quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Diário de um chimpanzé (IV)

As inflexões de tristeza nos rostos dos velhos que disfarçam sua solidão nos bancos da praça parecem prenunciar a hecatombe. E os pombos, esses roedores alados, são os arautos do Apocalipse. O calor abafado desse dia de céu cinzento dá a exata medida do desespero latente sob as almas dos que têm pilhas de contas a pagar e diversos problemas amorosos /sexuais a resolver. Cada criança que passa por ele de mão dada com a mãe revitaliza num átimo sua esperança de um futuro melhor (?). Mas as mulheres palradoras e excessivamente atraentes que se insinuam para a vida com o mesmo despudor com que subjugam os amantes quando do amor provocam em seu âmago um frisson adolescente que o devolve imediatamente à condição de misantropo. Apaga-se a sensação de que ele é, de uma certa maneira, mais consciente do que se passa no mundo do que o ordinário. Ao passar diante duma loja de eletroeletrônicos, vê sua imagem refletida num aparelho de tevê retangular de cinqüenta e quatro polegadas e apressa-se em desfazer esse sentimento de horror. Em redor do chafariz onde brincam crianças serelepes sob o olhar vigilante das mães, percebe uma concentração de quatro ou cinco pesquisadores uniformizados de uma escola de informática. Tenta escapar mas é tarde: uma garota morena e baixota o interpela e pergunta se gostaria de fazer um cadastro para concorrer a uma bolsa de estudos de cinqüenta por cento.Normalmente teria respondido não, mas aquele não era um dia comum. Sorriu debilmente e informou seu nome e telefone à garota. Ela não pôde conter sua felicidade. Em média quantas pessoas conseguia conquistar por dia?

- Idade?
- Oitenta e dois.
- Estado civil?
- Escravizado por uma sílfide castradora.
- Filhos?
- Três ogros, dois zumbis e uma sereia.
- Profissão?
- Prestidigitador.

Por fim, ganha um cupom para depositar numa urna de prata fincada no topo da colina mais alta e distante. Há uma urna de prata hermeticamente fechada na ante-sala do seu peito. Pergunta se ela não quer depositar um cupom nela mas a garota declina. Covarde! Babaca! Decepcionado, ele lhe dá as costas e segue para a disneylândia mais próxima. Encontra o gado de sempre pastando por entre as estantes das Lojas Americanas. O ar condicionado refresca seus espíritos. Perde seu tempo procurando um filme genial e barato na seção de DVDs. Uma vendedora pára a seu lado e pergunta as horas: quinze para as onze, responde. Que saco! A hora não está passando hoje. Ele entende sua indignação. Quem é que está refreando os ponteiros do relógio? Quem se mete a deter o tempo universal? Então lhe vêm à cabeça imagens de um documentário sobre o Universo a que assistira na madrugada passada na companhia do irmão do meio. O Big Bang e a formação das galáxias... O surgimento da vida na Terra ao acaso. As forças e os elementos da natureza descobertos por gênios como Einstein (ele se lembra só de Einstein, mas, justiça seja feita, há outros cientistas tão importantes quanto ele que contribuíram para a aquisição do conhecimento que hoje dispomos sobre o nosso planeta e o Universo). Os buracos negros. E sobretudo o desconhecido: a tal matéria escura presente na quase totalidade do Universo e sobre a qual os cientistas não sabem praticamente nada. Nada. Esse tipo de documentário sempre o deprimiu porque dá a medida justa da sua insignificância. Nem o fato de saber que seu corpo é feito da mesma matéria que compõe as estrelas o conforta. Programas jornalísticos sobre o Aquecimento Global e assuntos correlatos também o deprimem. Como é frágil e patético! Outra vendedora magra e de olhos verdes (que olhos!) o aborda e o informa da promoção da semana: alugue três DVDs (na Blockbuster que funciona dentro da loja) e ganhe duas pipocas de microondas. Mas eu não tenho microondas, meu amor (não disse meu amor, claro). Em todo caso só tinha dinheiro para a passagem de ônibus. Saiu da loja e caminhou a esmo, até ir parar na Biblioteca Municipal, onde poderia ler e disfarçar sua solidão gratuitamente.
***
Uma canção de Caetano Veloso (Mora na Filosofia), que faz parte do álbum Transa, de 1972.


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