram um filme terno, engraçado, e com ótimas cenas de aventura. É mais um acerto dos produtores da Dremworks, que a cada filme tenta superar - ou ao menos igualar – a excelência criativa da Pixar, sua maior rival.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

A Entrevista de Lula na Band


O programa Canal Livre, da Band, exibiu ontem à noite uma entrevista exclusiva com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A conversa ocorreu em Brasília, no Palácio do Planalto, o que favoreceu muito o entrevistado. Se o encontro tivesse ocorrido em “território neutro”, talvez os jornalistas Joelmir Betting, Fernando Mitre, José Luiz Datena, Boris Casoy e Antonio Telles não tivessem se mostrado tão timoratos diante de um Lula seguro de si e articulado como nunca.

Mas, justiça seja feita, os entrevistadores bem que tentaram “cutucar” o presidente e extrair dele revelações sobre assuntos espinhosos - mensalão, censura, reformas várias etc. Entretanto, bom político que é, Lula soube escapar a todas as investidas, e ainda por cima reverteu alguns fatos a seu favor.

Como de costume, Lula colocou a culpa de muitos tropeços de seu governo em terceiros. Disse, por exemplo, que a reforma trabalhista só não aconteceu porque os setores interessados não chegaram a um acordo. Quanto às tentativas de controle da imprensa por parte de governistas, Lula objetou que, se houve propostas nesse sentido, elas surgiram de debates democráticos entre algumas associações de jornalistas, e que ele próprio acredita que os únicos atores que podem regular a imprensa são os telespectadores, leitores, e ouvintes.

Sobre a candidata do PT à presidência da República, Dilma Roussef, Lula afirmou que o fato de ela estar concorrendo é uma vitória da democracia, e que a ex-ministra vai surpreender nessas eleições. Aliás, a palavra democracia foi uma das mais citadas pelo presidente, que declarou não ter sequer cogitado a possibilidade de pleitear um terceiro mandato porque “com a democracia não se brinca”. Segundo Lula, esta foi uma das muitas convicções que ele adquiriu ao longo de sua trajetória. Outra afirmação acertada do presidente foi a de que a população brasileira jamais aceitaria qualquer tentativa de agressão à nossa democracia conquistada a duras penas e finalmente consolidada. Tal asserção não causaria nenhum tipo de estranhamento se não viesse de um político que apóia (e se diz amigo) de líderes totalmente antidemocráticos como Fildel Castro, Hugo Chávez, e Mahmud Ahmadinejad.

Essa pode não ter sido a “entrevista dos meus sonhos” com o nosso presidente, mas com certeza foi uma boa entrevista. Sobretudo porque Lula demonstrou que amadureceu bastante nesses oito anos de governo – apesar de ainda ostentar certa arrogância e megalomania.

domingo, 28 de março de 2010

Olhos Castrados

Para os outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o grito do galo ou ao ouvirem o céu estrelado. Em geral, apreciam os “prazeres da carne”, na condição de que sejam insossos.

(Trecho de História do Olho, de Georges Bataille.)

***
Sonho nº 12

Como de hábito, eu tinha passado as dezoito horas em que me mantivera acordado em constante conflito comigo mesmo. Naquela noite, o sono me engolfou por volta das quinze para as duas, depois de eu ter ficado meia hora pensando em como fazia tão pouco tempo que eu não adormecia sem antes me persignar e agradecer a Deus pelo meu bem-estar e o de meus familiares. Aos quatorze anos, eu era um menino temente a Deus, que sofria de insônia, e só se apaixonava por “garotas problemáticas”. Hoje não bendigo nem maldigo Deus nem o diabo, alterno noites de insônia crônica com períodos de folgada hibernação, e procuro sempre renovar meu amor pela mesma mulher: aquela que criei para mim mesmo tão-logo me vi envolvido pelas coisas do amor e do sexo (e da morte, claro!) há mais ou menos vinte anos.

Foi com essa mulher que sonhei aquela noite. Era então apenas uma amiga que tinha pudor em chorar apoiada em meus ombros. Eu era seu confessor mais fiel. E o mais que ela sabia sobre mim era que eu disfarçava minha solidão – mal e porcamente, ressalte-se – enviando mensagens de esperança e de adeus em garrafas de cerveja para ninguém. No sonho eu me negava a admitir que estava irremediavelmente apaixonado por ela. Para não correr o risco de ser desnudado pela força arrebatadora do seu olhar, eu tentava me manter o mais distante possível do seu campo de visão. Às vezes baixava a guarda e era surpreendido por uma investida sua que, por mais que eu relutasse em aceitar, acabava por extrair de mim revelações que só viriam à tona em sonhos ou em pesadelos febricitantes. Nossos momentos de maior intimidade se davam quando ela chorava e dizia desconhecer o cerne de sua dor. E o mais próximos que chegávamos da lubricidade era quando nos entregávamos desvairadamente à nossa idiotia galhofeira que nos provia de imensos e prazerosos risos.

