sábado, 21 de novembro de 2009

A Resposta

dedicado à senhorita D.

E como o escritor houvesse respondido a todas as suas perguntas de modo lacônico até então, expelindo ásperos monossílabos que lhe feriam não só os ouvidos como também a auto-estima, a jovem jornalista não acreditou que uma última questão pudesse salvar a entrevista.

Antes de decidir-se a formular uma derradeira pergunta, ajeitou-se uma vez mais no sofá do escritório. Um sofá macio de dois assentos, coberto com uma manta verde-água que cheirava a livros e cachorros velhos. O escritor estava sentado numa cadeira de alumínio estofada e reclinável a pouco mais de um metro e meio de si. Ela precisava inclinar ligeiramente a cabeça para o alto a fim de encará-lo nos olhos, uma vez que ele se encontrava num patamar cerca de trinta centímetros acima do seu.

O senhor disse uma vez que não acredita na escrita como fruto de uma necessidade. O que o incita a escrever? Por que o senhor escreve?

O escritor descruzou as pernas e pousou languidamente os braços longos e flácidos sobre elas. O mal-estar que não se esforçara por ocultar durante toda a conversa tornava ainda mais fundos os vincos que lhe sulcavam a face septuagenária. Abriu a boca de finos lábios arroxeados e ensaiou um preâmbulo que não passou de muxoxos e outros sons ininteligíveis. Alguns segundos depois, ele ditou a resposta:

Eu escrevo para aliviar a dor dos reumáticos e dos cancerosos. De todos os que sofrem enfim, nesta terra onde os homens vivem a gemer*. Escrevo para que os bons ressuscitem e os maus padeçam. Escrevo para desbastar as almas torvas, aguar os sítios áridos. Eu escrevo para fazer dormir os insones e despertar os letárgicos. Para que haja entendimento entre os povos. Justiça. Fraternidade. Solidariedade entre os homens. Escrevo para aplacar o ímpeto dos suicidas, a aflição dos solitários e a ansiedade dos compulsivos. Eu escrevo para que as crianças cresçam saudáveis e os velhos retornem à terra com o mínimo de angústia e o máximo de entendimento. Para que nenhuma espécie ou ecossistema se extinga. Para impedir as queimadas. Deter as pequenas tragédias cotidianas. Escrevo para conter o derretimento das calotas polares. E para que as tartarugas retornem à praia onde um dia eclodiram do ovo com o fito de depositar outros ovos. Eu escrevo para amplificar o clamor dos oprimidos e abafar os desmandos dos tiranos. Para evitar colisões aéreas. Para consolar os pais que enterram os filhos e os filhos que velam os pais. Para que os campos floresçam e os arsenais nucleares mingúem. Eu escrevo para expiar a culpa dos arrependidos e disseminar o perdão. Escrevo para. Eu escrevo...

Deteve-se abruptamente, como se suas cordas vocais houvessem se rompido. A frase morreu insipiente. Os olhos bastos quedaram-se fixos num ponto inexistente, parecia que a alma tinha-se esvaído do corpo por uma fresta escusa qualquer.

Sensibilizada – talvez essa não seja a palavra correta – com o destempero do velho romancista, a inexperiente repórter, incapaz de sacá-lo do estado de torpor em que mergulhara, juntou seus pertences – um bloco de notas, uma esferográfica, gravador, e o último romance do mestre que saíra por uma pequena editora em tiragem ainda menor -, levantou, não sem alguma dificuldade, do sofá, agradeceu pela atenção e caminhou na direção da porta.

Antes de deixar o escritório, a jornalista não pôde se furtar a dar uma última olhada para trás. A figura tétrica continuava na mesma posição em que ela a abandonara, a mesma efígie insondável. Saiu e ato contínuo fechou a porta quase bruscamente. Quando ganhou o saguão do edifício, pensou em retroagir e tentar insuflar algum ânimo ao velho romancista, mas preferiu confortar-se com a idéia de que ele voltara a escrever tão logo ela fechou a porta.

(Conto publicado originalmente no site Arlequinal, com o qual contribuo de vez em quando.)

