quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Achaque natalino

Ele acreditava que não tinha obrigação de presentear ninguém. Pelo menos era assim que pensava, até as quinze horas do dia vinte e quatro de dezembro, quando acordou com uma baita ressaca, resultado de uma noite tão festiva quanto aborrecida. Bastaram um banho mal tomado e um almoço às pressas para ele se sentir disposto a empreender umas compras de última hora.

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O senhor pode parcelar em até cinco vezes no cartão, informou a moça negra de rosto ovalado, olhos castanhos e cintilantes, e cabelo trançado em cascata. Atrás dele, uma fila enorme de pessoas mais ou menos contentes portando um sem-número de sacolas. Vou pagar no débito, ele diz sem hesitar, e entrega o cartão à operadora de caixa. Em poucos segundos a transação é concluída e seu cartão devolvido. Obrigado e bom Natal. Próximo!

Agora ele é mais um circunstante que caminha pelo shopping munido de sacolas personalizadas. Na altura do corredor que leva aos sanitários, ele cansa e encosta-se em uma pilastra ladrilhada de verde. Abre as três sacolas que porta e confere o que comprou até então: um carrinho de controle remoto para o afilhado, um relógio de pulso para a mãe, e um rádio portátil para o pai acompanhar os jogos de futebol. Enquanto retoma seus passos largos mas cadenciados, pensa nos familiares cujos presentes ainda falta comprar. Pensa também em quanto falta para alcançar o limite de seu cartão: pouco, bem pouco. Ele trabalha num escritório ordinário numa função mais ordinária ainda, o que justifica o fato de seu limite de crédito ser tão baixo. Todos os meses tem de rebolar para saldar as dívidas e não terminar no vermelho. Não que ele goste disso, mas já se acostumou.

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O balconista da loja de artigos religiosos é muito jovem, uma criança loura, de olhos claros e serenos. Você conhece São Camilo?, ele questiona o balconista, que depois de tocar um cacho de cabelo que alcança a altura do colarinho da camisa branca que está vestindo, lhe devolve um olhar perdido. Porque eu não conheço, emenda. Então encaram a enorme prateleira repleta de imagens de santos à sua frente, à procura de um santo desconhecido para ambos. Certo de que não obterão sucesso em sua busca, o balconista resolve recorrer a um livro de hagiografias. Após folhear o livro por alguns segundos, ele abre um sorriso discreto porém revelador. São Camilo de Lelis: nascido a 1550 em Bucchianico, nos Abruzzos, no antigo Reino de Nápoles. Foi um homem que media mais de um metro e noventa e tinha um porte elegante, tal como o navegador Pedro Alvarez Cabral. Jogador compulsivo e soldado do exército na juventude, ficou conhecido como um sacerdote que cuidava dos enfermos e dos desvalidos em geral. Conhecendo a imagem do santo italiano, fica fácil encontrar sua escultura em meio às dezenas de outras de variadas cores e tamanhos que compõem um painel capaz de satisfazer à demanda de pessoas com as mais distintas devoções. Vou levar, diz, satisfeito, assim que o rapaz louro, de olhos calmos, e cabelos encaracolados - que se parece muitíssimo com um anjo, ele sente vergonha de pensar, embora nunca tenha visto um - pousa a estátua de São Camilo no balcão. Embrulhe pra presente, por gentileza.

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Passa das seis e meia da tarde. O horário de verão garante a luminosidade necessária – entrevista pelos portais de acesso ao shopping - para que ninguém se sinta aflito por ter adentrado a noite de vinte e quatro de dezembro fazendo compras de Natal. Quanto a ele, restam-lhe energia e paciência de sobra para dar seqüência à sua busca por presentes, que já se aproxima do fim. Sente-se realizado por ter encontrado o presente que julga ideal para a avó: São Camilo de Lelis, padroeiro dos enfermeiros; ex-viciado em jogo; um metro e noventa de altura; e toda uma vida de abnegação. Ele mesmo não é um homem abnegado; pouco mais de um quarto de século de vida e nenhuma abnegação – apenas algum senso de ridículo, um romantismo cafona, e um bocado de resignação. Não tem a mínima noção do que significam os vinte e cinco anos que já desperdiçou, nem tampouco do que a vida lhe reservará dali por diante. Está na média; sim, integra a massa de seres humanos que não sabe bem o que fazer com esse treco esquisito e tosco e que traz anexo outro troço estranho e – dizem – metafísico chamado alma: o corpo. Isso o deixa... aliviado. É tomado por uma sensação de alívio que aos poucos se traduz em zonzeira. Zonzeira de ressaca. Atravessa a praça de alimentação, que pouco a pouco se esvazia. Passa pela casa do Papai Noel, cujo humor também já principia a escassear nessa altura. Meia-dúzia de pais de família formam a fila do caixa-eletrônico. São sete da noite e os lojistas começam a baixar as portas.

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Ainda falta o presente do irmão mais velho. Não pode deixar de presenteá-lo. O irmão mais velho é um homem íntegro que beira os quarenta anos e em quem ele tenta se espelhar. Por sorte já sabe o que comprar para ele: uma camisa nas cores cinza e branco tão bonita e íntegra quanto o irmão. Sai da loja de roupas carregando aquela que acredita ser a última sacola de suas compras. Não quer, não vai comprar mais nada. Não tem mais dinheiro, não tem mais crédito, não tem mais vontade de nada. Está abarrotado de sacos plásticos contendo caixas e embrulhos, e isso de certa forma o envergonha. Alguém, conhecido ou desconhecido, amigo ou inimigo, qualquer uma dessas pessoas que entram e saem das lojas, que gastam dinheiro que têm ou que ainda precisarão ganhar, que carregam sacolas, listas, e crianças, que exibem sorrisos e carrancas, que desejam boas festas e felicidades a outras pessoas queridas ou estranhas – qualquer um desses aí pode apontar o dedo para sua cara e chamá-lo de consumista fútil, de hipócrita, de filho da puta. Qualquer um deles pode. Vão apontar o dedo para ele, tratá-lo como igual? Ele merece?

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Comprou os presentes que queria comprar. Achava que não precisava presentear ninguém. E não precisava mesmo. Mas já gastou o que tinha e o que não tinha, já utilizou seu cartão de crédito até o limite e amealhou dívidas até março do ano vindouro. Não adianta reclamar. Comprou e está acabado. Quinze para as oito. Ele se encaminha para a saída do shopping. As portas metálicas já foram baixadas. Só resta uma portinhola entreaberta, guarnecida por um segurança espadaúdo, de orelhas achatadas e cara fechada, que reage espantado a seu boa-noite.

Ganha a rua. O céu está parcialmente nublado e algumas bátegas de chuva caem sobre o asfalto quente produzindo vapor. Segue para o ponto de ônibus. As sacolas pesam demais e comprometem a cadência de seus passos. Cinco minutos para as oito da noite. Natal é uma bosta. Que bom que já vai passar. Oxalá essa zonzeira passe logo também.

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