segunda-feira, 24 de maio de 2010

Olhos de Chimpanzé

Tive que postar na íntegra esse artigo do Luiz Felipe Pondé, que saiu na Folha de S. Paulo de ontem. Leiam e entendam por quê.

Os olhos do macaco

VOCÊ JÁ OLHOU nos olhos de um chimpanzé? Da próxima que for a um zoológico, faça isso. Você perceberá que ali existe uma alma presa como a sua. Seus olhos carregam um misto de espanto e tristeza que só humanos conhecem, que parece brotar de excesso de sensibilidade.

Sim, simpatizo com o darwinismo. Mas nem por isso sou ateu. Tampouco tem razão o grande filósofo Daniel Dennett, cujos livros devoro e a quem admiro na sua luta para combater a velha covardia humana travestida de fé, quando supõe que qualquer relação entre darwinismo e tradição monoteísta ocidental implica medo do ateísmo.

Não tento "casar" o darwinismo com qualquer "prova" da existência de Deus. Provar a existência de Deus me dá sono, nem acho possível prová-la. Como não levo a razão tão a sério, não temo suas incoerências.

Pelo contrário, minha simpatia está sempre contra as certezas da razão. Penso, sim, que não há nenhuma grande coerência na vida, nem uma narrativa única. Uma vida dilacerada entre narrativas contrárias me parece sempre mais sólida.

O conforto da certeza me entedia. Sou da velha escola: o sofrimento é que molda o caráter.

O darwinismo me comove, assim como Shakespeare. Quando ouço Macbeth dizer "a vida é um conto narrado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada", eu penso na luta cega de nossos ancestrais cuja humanidade foi cozida em sangue. E isso me comove.Converti-me ao darwinismo desde criança, ao ver aqueles desenhos nos quais imagens de hominídeos vão paulatinamente virando imagens de homens.

Mais tarde, quando não era não mais criança, convenci-me da verdade do darwinismo quando me vi diante das análises do comportamento humano produzidas pela psicologia evolucionista.

Não creio nas teorias que afirmam a construção social dos comportamentos, apesar de que algum grau de influência social em nosso comportamento obviamente existe.Prefiro a ideia de comportamento como destino, maldição. Mas minha relação com o darwinismo sempre foi mais estética do que um mero convencimento racional.

O que primeiro me cativou no darwinismo foi a descrição da origem do ser humano como uma saga contra um meio ambiente terrível e contra os horrores de nossa própria "alma" pré-humana.

A solidão dos nossos ancestrais combatendo os elementos externos e internos me parece uma ode à beleza humana, arrancada da indiferença das pedras.

A escuridão e a solidão do universo me encantam. Pensar que homens e mulheres são areia que um dia tomou consciência de si mesma e de sua solidão me parece um épico que canta nossa dignidade visceral.

A dignidade que só cabe aos desgraçados. Reconheço essa dignidade nos olhos do macaco: a dignidade da testemunha assombrada.

O horror de nosso passado, para mim, sempre foi motivo de orgulho. Sim, vejo o darwinismo como um drama cósmico do qual temos o privilégio de ser testemunhas assombradas. Sim, repito, a humanidade dos humanos foi cozida em sangue, uma pérola numa imensa massa cega de matéria.

Os ateus não deixam de ter razão quando apontam o pânico que muitas pessoas têm diante de descrições da vida como a darwinista. O filósofo Nietzsche (século 19) chama esse pânico de ressentimento. Daí nasceriam as bobagens platônicas e cristãs acerca de um outro mundo onde não haveria sofrimento.Mas o ressentimento de gente como Platão ou cristãos não é nada se comparado ao ridículo de algumas crenças atuais, mas que respondem ao mesmo pânico.

Por exemplo, pensemos na crença em "energias". Que os deuses me protejam de cair um dia no ridículo de "acreditar em energias". Odeio a palavra "energia". Energia isso, energia aquilo, hoje em dia qualquer um usa a palavra "energia" para seus delírios religiosos de consumo.

Digo sempre: quer uma religião? Procure uma de, no mínimo mil anos de existência, e preferivelmente que não tenha passado pela Califórnia ou pela física quântica.Seu sofá está sobre um cano de água? Humm, más energias. Você tem um câncer? Precisa "limpar" as más energias. O tratamento energético não te curou? Ahhh, você não estava preparado, precisa abrir sua mente. Ovos têm energia, alfaces têm energia, o azul da parede tem energia. As energias vão resolver o conflito israelo-palestino. As energias vão parar teu envelhecimento.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Escrever: velhos esboços

Encontrei essas notas avulsas em velhas cadernetas e resolvi publicá-las aqui. Com exceção de um ou outro pensamento tolo, e de algumas platitudes dispensáveis, não me envergonho dessas linhas. Elas são um testemunho da minha “adolescência estrangulada”, e um prelúdio do que seria o início da minha vida adulta.

