sábado, 27 de fevereiro de 2010

Diário de um chimpanzé VII

“O tempo que me resta, se preenchido por ansiedade, não me é suficiente”.

Tony Monti / eXato acidente


A qualquer momento ele sabe que pode ser acometido de uma súbita sensação de angústia que num átimo diluirá tudo aquilo que ele reconhece como realidade e o lançará num completo estado de anomia. Pode acontecer enquanto estiver se preparando para dormir, ou enquanto estiver voltando do trabalho; pode ser que ele esteja só, como também pode ser que tenha de se esforçar para não deixar transparecer toda essa angústia caso ocorra de ela eclodir quando estiver acompanhado.

Ele sabe que a tristeza é uma forma de egoísmo e se ressente disse toda vez que imerge numa dessas bad trips caretas. Às vezes tudo começa com um formigamento que nasce na região do abdômen e vai migrando aos poucos até alcançar os ombros, descer pelas suas costas e se alojar entre as omoplatas. E enquanto essa espécie de metástase se dá, ele tem de se conter para não arrancar os próprios olhos ou se cortar de algum modo com o fio lacerante das questões sem respostas que o golpeiam e do sentimento de inutilidade que abafa qualquer possibilidade de esperança.

Para afastar de si todo esse abstracionismo deletério, ele tenta se concentrar nas pequenas tarefas do dia-a-dia. Levanta cedo e vai trabalhar. Cumprimenta os conhecidos na rua. Cede seu lugar aos mais velhos no ônibus. Trabalha com satisfação e afinco, embora acredite que sua dedicação não seja devidamente reconhecida. (Preferia não fazê-lo?) Acompanha com interesse e benevolência tudo o que ocorre a seu redor, toda a faina cotidiana. Participa dela. Sente-se tocado pelo “prazer animal de existir”, mas está muito longe de se tornar o homem simples que um dia pretende ser.

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Enquanto se apronta para trabalhar numa manhã fria e silenciosa de segunda-feira, ele fica sabendo do desaparecimento de um avião de passageiros que saíra do Rio de Janeiro com destino a Paris. Havia mais de duzentas pessoas a bordo: homens, mulheres e crianças. Logo o mistério é desfeito e todos são informados de que o avião caiu durante a travessia do Atlântico, num “ponto cego” onde não existe cobertura de radares aéreos. Desastres de avião sempre o abalaram, e com esse não é diferente. Pensa na desdita dos passageiros, no seu desespero; o sofrimento dos parentes das vítimas o comove sobremaneira. Logo a ele, sujeito tão telúrico, que nunca andou de avião. Talvez porque ele não acredite em vida após a morte. Talvez porque ele acredite que para as mais de duzentas pessoas mortas no acidente tudo tenha terminado daquela maneira brutal, no fundo do oceano Atlântico, sem que nenhuma entidade superior, nenhum deus se apiedasse deles.

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Em casa todos demonstram seu orgulho pelos pequenos progressos que ele anda fazendo. O fato de ter passado a integrar a “população economicamente ativa” contribui para a diminuição dos embates com os pais. Agora não é mais um diplomado sem emprego ou um patético aspirante a escritor, e sim apenas um assalariado comum, o que os enche de orgulho.

Mas passa muito longe de ser um filho exemplar. (Mesmo porque, ele pensa, filhos exemplares precisam de pais exemplares). Está longe de ser um sujeito “bem resolvido”: há muitos problemas concretos que o atormentam. Problemas familiares, sentimentais, existências. Conhece bem a si próprio, sabe das suas muitas limitações. E existem momentos em que essa autoconsciência se torna um fardo tão pesado que ele até sente dificuldades em se encarar no espelho.

Ele classifica toda essa angústia de ansiedade e imagina que isso irá matá-lo em breve. Por enquanto ainda não encontrou antídoto eficaz. Apesar de ter deixado de ser um garoto há um bom tempo, ele ainda não sabe viver. Quer, como qualquer ser humano, o melhor da vida, a serenidade, o gozo, o sumo. Mas sente muita culpa, não sabe respirar direito. Sente muita dor, e, como repudia o menor laivo de autocomiseração (esse câncer!), ainda pretende rir disso tudo.


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