domingo, 29 de novembro de 2009

Verdades literárias

Todos desejamos resgatar por intermédio da memória cada fragmento de vida que subitamente nos volta, por mais indigno, por mais doloroso que seja. E a única maneira de fazê-lo é fixá-lo com a escrita.

A literatura, por mais que nos apaixone negá-la, permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o que o olhar contemporâneo, cada dia mais imoral, pretende deslizar com a mais absoluta indiferença.

Enrique Vila-Matas / Bartleby e companhia


Alguns fatos só se tornam verdadeiramente críveis quando colocados no papel. Certas experiências só adquirem sua real dimensão quando consubstanciadas em literatura. O mero relato oral ou o discurso jornalístico nem sempre se prestam à melhor exposição de determinados acontecimentos. Às vezes, apenas uma forma alternativa de narrar, que nem sempre é a mais clara ou a mais razoável, consegue transmitir sensações e idéias dos mais variados matizes.

Quando iniciei meu roman à clef Paroxetina, não tinha idéia do estilo de narrativa que desejava criar. Só sabia que precisava compartilhar certos aspectos da minha vida que - devido a uma série de fatores, mas principalmente pelo fato de eu ser uma pessoa muita reservada (leia-se extremamente tímida) - sempre foram circunscritos ao conhecimento de poucos. E o que eu pretendia com isso? A bem dizer, o motivo ainda não me é claro até hoje, um ano após a conclusão do livro, porém tenho certeza de que ele está muito mais relacionado à busca por autocompreensão e à necessidade de * “compartilhar minha solidão, torná-la meio de conhecimento”, do que a alguma compulsão autodepreciativa ou à urgência de clamar por ajuda.

O estilo por assim dizer “tragicômico” só foi definitivamente adotado quando a narrativa já se encontrava pelo meio, o que me obrigou a reescrever boa parte da história. Esse tom foi escolhido no intuito de mitigar um pouco a natureza extremamente dramática / pesada dos temas tratados (alcoolismo, violência doméstica, síndrome do pânico, esquizofrenia, bissexualismo; a velhice, a solidão; o “fim da inocência”; o fim do mundo...). Se tivesse optado por um tom mais seco, solene, ou jornalístico, talvez a leitura do livro se tornasse insuportável. Não que este tipo de narrativa não renda boa literatura, pelo contrário. (E J. M. Coeetze é o nome que me vem com mais força à memória como exemplo de grande escritor sisudo.) O importante é que o estilo adotado seja coerente com o teor da narrativa.

Um livro que acabo de ler e que está cheio de “coerência narrativa” é Fun Home – Uma Tragicomédia em Família, romance gráfico da americana Alison Bechdel, que descreve o conturbado relacionamento da autora com o pai, e os prazeres e dissabores de se crescer num lar disfuncional.

Fun Home é a primeira graphic novel que leio, uma agradabilíssima surpresa. Impossível não se emocionar com o texto e os traços criados por Bechdel, alguém que soube se utilizar brilhantemente de duas linguagens complementares para contar uma história tão íntima, delicada, triste, e divertida. Ou seja, uma história universal.

Aqui, uma análise de Fun Home por Michel Laub.

* Isso é Drummond.

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