Certo dia ela desapareceu resguardada pela neblina do sonho. E, para minha surpresa, seus amigos mais próximos me atiraram pedras. Diziam que eu só podia ser cego para não perceber que ela se afastara porque sentia que eu nunca corresponderia a seus anseios de mulher apaixonada. Fiquei furioso. Arranquei meu coração à unha e o guardei dentro de uma gaveta. Ela nunca mais voltou. E eu simplesmente acordei.

sábado, 20 de março de 2010

Aparições

"Desde sempre, dormíamos cada irmão em seu quarto. Cumpri o dever de ser homem e deitei-me sozinho (...) Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava."


(Trecho do romance Aparição, do português Vergílio Ferreira)

***

Sonho nº 3

Ontem sonhei com Isabela Rosselini e perdi a hora para o trabalho. Encontrei-a numa festa de amigos comuns e pus-me a falar de minha admiração por ela desbragadamente. Era uma reunião íntima num apartamento modesto porém aconchegante, e - absurdo dos absurdos - os anfitriões eram seres sem rosto. Isabela foi gentil e atenciosa, mas parecia não compreender muito bem meu inglês middle brown. Descrevi o quanto seu trabalho me afetara em filmes como Veludo Azul e Amantes, por exemplo, enquanto bebíamos uma garrafa de vinho branco. Tamanho era meu entusiasmo ao falar de como suas performances em determinadas cenas eram de uma beleza quase etérea que me levava às lágrimas (ref. A cena da despedida com Joaquim Phoenix, na escada do prédio, em Amantes), que a certa altura Isabela pareceu descrer de minha sinceridade. Mas não havia a menor mossa de cinismo em minha postura, tudo o que eu desejava era dizer à Isabela o quanto eu a amo; o quanto admiro sua beleza clássica e seu domínio dos silêncios em cena. Eu bem que tentei transmitir isso a ela e acho que não me saí muito bem porque, sempre cortês e sensual, ela sorria e dizia oh, thank you! Kind of you, dear! Até que seu marido apareceu para apanhá-la. Assim que o vi pensei: esse sujeito não me é estranho, apesar de seu rosto estar oculto por uma esfera branca e lisa, tal qual os dos donos do apartamento. E mal o casal se despediu, eu acordei com o berro do meu celular. Era meu patrão, que, furioso, me chamava à responsabilidade.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Highsmith-Dickinson-Skylab



A escritora americana Patricia Highsmith (1921-1995), criadora da série de romances policiais do personagem Ripley, em foto dos anos 40.



Existe um árido prazer
Que da alegria difere
Como o gelo, do rocio -
Embora o mesmo elemento sejam.

Para a flor, o orvalho é festa,
e a geada é desprazer -
O mais fino mel congelado
Não tem valor para a abelha.

(Emily Dickinson, in Poemas escolhidos, 2008, L&PM)



Rogério Skylab canta "La mer", este segundo hino francês, de Charles Trénet.


sábado, 27 de fevereiro de 2010

Diário de um chimpanzé VII

“O tempo que me resta, se preenchido por ansiedade, não me é suficiente”.

Tony Monti / eXato acidente


A qualquer momento ele sabe que pode ser acometido de uma súbita sensação de angústia que num átimo diluirá tudo aquilo que ele reconhece como realidade e o lançará num completo estado de anomia. Pode acontecer enquanto estiver se preparando para dormir, ou enquanto estiver voltando do trabalho; pode ser que ele esteja só, como também pode ser que tenha de se esforçar para não deixar transparecer toda essa angústia caso ocorra de ela eclodir quando estiver acompanhado.

Ele sabe que a tristeza é uma forma de egoísmo e se ressente disse toda vez que imerge numa dessas bad trips caretas. Às vezes tudo começa com um formigamento que nasce na região do abdômen e vai migrando aos poucos até alcançar os ombros, descer pelas suas costas e se alojar entre as omoplatas. E enquanto essa espécie de metástase se dá, ele tem de se conter para não arrancar os próprios olhos ou se cortar de algum modo com o fio lacerante das questões sem respostas que o golpeiam e do sentimento de inutilidade que abafa qualquer possibilidade de esperança.

