domingo, 5 de abril de 2009

Réquiem para uma amiga (I)

Quando L. se mudou para nossa rua, não fazíamos idéia do quanto sua chegada mudaria nossas vidas. Era a mais nova de três irmãs, e, ponto pacífico entre os garotos da rua, a mais bonita. Os cabelos e os olhos de um negror intenso contrastavam belamente com a pele bem clara, leitosa. Sua voz era de uma suavidade aguda, nunca irritante; podíamos passar horas ouvindo-a falar. E sobre o que nos falava? Do lugar de onde viera, dos amigos que deixara, das esperanças que nutria a respeito do novo lar... De que mais falaria, ora? Ah, claro que insistíamos para que falasse dos namoros, mas ela sempre tergiversava. Nunca foi grosseira, contudo – muito embora uns tenham feito por merecer em determinados momentos.

Não demorou muito até que se afeiçoasse ao pessoal e se entrosasse de maneira surpreendente: uma capacidade notória dos simpáticos. Amanda e Cecília, que antes reinavam soberanas como fêmeas alfa da patota, se morderam de ciúmes, mas logo se renderam à simpatia de L. Esta se revelou habilidosa no voleibol; como muitas baixinhas, era exímia levantadora. Praticávamos na quadra de areia do clube dos operários, sempre nos finais de semana. Nas férias escolares, não havia dia ruim para nós. Pegávamos nossas bicicletas e seguíamos destemidos até o clube mais popular da cidade, o único cuja mensalidade nossos pais podiam pagar. Lembro que, apesar de muito simpática, era um pouco tímida. Quanto? Menos do que eu e mais do que Rodrigo, por exemplo. Nunca chegamos a vê-la de biquíni. Sempre tinha uma desculpa para não nos acompanhar à piscina. Uma vez fiz companhia a ela: sentados num banco de concreto do jardim que circundava a piscina mais funda, de onde nossos amigos tiravam sarro de nossa cara, caretas e piadinhas de vários tipos, mergulhos acrobáticos em nossa homenagem - era uma maneira de demonstrarem o quanto estávamos perdendo ao ficarmos debaixo daquela sombra rala de uma árvore mirrada em plena canícula, enquanto todo um mundo de sensações aquáticas nos aguardava a não mais de cinco metros do lugar onde estávamos. Esse dia ela me pegou rascunhando um conto num dos cadernos de bolso que eu carregava comigo a todos os cantos. Não foi nada fácil explicar o que eu tanto escrevia com minha letrinha miúda e desgovernada nas páginas anãs do caderninho. Ela pediu pra fazer um desenho. Passei o caderno pras suas mãos pequenas e massudas e dentro de instantes ela mo devolveu com o desenho de um gatinho de bigode espicaçado que lambia a pata esquerda dianteira. Você desenha bem, eu disse. Porque eu gosto, respondeu. Disse que um de seus maiores prazeres era ilustrar o diário secreto que mantinha desde os nove anos, e ao qual só a mãe tinha acesso em ocasiões que ela julgava oportunas. Na sua festa de aniversário de quinze anos, todos pudemos conhecer esse diário, já que ela pediu a cada um dos convidados que deixassem uma mensagem com alvíssaras para os próximos três qüinqüênios. Tento recordar o teor da mensagem que lhe compus mas é inútil. Decerto fiz votos de felicidade e sucesso, além de firmar a convicção de que desejava sua amizade para sempre.

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