quinta-feira, 30 de abril de 2009

Elas por eles: dois trechos

Mas então de repente aconteceu uma coisa estranha.

Eu estava a tal ponto acostumado a pensar e a fantasiar tudo como nos livros e a imaginar que tudo no mundo era igual ao que eu antes havia criado nos meus sonhos, que nem entendi de imediato aquela coisa estranha. O fato foi o seguinte: Liza, que eu havia humilhado e esmagado, compreendeu muito mais do que eu poderia imaginar. De tudo a que assistira, ela compreendeu aquilo que as mulheres sempre compreendem quando amam com sinceridade: ela percebeu que eu era infeliz.

(Fiódor Dostiévski / Notas do Subsolo – L&PM, 2008, tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares).

***
Também o nosso conhecimento sobre Cecília continuou crescendo depois da morte, com a mesma surpreendente persistência. Embora ela raramente falasse e não tivesse tido amigos de verdade, todos tinham sua própria, vívida, lembrança de Cecília. Alguns de nós a tinham segurado no colo por cinco minutos, ainda bebê, enquanto a Sra Lisbon ia até em casa buscar a bolsa. Outros haviam brincado com ela na caixa de areia do jardim-de-infância, brigando por uma pazinha, ou tinham se exibido para ela atrás da amoreira que crescia como carne deformada por dentro dos argolões da cerca. Tínhamos ficado com ela na fila da vacina contra varíola, e mantido com ela, debaixo da língua, torrões de açúcar antipólio. Tínhamos lhe ensinado a pular corda e a queimar cobras, tínhamos impedido várias vezes que arrancasse as cascas de suas feridas, e tínhamos lhe avisado para não encostar a boca no bebedouro de Three Mile Park. Só alguns de nós tinham se apaixonado por ela, mas em segredo, sabendo que era a mais estranha das irmãs.

(Jeffrey Eugenides, As Virgens Suicidas – Rocco / L&PM, 2008, tradução de Marina Colasanti).

Nenhum comentário:

Postar um comentário