Para afastar de si todo esse abstracionismo deletério, ele tenta se concentrar nas pequenas tarefas do dia-a-dia. Levanta cedo e vai trabalhar. Cumprimenta os conhecidos na rua. Cede seu lugar aos mais velhos no ônibus. Trabalha com satisfação e afinco, embora acredite que sua dedicação não seja devidamente reconhecida. (Preferia não fazê-lo?) Acompanha com interesse e benevolência tudo o que ocorre a seu redor, toda a faina cotidiana. Participa dela. Sente-se tocado pelo “prazer animal de existir”, mas está muito longe de se tornar o homem simples que um dia pretende ser.

***

Enquanto se apronta para trabalhar numa manhã fria e silenciosa de segunda-feira, ele fica sabendo do desaparecimento de um avião de passageiros que saíra do Rio de Janeiro com destino a Paris. Havia mais de duzentas pessoas a bordo: homens, mulheres e crianças. Logo o mistério é desfeito e todos são informados de que o avião caiu durante a travessia do Atlântico, num “ponto cego” onde não existe cobertura de radares aéreos. Desastres de avião sempre o abalaram, e com esse não é diferente. Pensa na desdita dos passageiros, no seu desespero; o sofrimento dos parentes das vítimas o comove sobremaneira. Logo a ele, sujeito tão telúrico, que nunca andou de avião. Talvez porque ele não acredite em vida após a morte. Talvez porque ele acredite que para as mais de duzentas pessoas mortas no acidente tudo tenha terminado daquela maneira brutal, no fundo do oceano Atlântico, sem que nenhuma entidade superior, nenhum deus se apiedasse deles.

***

Em casa todos demonstram seu orgulho pelos pequenos progressos que ele anda fazendo. O fato de ter passado a integrar a “população economicamente ativa” contribui para a diminuição dos embates com os pais. Agora não é mais um diplomado sem emprego ou um patético aspirante a escritor, e sim apenas um assalariado comum, o que os enche de orgulho.

Mas passa muito longe de ser um filho exemplar. (Mesmo porque, ele pensa, filhos exemplares precisam de pais exemplares). Está longe de ser um sujeito “bem resolvido”: há muitos problemas concretos que o atormentam. Problemas familiares, sentimentais, existências. Conhece bem a si próprio, sabe das suas muitas limitações. E existem momentos em que essa autoconsciência se torna um fardo tão pesado que ele até sente dificuldades em se encarar no espelho.

Ele classifica toda essa angústia de ansiedade e imagina que isso irá matá-lo em breve. Por enquanto ainda não encontrou antídoto eficaz. Apesar de ter deixado de ser um garoto há um bom tempo, ele ainda não sabe viver. Quer, como qualquer ser humano, o melhor da vida, a serenidade, o gozo, o sumo. Mas sente muita culpa, não sabe respirar direito. Sente muita dor, e, como repudia o menor laivo de autocomiseração (esse câncer!), ainda pretende rir disso tudo.


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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Controle seu intestino

(um post filosófico e anti-higiênico)

Alguns de vocês dirão que perdi o juízo, mas nem isso me impede de escrever a sentença seguinte: A busca desenfreada pela qualidade de vida assola nossa sociedade.

Eu sei que você, distinto leitor, nada tem que ver com a legião de semi-analfabetos que garante a expansão do mercado de livros de auto-ajuda e demais títulos "úteis", fofos e gratificantes que atulham as prateleiras da meia dúzia de livrarias de que dispõe nossa grande nação. Também sei que você não sofre de acefalia – mal que campeia entre a maioria dos chimpanzés de classe média que enchem os carrinhos no supermercado, “passeiam” no shopping toda semana, trocam de carro e de aparelho celular todo ano, têm dois ou mais cartões de crédito, são vítimas de falso seqüestro, entre outras absurdidades. E é justamente por isso que me dirijo a você, pois sei que a chance de ser compreendido é maior. Não que isso tenha grande importância, mas a verdade é que até o mais cínico dos cronistas deseja encontrar leitores que se identifiquem com o conteúdo de seu discurso e /ou sejam capazes de criticá-lo com alguma habilidade.

