sábado, 24 de outubro de 2009

Meninos Incompreendidos

Antoine Doinel e Jason Taylor são dois garotos de 13 anos do século XX. O primeiro vive na França da década de 50, e o segundo na Inglaterra dos anos 80. Ambos são saudáveis, inteligentes, e vivem em família. A família de Antoine é pobre e negligente para com ele; já a de Jason é de classe média, e o prove de conforto material e afeto. Por viverem na Europa, continente em que a maioria dos países preza pela educação, os dois adolescentes freqüentam boas escolas públicas - e passam por dificuldades diferentes também. Os problemas que Jason enfrenta na sua rotina escolar são, em sua maioria, decorrentes dos conflitos com colegas mais fortes e imbecis que ele. Antoine Doinel, ao contrário de Jason, não é impopular nem tampouco vítima de perseguição dos colegas; seu nome está associado a um tipo de liderança negativa, e não ao de um grupo de crianças bem comportadas e introvertidas que sofrem nas mãos dos colegas sádicos.

Antoine Doinel é o protagonista de Os Incompreendidos (1959), filme de estréia de François Truffaut e marco da Nouvelle Vague. Monumento de simplicidade e beleza, este longa-metragem narra as aventuras e os dissabores vividos por esse alter-ego de Truffaut na Paris do pós-guerra. Movido por um misto de curiosidade e revolta, Doinel confronta a autoridade dos pais e dos professores, e se encaminha para uma vida anárquica e precoce. Filho adotivo, o garoto interpretado por Jean Pierre Léaud vive numa casa humilde onde dorme num catre no quartinho dos fundos. A mãe, uma mulher jovem e bonita, nos é apresentada numa bela seqüência em que chega do trabalho, põe-se a despir as meias-calça e a reclamar os chinelos que não encontra. De início percebemos seu desprezo pelo filho. Ele é cobrado e criticado o tempo todo, não recebe nenhuma manifestação de carinho ou apoio, e muitas vezes é tratado como um simples empregado doméstico. Os olhos de Antoine / Jean Pierre ora lembram os de um cão vadio, ora expressam agressividade e ressentimento. Quando miram o pai, no entanto, os olhos do menino ganham alguma vivacidade. Há um clima de camaradagem entre os dois, que só é desfeito quando Antoine comete suas traquinagens e pequenos delitos, ou quando resolve se insurgir contra as arbitrariedades dos próprios pais e da sociedade em geral.

Jason Taylor é o narrador-protagonista de Menino de Lugar Nenhum, romance de formação do escritor britânico David Mitchell, lançado o ano passado no Brasil pela editora Cia das Letras. Ele vive numa cidadezinha do interior da Inglaterra chamada Black Swan Green, título original do livro. Amado e protegido pela família, Taylor não encontra a mesma acolhida de que dispõe em casa na escola. Vítima de gagueira, é alvo constante de chacota dos outros garotos, que o apelidam de Verme. Para minimizar o problema da gagueira, chamada por ele de Carrasco, Jason recorre a uma fonoaudióloga. Além de se interessar por atividades caras à maioria dos garotos de sua idade, Jason dedica-se (secretamente) à poesia. Reconhece, em dado momento da narrativa, que se os colegas descobrissem esse seu hobby sua vida social estaria comprometida de vez. Por isso envia poemas para concursos e revistas locais sob o pseudônimo de Eliot Bolívar. “Quando você mostra pra alguém uma coisa que escreveu, está oferecendo uma estaca pontiaguda, deitando no caixão e dizendo ‘Quando você quiser’”, diz na ocasião em que encontra Madame Crommelynck, senhora culta e experiente que faz críticas construtivas à sua obra.

As narrativas de Truffaut e Mitchell têm pontos em comum, como a fluência e o lirismo. Não há espaço para a pieguice nem para a divagação gratuita. Mas o humor está presente em ambas, principalmente como antídoto a um possível laivo de (auto)comiseração que poderia arruinar os relatos de cunho autobiográfico. Os personagens também não são caricatos nem agem segundo uma disposição maniqueísta. Por mais cruéis que os pais de Antoine Doinel possam ser, eles são dotados de algum senso de justiça, e soam sinceros quando se põem a ministrar conselhos que julgam importantes para a formação do filho. Por vezes os personagens de Menino de Lugar Nenhum podem parecer estereotipados, mas isso não é um problema narrativo, e sim uma conseqüência do olhar imaturo e parcial do protagonista-narrador. Seus algozes, por exemplo, são naturalmente descritos como bestas-feras despidas de bons sentimentos. Os pais, apesar de cuidar para que nada lhe falte, vivem às turras, o que é motivo de descontentamento para Jason.

Dois adolescentes de natureza diversa vivendo no mesmo século em décadas diferentes. Jason Taylor e Antoine Doinel. O primeiro tenta se livrar do assédio dos colegas de escola e sofre com a separação dois pais. O segundo possui espírito livre e se esforça para adaptar-se à vida em sociedade, a qual julga castradora e injusta.

