sábado, 28 de março de 2009

Paroxetina - Trecho (II)

Enquanto toda a mídia se refestela com o lançamento do novo romance de Chico Buarque, eu publico mais um trecho do meu desconhecido Paroxetina. A disputa é desigual, mas pode ser que, por um milagre ou por uma (improvável) comoção popular, meu livrinho suscite o interesse de alguma casa editorial, ganhe as livrarias do país em breve e se torne campeão de vendas – deixando Chico, o grande compositor e escritor de talento, chorando o leite derramado. Ha! (Sonhar não custa nada).

***
Segue um trecho da primeira parte do livro, A vida em edição comentada:

Trovejava. Vó Odila me orientava a não tomar banho imediatamente após as refeições. Uma vez ela e tia Verônica quase puseram a porta do banheiro abaixo para me impedir de cometer suicídio. Assim cresci amedrontado. Os pesadelos em que eu era esmagado por forças invisíveis persistiam. Somou-se a isso o horror a um filme sobre a vida de um rapaz que tinha o rosto deformado por uma deficiência congênita. Toda vez que esse filme passava na tevê eu ia pra bem longe do aparelho. Não sei exatamente por que eu temia tanto assim o filme. E anos mais tarde, quando o pânico começaria a me atormentar a existência, eu também teria imensa dificuldade em me encarar no espelho. Era como se visse refletida a mesma deformidade do rapazinho do filme. Um aleijão que se formara à minha revelia. Uma porcaria. Um nojo.

A televisão tinha uma grande parcela de culpa nisso tudo. Os programas vespertinos mostravam criaturas bizarras, mutantes, solitárias. Tinha de tudo: falcatrua, beatitude, adultério, perfídia sexual. Certa vez entrevistaram um menino-peixe que vivia num aquário. Assisti à entrevista consternado por um misto de incredulidade e comiseração. Eu não podia assimilar certas coisas, e não havia como ignorá-las. Isso me privou de muitas noites de sono: o eterno remoer de indignações. Teria sido mais fácil aprender a dançar, tocar piano ou guitarra, confeccionar balões, fabricar gaiolas – vô Aranha ministrava oficinas. Mas nessa noite pedi à vó Odila que me deixasse dormir a seu lado, encolhido entre ela e meu avô na cama de casal. Tudo menos a culpa. Os pais – e os avós, por conseguinte – preferiam pecar por excesso. Cediam. Às vezes apelavam a seu Cristóvão, que mal conseguia ler e entoar seus cantos litúrgicos de tão velho. Ele me confundia com outras crianças. Chamava-me de Pedrinho, Robinson Crusoe, Peter Pan... Dizia que eu seria muito feliz, e que daria muita felicidade à família. Eu acreditava e comia os bolinhos de arroz e a paçoca que dona Mariúcha preparava - tudo bento. Enquanto isso, Amanda, minha vizinha, me ensinava a ser um homenzinho: põe a mãozinha aqui, bem. Isso, devagar. Agora beijo de língua. E quase me afogo da primeira vez. Mulher gosta de homem que aperta, fala grosso, morde. Para uma garota de apenas treze anos, Amanda até que sabia das coisas. A ela mostrei meu primeiro pentelhinho. Não consigo ficar feliz por isso, amor. Em breve você se tornará um escravo. Sofrerá de um mal indefinido e emanado de mulheres sádicas sobre cujos corpos você pairará como uma abelha faminta diante da flor. Fiquei sem entender. Dia seguinte, trepado no telhado da edícula, Isaías, o irmão mais velho de Amanda, me oferece um cigarro. Um tanto de alcatrão e outro de nicotina aceleraria o processo de crescimento dos meus pêlos pubianos, ele me garantiu. Fumei. Me engasguei. E quase me finei na tosse. Isaías, meu verdugo, ria à grande. Meses depois um facínora juvenil das redondezas se encarregaria da minha vingança: arrebentaria a cara de Isaías com um pedaço de bambu. Esclareço: não fui o mandante. Tratava-se de rixa antiga – Isaías tinha seus desafetos. E confesso que, quando contemplei seu corpo estirado no sofá da sala, a cara túmida e ensangüentada que lhe conferia uma feição monstruosa, senti pena a ele. Dois dentes pontudos e lacerados que sua mãe colocou diante dos meus olhos: só um animal pra fazer isso com uma criança, dizia ela, chorosa. Semanas depois Isaías voltava pra detrás do balcão do botequim do pai, o qual era regularmente freqüentado por Bernardo. E não era um boteco qualquer; era dos mais odiosos e anti-higiênicos, do tipo que serve salsichas mofadas e torresmos adiposos como tira-gosto. Aos sábados havia suã e torneio de truco. Um sósia do Roberto Carlos se apresentava num palco mambembe feito de paletes de madeira empilhados. O cantor colhia flores e aplausos. Vestia um terno branco e depauperado, que aos poucos ia se impregnando de manchas de álcool e gordura; aqui e ali também maculado por guimbas de cigarro. Vez em quando alguém propunha um duelo. Você vai cantar o quê? Garrincha, o dono da birosca, tentava impor alguma ordem aos trabalhos, enquanto eu, premido entre uma pilha de engradados e a mesa de sinuca, pensava se já não era hora de convencer meu pai a voltar pra casa. A qualquer momento Isabel podia surgir inadvertidamente e me resgatar daquela fedentina atroz. Contendas figadais adviriam disso. Bernardo dava um trago no hi-fi, eu já o via claudicando pela calçada até chegar ao portão de casa. Os gritos, as ofensas que ele e Isabel trocariam já reverberavam na minha cabeça. Via Dick recolher-se célere à caixa de papelão que lhe servia de abrigo; meu irmão encolhido num canto da cozinha, as mãos espalmadas contraindo os ouvidos. Meus nervos enregelados e destrinchados a alicate. As mãos de Bernardo arrancavam cabelos; um punho cerrado (o meu?) descia-lhe contra a face num golpe duro; alguns fantasmas incendiados crepitavam estrepitosamente, num vaivém de insânia etílica: eu o débil mental? Nessa hora brotava minha impotência: um broxa que não chegou a foder.

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