O livro de auto-ajuda é, a meu ver, o objeto que melhor representa o estado em que a sociedade de consumo se encontra atualmente, o nosso zeitgeist. Os conselhos e as parábolas didáticas encerrados nas páginas dessas publicações denotam o grau de imbecilidade e alienação em que boa parte da população está mergulhada. Tudo o que importa é a busca pela qualidade de vida (leia-se felicidade), que pode assumir as mais variadas formas, dependendo do sujeito que a almeja. E o fato de eu ter deparado hoje na livraria com um livro intitulado Controle seu destino acabou por suscitar estas reflexões.

Não cheguei a folhear o referido livro; o que me manteve absorto por alguns instantes foi a suposição de que, se o título do livro fosse Controle seu intestino em vez de Controle seu destino, ele seria muito mais interessante. Livros de auto-ajuda deliberadamente utilitários, que orientam o leitor a realizar determinadas tarefas por conta própria, ou a se prevenir de doenças, por exemplo, não despertam minha antipatia. Os títulos que merecem meu total desprezo são aqueles que vendem uma “fórmula de felicidade”, que ensinam o sujeito a se tornar tão feliz quanto um chefe de família de propaganda de margarina.

A linguagem simplista e estúpida presente nesses livros está alinhada à adotada em determinados programas de tevê que têm como propósito ajudar o espectador a (supostamente) viver melhor. Oprah Winfrey entende um bocado disso. Outra apresentadora que se arvora em detentora da fórmula do bem-estar é a inglesa Gillian McKeith, cujo programa – também exibido pelo canal GNT – consiste em reeducar os hábitos alimentares dos britânicos. Numa das edições do Você é o Que Você Come, Gillian listou os 12 alimentos mais nocivos à saúde das pessoas, e, entre as muitas declarações categóricas que deu durante o programa, a que mais me chamou a atenção foi a de que apenas as fezes daqueles que se alimentam mal fedem. Ou seja, a merda de quem “come bem” é inodora, quiçá até perfumada, imagino. As pessoas só cagam fedido porque querem, afirma a apresentadora.

(Penso nos que dizem se alimentar apenas de luz. Sim, pois existem tais pessoas, que não ingerem nenhum tipo de alimento: vivem de luz. Qual será o odor da bosta deles? Aliás, se eles não comem nada, então nem devem produzir bosta nenhuma).

Há os vegetarianos radicais, que se julgam seres superiores à maior parte da humanidade, composta por bilhões de carnívoros empedernidos. Agem como se o fato de não comerem nenhum alimento de origem animal fosse uma espécie de ascetismo, como se Deus os preferisse aos demais mortais comuns. Há também os fanáticos da estética, que cultuam o corpo com ardor religioso, e não o “conspurcam” com alimentos não-saudáveis nem com o ócio. Os doutrinadores do sexo, que estão aí para nos ensinar a transar da maneira mais higiênica e eficaz, para que possamos sentir muito prazer e amiúde, mas sempre com muita segurança e assepsia. Sem esquecer os ditadores da moda, que forjam determinados patrões de beleza que excluem a maioria das pessoas desse mundo de gozo pleno, de glamour.

Autores e leitores de auto-ajuda e "literatura fofa"; apresentadores de tevê “do bem”; radicais da alimentação e da estética; doutrinadores do sexo; ditadores da moda e quejandos – corja que quer nos ensinar a viver bem, que quer nos vender a fórmula da felicidade. Por favor, nos deixem ser infelizes em paz.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Entrevista com o livreiro

O jornal Folha de S. Paulo publicou na edição de hoje uma ótima entrevista com Paulo Herz, dona da Livraria Cultura. Nela, o livreiro discorre, entre outros assuntos, sobre o futuro do livro, o problema da falta de leitores no país, e como a recente crise econômica mundial não afetou seus negócios.

Abaixo, reproduzo algumas declarações de Herz que chamaram minha atenção:

A novidade dos e-readers

“Em março vamos disponibilizar 150 mil títulos em formatos para e-readers. Eu acho que é uma opção a mais para o leitor. Não vamos vender o hardware, só conteúdo.”

O futuro dos e-readers

“Não sei bem, está tudo muito cru, muito no início, e não sei bem como serão as vendas. Acho que bem pequenas.

