quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Ele

(Autorretrato de Salvador Dali)


Ele se lembrava de uma novela de Machado de Assis, A Parasita Azul, de que mais ninguém se lembrava. Conhecia uma região montanhosa no interior de Minas que mais ninguém conhecia. Ele criava cães de uma raça da qual ninguém ouvira falar. Visitava uma tia centenária que se encontrava abandonada a um asilo numa cidade afastada. Ele amava mulheres por quem homem nenhum se sentia atraído. Deitava-se com prostitutas de nenhuma fama. Ele cultivava plantas que nem no Brasil nem no Japão. Aventurava-se em corredeiras que nem de fotografias. Ele cozinhava pratos típicos de lugar nenhum. Via programas de tevê que nem de madrugada. Ele tinha um corte de cabelo que não tinha paralelo. Uma compleição física nunca reproduzida. Ele tinha conhecimento de um itinerário para Trancoso que ninguém mais. Assobiava uma canção de Caymmi como ninguém. Escrevia como ninguém. Nadava como ninguém. Ele tinha um jeito próprio de dizer não. Conseguia todos os favores que queria sem jamais ter de implorar. Ele era imediatamente reconhecido em qualquer lugar que fosse. Citava pensadores que nem na Idade Média nem na Renascença. Ele escrevia com as duas mãos. Chutava com as duas pernas. Tirava queda-de-braço com ambos os braços. Ele dormia apenas três horas por noite. Tinha sonhos eróticos com atrizes do cinema que nem em Hollywood nem na Boca do Lixo. Ele acreditava em santos anteriores à Bíblia. Adorava deuses que nem na Índia nem no Olimpo. Ele visitava páginas na Internet prestes a serem retiradas do ar. Ria de anedotas que nem Chico Anísio nem Groucho Marx. Usava de adjetivos que nem Dalton Trevisan nem Guimarães Rosa. Ele ia ao cinema em horários que ninguém mais. Freqüentava supermercados na alta madrugada. Ele chorava a morte de pessoas que ninguém conheceu, sequer ouviu falar. Ele sofria de alergias crônicas que nem os homens mais frágeis da Holanda nem os do Zimbábue. Contornava situações inexistentes. Trilhava atalhos inexistentes. Dizia, em voz alta, poemas inexistentes, de poetas inexistentes. Ele torcia por times de futebol que nem aqui nem em Liverpool. Fumava marcas de cigarro que nem a Sousa Cruz nem a Tabacaria de Fernando Pessoa. Contraía viroses que nem no verão mais intenso nem no inverno mais rigoroso. Ele apreciava vinhos que nem na França nem no Chile. Ele se lembrava de gols históricos que nem Pelé nem Maradona. Recordava marcas de automóveis nunca desde Ford. Ele se lembrava de uma viagem espacial sem registros na NASA nem em nenhum outro programa espacial. Teve filhos que ninguém nunca viu nem amou. Chorou a morte de heróis que revolução alguma conheceu. Ele nunca se esqueceu de onde viera. Trouxe consigo até os últimos dias a lembrança dos seus. Ele pediu para que apagassem as luzes ao saírem, mas ninguém o ouviu. Disse que também sentia medo de morrer como qualquer outro. Idealizou um mundo após a morte que nem Buda nem Jesus Cristo. Ele teve coragem de dizer o que todos desejavam dizer. Pediu desculpas por toda mágoa que causou. Ele, somente ele, provou daquilo que todo homem e homem nenhum. Só ele.

02/11/2006

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