“Escrevo. E ao fazê-lo é como se reconstituísse os filamentos de meu coração doente”.
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“O ato de escrever é essencialmente um ato solitário, e isso, de certo modo, agride as pessoas. Não as culpo. Pelo contrário. Encaro sua hostilidade com ares de resignação. Afinal de contas, ninguém é obrigado a aceitar a loucura dos outros. Eu mesmo às vezes me pego olhando para uma atividade alheia de modo preconceituoso, sem que a pessoa em questão tenha feito algo de ruim para me atingir. Portanto não posso ser agressivo com quem não suporta me ver escrevendo. Escrever é nadar contra a maré, e quando se nada contra a maré, há sempre alguém disposto a nos fazer voltar atrás – a impedir que nos afoguemos”.

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“Hoje, enquanto esperava pela chegada de pães frescos no supermercado, pensei em como não sou uma pessoa difícil, mas como também não sou fácil. Sou raso de tão profundo. É isso! Ou melhor: De tão profundo, chego a ser raso. Sei lá! Dá na mesma! Tudo o que eu escrever aqui deporá contra mim mais tarde. Portanto tenho de tomar cuidado. Mas não pretendo bancar o covarde. Minha cabeça funciona sem parar – a mil por hora, para empregar um clichê. (Vou fechar a janela porque os pernilongos estão invadindo o quarto.) Pronto. Eu dizia que sou raso de tão profundo, e que meus pensamentos me obsedam. Principalmente meu medo da morte. A sensação de que a morte me cerca causa-me pavor. Vou usar de outro chavão gigantesco: Sou jovem demais pra morrer velho. Ou seria o contrário? E escrever? Escrever é viver, ou é uma maneira bem estúpida de fugir à vida? Eu sinceramente não sei. Só sei que preciso me manter atento, para não me calar de uma vez por todas. Isso seria muito ruim. Também preciso cuidar para não me viciar em diários. Diários me assustam. Diários me parecem invariavelmente um ato desesperado. Morte aos diários!”
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“Tenho escrito algumas linhas bobocas no computador e esporadicamente a lápis, em papéis avulsos. Ora delas resultam contos, ora lamentos quase insuportáveis, de tão melancólicos. Alguns escritos eu tenho preservado para análise posterior, as quais me permitirão saber se de fato o que escrevi é aproveitável ou simplesmente um lixo completo. Se bem que até hoje não possuo juízo formado sobre contos que escrevi há três, quatro anos atrás. (Aliás, a expressão “há tantos anos atrás” me parece caracterizar um pleonasmo, mas uso-a assim mesmo, pois às vezes ela se faz necessária para dar ênfase à passagem do tempo).

Encher uma página de palavras sempre me dá prazer, ainda que o texto seja uma porcaria. Esse vício, contudo, é extremamente prejudicial a qualquer pessoa que queira escrever bem, pois ajuda a tornar o redator mais relapso e, conseqüentemente, menos criterioso com seus próprios escritos.

Eu também já escrevi em outro lugar que a pior parte do trabalho de um escritor é reler o que escreveu. Isso pode destruir carreiras se o sujeito não possuir o mínimo de jogo de cintura. Tenho feito o seguinte: procuro não ler um texto imediatamente após sua composição, para me preservar de uma eventual “depressão pós-parto”. Isso geralmente funciona, a não ser que o texto seja deveras ruim. Então só volto a minha cria horas, dias, ou semanas depois, sempre lutando contra um impulso natural de querer retomar o fruto engendrado o mais rápido possível. Essa luta é também contra minha ansiedade crônica, que me prejudica até quando estou em pleno processo criativo. Levando isso em conta, acredito que a ansiedade não me auxilia em absolutamente nada, muito menos quando estou compondo um texto literário - ao contrário do que afirmei em um de meus relatos de há não muitos dias”.

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“Clarisse Lispector dizia que nunca relia seus textos depois de prontos, pois quando o fazia sempre sentia nojo; nunca achava que estava bom. Mas eu não sou Clarisse Lispector. Não há comparação possível. Clarisse era um talento nato e irrefreável. Por mais que lhe colocassem amarras, ela continuava a criar maravilhosamente. Já eu duvido do meu talento diariamente. Tenho medo de dar com os burros n’água, e quem tem medo não consegue escrever – a própria Clarisse repetia isso aos jovens escritores que lhe pediam uma opinião a respeito do trabalho deles. Com medo não há literatura. Literatura alguma brota no campo infértil do medo. É preciso libertar-se dos próprios medos e limitações de quaisquer espécies para poder fazer boa literatura. E eu não sei se estou preparado para isso. Escrever sobre a incapacidade de escrever também não me interessa. Muitos grandes autores já o fizeram com maestria. John Fante, com “Pergunte ao Pó”, e Fernando Sabino, com “O Encontro Marcado”, para citar dois exemplos totalmente díspares. Se bem que boa parte da Literatura é composta de reiteração, de releituras e de intertextualidade. Enfim, Literatura é conhecimento ao contrário – é chão repisado sem propósito”.