“Acho o e-reader uma ferramenta fantástica, mas daí a virar o substituto do livro... Já vi esse filme antes, já vi o VHS chegar e dizer que ia acabar com o cinema. Já vi, na Feira de Frankfurt, dizerem que o mundo ia virar CD-ROM, e o mundo não virou CD-ROM. Dois anos depois não se falava nisso, as editoras me falavam: "Pô, perdemos um dinheirão, admitimos um monte de gente e não deu em nada". A sensação que eu tenho é que a gente está vendo uma nuvem, que vai passar. Pode ser que chova, mas, num curto prazo, não vai acontecer nada.”

E-reader x livro de papel

“Imagina um advogado que vai fazer uma audiência no Acre e tem que levar aquela papelada do processo. Um editor de uma grande editora de livros, que recebe 50 livros novos por semana de todo mundo, para resolver se vai publicar ou não, ter isso digitalizado e num voo de 12 horas para a Europa ir dando uma olhada no que interessa ou não. É de uma utilidade fantástica, mas não sei se é a melhor ferramenta para o leitor de livros. E tem outra pergunta que eu faço: fará novos leitores? Quem não lê livro de papel, não vai passar a ler por causa do livro eletrônico.”

A formação de leitores

Acredito que quem faz leitor são os pais, inegavelmente. Os jovens leitores são filhos de leitores. Dificilmente aparece uma criança ou adolescente que não tenha os pais leitores. A grande campanha que na minha opinião deveria ser feita pelo governo é mais ou menos assim: "Se você não lê, como quer que seu filho leia?". Essa é a pergunta que deve ser feita. Porque os meus filhos "liam" sem ser alfabetizados, pegavam o livro na mão para imitar os meus gestos.

O faturamento da livraria

Segundo informações do repórter Fábio Victor, a Livraria Cultura possui atualmente 5 lojas (cinco em São Paulo e as outras em Campinas, Recife, Porto Alegre e Brasília), e pretende inaugurar mais três em 2010: em Salvador, Fortaleza e uma segunda na capital federal.

A rede tem mais de 3 milhões de títulos em catálogo e 1.400 funcionários (serão mais 400 para as três novas lojas). Em 2009, obteve faturamento de R$ 274 milhões, crescimento de 18% em relação a 2008.

“As vendas pela internet representam 16% do faturamento em 2009. É a nossa segunda loja. A primeira é a da Paulista (...) [No período mais grave da crise, entre 2008 e 2009] Nós crescemos legal, 18%.

A grande ameaça

A grande ameaça que existe é a não-formação de novos leitores. As famílias [ricas] que tinham cinco filhos há um século, hoje ou não têm nenhum ou têm um, no máximo dois. O número de leitores cresce pouco, se é que cresce. Se você pegar o universo da classe D, esse pai não tem orgulho nenhum do que faz, nem a mãe. Então a compra de um lápis significa para ele um investimento na educação de um filho. Acho isso extremamente bacana, é um raciocínio válido, mas sabemos que é insuficiente. O apagão do ensino taí, a dificuldade que temos de admitir gente é homérica. A gente aplica testes básicos dos básico de conhecimentos gerais razoáveis. A gente quer que o candidato leia jornais, uma revista, que seja atualizado. Você pergunta para ele quem escreveu "Dom Casmurro", metade levante e vai embora. E são todos universitários formados. E não sou o único que tem esse tipo de problema. Falei com outros empresários, de outras áreas, que têm exatamente o mesmo problema. Gente que não encontra engenheiros, que não encontra médicos. Veja o resultado do Enem. Está difícil acreditar. Esse crescimento anunciado é sustentado? Ou é um momento de paternalismo que está aí? Estou procurando gente [para as lojas] no Nordeste, tem gente que não quer ser registrada. Perguntamos por que, e dizem: "Ah, porque eu recebo a Bolsa [Família], minha mulher recebe a Bolsa. E a população cresce nesses lugares do Nordeste. E gente esclarecida que pode ter filhos está tendo cada vez menos, se é que está tendo. Conheço casais de amigos, leitores, muito bem casados, felizes, que preferiram não ter filhos.

Livros usados

“Minha mãe começou a livraria achando que muito livro valia a pena ser lido e não ser comprado. Ela começou alugando livro. Sou francamente favorável ao comércio de livros usados. E há espaço para todo mundo. (...) O que eu condeno é que um irmão mais novo não possa aproveitar o livro do irmão mais velho na escola. O que é que mudou na aritmética e na geografia? Por que tem que jogar fora esse livro. Hoje o governo até faz uma campanha para o aproveitamento [do livro didático], extremamente salutar, mas não é só. Por que o livro novo tem que ter um leitor por exemplar? Não tem biblioteca. Um livro, um leitor, é pouco.”