François Truffaut e David Mitchell. Um cineasta e um romancista de origens e épocas diferentes. Dois grandes artistas. Duas grandes obras.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Angústia II

A linguagem em Angústia é extremamente concisa e percuciente. A sensação de asfixia gerada pelos períodos curtos e a aspereza dos adjetivos denotam o mal-estar do narrador frente ao mundo. Como ressaltei anteriormente, não obstante seu relato seja marcado pela desesperança e pelo ódio, de um modo geral Luis da Silva sente compaixão pela gente humilde com que ele convive. Dona Adélia, por exemplo, a mãe de Marina, fora “carrapeta”, vivaz, e não devia se sentir culpada por ter se transformado numa pessoa infeliz. Já o marido, Seu Ramalho, é um homem trabalhador e honesto, que não merecia o desgosto causado pela leviandade da filha. Seu Ivo é um sujeito imprestável mas bom, que ora amarga a ira de Luis, ora goza de sua generosidade. A prostituta, a empregada, a datilógrafa, o pai, o avô (Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva), os antigos escravos e empregados da fazenda – todos perpassam as memórias de Luis da Silva, que os descreve de maneira sóbria e ampla, expondo suas faltas e suas virtudes. A única personagem que não recebe qualquer misericórdia por parte do narrador é Julião Tavares, a personificação do que Luis da Silva julga haver de pior num ser humano.

Os ratos que infestam a casa de Luis da Silva “mijam na literatura”; Marina faz a higiene no banheiro do quintal, dá uma “mijada sonora.”A poesia em Angústia é de origem orgânica: cheiros, feições e fluidos são evocados ao longo de todo o romance, compondo uma atmosfera poética única em nossa literatura, que talvez só encontre paralelo em algumas obras de Aloísio Azevedo, como O Cortiço.

Luis da Silva se ufana intimamente de sua erudição, mas nunca a alardeia. Tanto o repugnam as pessoas que desprezam a educação e a cultura quanto os beletristas, os parnasianos e seus preciosismos. É inclemente com os livros ruins e seus autores, tal qual Graciliano tinha fama de ser. Aliás, é fácil, e por isso mesmo perigoso e inapropriado, identificar semelhanças entre autor e personagem. Como todo grande ficcionista, Graciliano Ramos certamente deve ter emprestado muito de si a Luis da Silva. Vícios e qualidades do mestre devem ter sido empregados na construção dessa personagem tão complexa e fascinante que é Luis da Silva, alguém com quem nos identificamos por ser, em certa medida, parecido com todos nós.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Angústia I

Li Angústia pela primeira vez aos 19 anos. Foi meu primeiro contato com a obra de Graciliano Ramos. Nunca li um livro do mestre alagoano por obrigação; sempre que o fiz foi por prazer e/ou curiosidade. Angústia foi um dos livros que marcaram o início de minha trajetória de leitor. Dizem que Graciliano não gostava muito do romance, que o julgava mal escrito. É difícil saber se isso corresponde à verdade. Não há (muitas?) testemunhas vivas que possam desmentir ou confirmar esse tipo de boato. Além do quê, existem várias lendas em torno da figura desse notável escritor. A de que ele era impiedoso com os jovens romancistas que lhe apresentavam originais ruins talvez seja a mais conhecida delas. Fala-se até que ele chegava ao ponto de rasgar contos ou artigos medíocres na frente do infeliz do autor. Eu sinceramente não acredito nisso. Não acredito que o autor de Memórias do Cárcere e Infância fosse capaz de tal descompostura. E ainda assim já tive pesadelos em que Graciliano, depois de passar os olhos por um escrito qualquer meu, rasgava-o em mil pedaços bem diante de mim.

Reli Angústia recentemente. E o achei extraordinário de novo. Penso que reler um bom livro é um dos maiores prazeres que uma pessoa letrada pode experimentar. Sempre que releio um livro que foi de grande importância para a minha formação, sinto-me remoçado. Há títulos aos quais eu sempre retorno: O Encontro Marcado, do Fernando Sabino, é um deles. Eduardo Mariano, narrador do romance, é um dos meus personagens favoritos da literatura nacional. Luis da Silva, o narrador de Angústia, certamente também figura nessa lista.

Ao contrário do que muitos apregoam, não considero Angústia um romance pessimista. O amargurado Luis da Silva lança quase sempre um olhar compassivo sobre seus semelhantes. Seu ódio é direcionado apenas àqueles que considera vis de alguma forma, como Julião Tavarez, seu antagonista, e Marina, pivô de sua desilusão amorosa. Tal como a maioria dos personagens criados por Graciliano Ramos, Luis da Silva é um ser abrutalhado, que apesar de possuir certo refinamento intelectual – única característica que o distingue de Paulo Honório e Fabiano, respectivos protagonistas de São Bernardo e Vidas Secas, por exemplo - tem sérias dificuldades para se relacionar com as outras pessoas. Todos os seus gestos, até mesmo os mais amistosos, estão carregados de uma violência tipicamente sertaneja, e de uma melancolia comum aos existencialistas. Luis da Silva tem plena consciência de que não passa de “um Luis da Silva qualquer”, ou seja, de que está só no mundo, de que não há nada nem ninguém que o ampare ou governe seu destino, e que portanto está condenado à liberdade.

Marina, a vizinha por quem Luis se apaixona, continua sendo uma mulher sem consciência do quanto sua beleza e sua displicência podem ferir os homens. É a mesma Marina cantada por Dorival Caymmi, que se pinta e se enfeita sem precisar, vulgarizando assim seus belos traços ao invés de realçá-los. Uma das mulheres mais interessantes da nossa literatura, sem dúvida.