Bibliotecas públicas

[Sobre a nova Biblioteca de São Paulo]

“O [secretário estadual de Cultura, João] Sayad me falou que eles se inspiraram muito no modelo da [Livraria Cultura da avenida] Paulista, que é um local onde as pessoas ficam. Fiquei orgulhoso. É possível criar um lugar onde as pessoas se entretêm, têm opções para aprender e ver alguma coisa de concreto. A coisa mais bacana que achei é que ela vai funcionar nos fins de semana. Gente, o Brasil é o único país em que as bibliotecas fecham no fim de semana, quando os pais podem levar os filhos.”

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

*Post de outros carnavais

Findos os quatro dias de folia, voltamos à nossa rotina de chimpanzés.

É hora de fazer um balanço da festa: contar os mortos nas estradas, os mortos a tiro, os bêbados mortos, os amores mortos... Triste contabilidade, enfim. Mas sem novidades no front.

Os puxadores de samba (Jamelão odiava que o chamassem assim; dizia que era cantor e ponto), os mestres-salas, as porta-bandeiras, os mestres de bateria, os carnavalescos cairão no ostracismo durante doze meses, após o quê emergirão do anonimato para serem novamente celebrados por todos nós. As rainhas de bateria profissionais (Luma de Oliveira, Luiza Brunet, Adriana Bombom, Viviane Araújo etc.) nos privarão de seu charme e gostosura durante todo esse tempo. Os orixás também voltarão à clandestinidade, como os camelôs e as putas. Nossa sociedade predominantemente católica só os tolera durante o carnaval, quando então podem ser enredo de escola de samba, ir atrás dos trios elétricos (se tiveram 600, 800 reais para comprar um abadá, claro), se vestir de mulher e brincar num bloco qualquer, whatever. Podem até aparecer na televisão - o que, em última análise, os legitima.

***
Luiz Zanin, crítico de cinema do Estadão, em post recente em seu blog, lembrou que A Lira do Delírio é, provavelmente, o melhor filme brasileiro cuja trama se passa durante o Carnaval. Concordo. Walter Lima Jr. fez um desses filmes que nos encantam pela maneira "despretensiosa" como foram filmados. Tudo parece muito natural: os atores flanam pelos cenários, inebriados, eufóricos, apaixonados. Nada é estilizado. Não é cinema-favela, nem cinema-agreste. É CINEMA e fim de papo.

Convém ressaltar que esse tipo de cinema (naturalista, marcado pela improvisação) não é o único que me interessa. Nem tampouco estou aqui para fazer a defesa irrestrita do cinema nacional. Ocorre que A Lira do Delírio é um projeto nessa linha de dramaturgia calcada na parceria ator-diretor - em que o roteiro é criado conjuntamente, com o mínimo de premeditação - que deu certo. Não por acaso o filme se tornou um clássico.

E mais não digo. Porque já estou ficando pernóstico.(Graciliano Ramos gostava desse adjetivo: pernóstico; seus livros estão cheios dele. Foi assim que aprendi a gostar também.)

*Publicado originalmente em 26 de fevereiro de 2009.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Contos embrionários I

Vocês não me são estranhos

As carrancas virtuais dos meus amigos não me assustam. O silêncio pesado dos meus seguidores desconhecidos também não. Temer semelhantes coisas está além de minha capacidade. A promiscuidade reinante nas redes de relacionamento me causa no máximo estranheza. Tudo o que omito dos meus “amigos virtuais” me agride – sinto-me um grande cretino quando deixo de compartilhar um aspecto qualquer de minha intimidade com os demais integrantes da rede. Tenho um prazer sádico em não responder a e-mails e ignorar comentários dos que me seguem e de quem eu sigo. Demoro a confirmar a amizade a quem me adiciona como amigo só pela satisfação de saber que causo ansiedade e desconforto ao solicitante. A mitomania é minha maior bandeira on-line. E o efeito mais nocivo dessa minha inclinação irrefreável à mentira é a desconfiança gerada por cada asserção legítima que solto na web - o que me aborrece e diverte ao mesmo tempo. O exemplo mais recente desse tipo de qüiproquó aconteceu há cerca de três ou quatro meses quando, num acesso incomum de sinceridade, relatei de maneira sucinta um acontecimento extraordinário que acabara de se dar comigo. Enquanto tomava meu segundo banho do dia – pois tomo dois banhos diários invariavelmente, um pela manhã, e outro quando chego do trabalho, ali pelas sete da noite – descobri, ao massagear meu coro cabeludo coalhado de xampu condicionante com ambas as mãos, a fim de produzir espuma em abundância, uma pequena protuberância bem no topo da minha cabeçorra ovalada. Palpei a região saliente durante um bocado de tempo, e tudo teria sido facilmente esquecido caso eu não tivesse experimentado uma ligeira dor aguda a cada vez que pressionava com um pouco mais de força o calombo. Do chuveiro mesmo gritei minha mulher, que demorou alguns minutos a vir em meu socorro porque estava ocupada com a correção de uma penca de trabalhos escolares. Ela é professora primária. Tão logo notou um elevado grau de desespero em meu chamado, minha esposa abandonou sua tarefa e invadiu o banheiro como um agente de polícia invade um cativeiro. Acompanhei aflito sua silhueta embaçada aproximar-se através da parede do box. Com as mãos entrelaçadas, eu formava uma cuia protetora sobre a cabeça como se desejasse guarnecer a moleira que se tinha fechado definitivamente havia quase quarenta anos. Minha mulher praticamente pulou sobre mim, decerto por ter pensado que os anos de sedentarismo e má alimentação finalmente tivessem resultado num grave enfarte. Contudo tratei de tranqüiliza-la e, sem lhe dar chances de elaborar qualquer tipo de pergunta, peguei sua mão direita e a coloquei sobre a parte abaulada da minha cabeça. O que é que tem isso?, ela perguntou, visivelmente irritada, mas não demasiado, de vez que conhecia meu pendor para a hipocondria desde nosso tempo de namoro. Dói, eu disse, e pressionei sua mão, que não chegava à metade do tamanho da minha, contra a região sensível, no intuito ilógico de lhe fazer experimentar a dor lancinante que eu sentia toda vez que repetia aquele gesto. Quase me mata de susto, baixou o tom de voz, recolhendo a mão examinadora até o peito galopante. Não era nada, repetia ela, enquanto eu insistia na hipótese de uma hérnia craniana, um traumatismo, ou uma outra anomalia qualquer. E se não consegui convencê-la de que algo maligno eclodira no alto da minha cabeça, ao menos lhe propiciei um prazer infantil traduzido numa longa e estridente gargalhada que só arrefeceu depois que iniciamos ali mesmo, no chuveiro, uma maratona de carícias cuja intensidade só havíamos experimentado em nossas primeiras manobras amorosas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Melhores de 2009 (III)

E, encerrando a postagem das listas de melhores do ano, seguem as sete obras-primas do cinema que me encantaram em 2009.

1 – Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder
2 – Ran, de Akira Kurosawa
3 – Os Incompreendidos, de François Truffaut
4 – Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rosellini
5 – Morte em Veneza, de Luchino Visconti
6 – Meu Ódio Será Sua Herança, de Sam Peckinpah
7 – Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho

Seis narrativas e uma espécie de “estudo” sobre a narrativa e a arte da representação (Jogo de Cena) que merecem ser vistos. Sete excelentes maneiras de se “perder tempo”.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Melhores de 2009 (II)

E dando seqüência às minhas listas de melhores de 2009, aqui vão os livros mais interessantes que li no ano passado.

Os títulos estão em ordem de preferência:

1 – A Sibila, Agustina Bessa-Luís
2 – Austerlitz, W. G. Sebald
3 – As Virgens Suicidas, Jeffrey Eugenides
4 – Notas do Subsolo, Fiodor Dostoiévski
5 – Juventude, J. M. Coetzee
6 – Diário de Um Velho Louco, Junichiro Tanizaki
7 – Histórias de Cronópios e de Famas, Julio Cortázar
8 – Bartleby e Companhia, Enrique Vila-Matas
9 – Fun Home, Alison Bechdel
10 – eXato acidente, Tony Monti
11 – Um Esporte e Um Passatempo, James Salter
12 – A Viagem do Elefante, José Saramago
13 – Indignação, Philip Roth
14 – Longe da Água, Michel Laub
15 – A Louca da Casa, Rosa Montero
16 – O Lugar Escuro, Heloísa Seixas

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Confissões de ano velho II

“Quanto mais claramente enxergamos este mundo, mais nos vemos obrigados a fingir que ele não existe”.
James Salter / Um Esporte e Um Passatempo

Em abril do ano passado eu me encontrava com a alma pesada. Acho que, na realidade, era meu corpo que estava inchado pelo excesso de ócio e por uma espécie de abstracionismo auto-indulgente. Em casa ou na rua, eu boiava ou flutuava ao invés de caminhar. Era paradoxal: como um corpo inchado e adiposo podia flanar por aí qual um ectoplasma? Não me ocorriam respostas nem soluções. Minha língua e meu humor afiados eram defesas cínicas de alguém desacreditado, alguém comprometido apenas com a própria miséria, que se fiava em pequenas esperanças, cartas e amigos antigos, e frases e gestos de efeito.

Lado a lado na parede do meu quarto, dois diplomas – o de conclusão do ensino superior, e o de participação e destaque num concurso literário de âmbito nacional – que não me serviam para nada. Apesar do esforço sincero que fazia para manter a cabeça erguida enquanto buscava conquistar espaço e ocupação (concursos públicos, mais concursos literários, entrevistas e entrevistas de emprego) num mundo decadente em que suas loas de progresso eram seus próprios estertores, eu sempre falhava; já começava a batalha previamente derrotado.

Mas então chegou o mês de maio e eu recebi um telefonema de um velho amigo ali pelas sete da noite. Ele me perguntou o que eu estava fazendo e eu disse nada de produtivo ou saudável - e isso bastou. Em menos de uma semana eu tinha um emprego, responsabilidades, direitos e deveres, enfim, uma ocupação para viver e morrer disso. De segunda a sexta feira, das nove às dezoito horas. Dar as mãos aos homens comuns e participar dessa ciranda.

Algum tempo de adequação à rotina (radicalmente?) alterada e às exigências do trabalho. Faça frio ou calor, sob sol ou chuva, é preciso acordar por volta das sete e meia, fazer a higiene matinal, trajar esporte-fino, colocar marmita / guarda-chuva / livro dentro da mochila, e tomar o ônibus para o centro da cidade. Quando batem as nove horas, é tempo de entregar-se à faina do escritório. Por sorte os companheiros de trabalho são pessoas muito boas; o dia-a-dia pode até ser estressante e ocasionar dissabores, mas nunca por conta deles.

Minha alma – esse apêndice metafísico onde se depositam todas as minhas angústias – continua pesada, mas agora não flutuo nem bóio por aí como uma sacola plástica. Tenho andado por entre a gente com os pés descalços e os bolsos (quase) vazios. Eventualmente queimo os pés no asfalto em brasa e procuro manter a cabeça erguida.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Os melhores de 2009 (1)

Hoje O Chimpanzé completa um ano de existência. E eu resolvi comemorar publicando minhas listas de favoritos de 2009. Primeiramente, segue a relação dos (meus) melhores filmes lançados em 2009.

1- Amantes, de James Gray
2- Gran Torino, de Clint Eastwood
3- Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino
4- Guerra ao Terror, de Kathryn Bigelow
5- O Lutador, de Darren Aronofsky
6- Inimigos Públicos, de Michael Mann
7- Up – Altas Aventuras, Pete Docter
8- Arraste-me para o Inferno, de Sam Raimi
9- Milk – A Voz da Igualdade, Gus Van Sant
10- Avatar, de James Cameron
11- Star Trek, de J.J Abrams
12- Se Beber, Não Case, Todd Phillips
13- Presságio, de Alex Proyas
14- *Para Aceitá-la Continue na Linha, de Anna Muylaert

Após compor a lista, me dei conta de que todos os filmes – com a nobre exceção de Para Aceitá-la.... - são made in USA, o que pode ser “explicado” pelos seguintes motivos: a) quase não tenho acesso aos melhores filmes europeus / asiáticos / sul-americanos (incluindo os nacionais), que podem ser vistos quase que exclusivamente nos festivais de cinema das capitais ou em salas destinadas a “filmes de arte”; b) não tenho o hábito de baixar filmes na internet, pois não disponho de meios para tanto; c) nem todos os filmes relevantes são lançados em DVD, e mesmo quando ocorre de serem bem distribuídos, eles nem sempre chegam às locadoras do interior; d) Hollywood continua soberana.

* Para Aceitá-la Continue na Linha é um telefilme exibido pela tevê Cultura em meados de dezembro do ano passado. Trabalho notável. Anna Muylaert é uma diretora invulgar. Quem viu Durval Discos sabe disso. Agora estou ansioso para ver É Proibido Fumar.