*Verso do poema Ode a um rouxinol, de John Keats.

domingo, 15 de novembro de 2009

Algumas literárias I

Juventude – Esse romance de formação (ou deformação, como bem definiu André de Leones num post antigo) do escritor sul-africano J. M. Coeetze é um verdadeiro portento para os apreciadores da boa prosa. Narrado em terceira pessoa, no estilo conciso e sóbrio de Coeetze, consagrado em obras-primas como Desonra e Diário de um ano ruim, esse livro traz as memórias romanceadas do jovem John, um estudante de matemática e aspirante a poeta que ganha a vida trabalhando como programador de computadores numa sucursal da IBM na Londres dos anos 60. No seu tempo livre, além de dedicar-se à poesia, John visita museus, vai ao cinema, paquera, e faz leitura crítica dos escritores que admira. Na medida em que o emprego começa a lhe tolher as energias, ele acredita que não conseguirá alcançar seu fito maior, que é se tornar um bom poeta. Então lhe ocorre que a prosa é o caminho escolhido por aqueles que não conseguiram “encontrar a poesia”, ou seja, que a prosa é o refúgio dos poetas medíocres. Dúvidas as mais variadas o assaltam ao longo da narrativa, marcada por observações preciosas e agudas, do tipo que só os grandes escritores são capazes de produzir sem jamais cair no lugar-comum. Nada de muito extraordinário acontece no decorrer das cerca de 180 páginas em que acompanhamos a vida de John, e é incrível como Coeetze transforma essa “ausência de aventuras” num ponto positivo do romance, extraindo reflexão e grandeza do cotidiano insosso e não raro melancólico do protagonista. Juventude é o típico livro que, mal terminamos a leitura, dá vontade de começar de novo.

Austerlitz – Não sei que palavras usar para qualificar esse romance do escritor alemão W.G. Sebald. Fantástico, extraordinário, fabuloso, magistral – nenhum desses adjetivos define com justeza a obra de Sebald, e simplesmente dizer que se trata de uma obra-prima não ajuda a dar a dimensão da sua importância. Talvez o mais coerente seja afirmar que Austerlitz, com sua mistura de ficção, ensaio e memória, seja um livro inclassificável. Suas frases longas e sinuosas, de uma exatidão acadêmica, mas sempre repletas de cores, cheiros, sensações, nos transportam para um universo muito particular, causam uma espécie de suspensão do tempo real, e durante a leitura, o que não diz respeito a essa dimensão estanque se nos afigura irrelevante. Também as fotos que ilustram o livro nos causam grande arrebatamento, pois estão de tal modo relacionadas a esse mundo próprio no qual estamos mergulhados, que é como se emergissem de nossa própria consciência. E do que trata o romance, afinal? Grosso modo, Austerliz narra a história de um professor de arquitetura, Jacques Austerlitz, homem culto e viajado, cuja trajetória de vida foi brutalmente alterada pelo Holocausto. O narrador em primeira pessoa é um viajante que encontra o professor Austerlitz por acaso, numa estação ferroviária em Antuérpia, na década de 60, e se encanta pelos depoimentos que ouve dessa rica personagem com quem volta a se encontrar algumas vezes.

Quem tiver interesse em obter mais informações sobre a vida e a obra de W.G. Sebald, pode começar lendo este excelente texto escrito por Almir de Freitas para a revista Bravo.

sábado, 24 de outubro de 2009

Meninos Incompreendidos

Antoine Doinel e Jason Taylor são dois garotos de 13 anos do século XX. O primeiro vive na França da década de 50, e o segundo na Inglaterra dos anos 80. Ambos são saudáveis, inteligentes, e vivem em família. A família de Antoine é pobre e negligente para com ele; já a de Jason é de classe média, e o prove de conforto material e afeto. Por viverem na Europa, continente em que a maioria dos países preza pela educação, os dois adolescentes freqüentam boas escolas públicas - e passam por dificuldades diferentes também. Os problemas que Jason enfrenta na sua rotina escolar são, em sua maioria, decorrentes dos conflitos com colegas mais fortes e imbecis que ele. Antoine Doinel, ao contrário de Jason, não é impopular nem tampouco vítima de perseguição dos colegas; seu nome está associado a um tipo de liderança negativa, e não ao de um grupo de crianças bem comportadas e introvertidas que sofrem nas mãos dos colegas sádicos.

Antoine Doinel é o protagonista de Os Incompreendidos (1959), filme de estréia de François Truffaut e marco da Nouvelle Vague. Monumento de simplicidade e beleza, este longa-metragem narra as aventuras e os dissabores vividos por esse alter-ego de Truffaut na Paris do pós-guerra. Movido por um misto de curiosidade e revolta, Doinel confronta a autoridade dos pais e dos professores, e se encaminha para uma vida anárquica e precoce. Filho adotivo, o garoto interpretado por Jean Pierre Léaud vive numa casa humilde onde dorme num catre no quartinho dos fundos. A mãe, uma mulher jovem e bonita, nos é apresentada numa bela seqüência em que chega do trabalho, põe-se a despir as meias-calça e a reclamar os chinelos que não encontra. De início percebemos seu desprezo pelo filho. Ele é cobrado e criticado o tempo todo, não recebe nenhuma manifestação de carinho ou apoio, e muitas vezes é tratado como um simples empregado doméstico. Os olhos de Antoine / Jean Pierre ora lembram os de um cão vadio, ora expressam agressividade e ressentimento. Quando miram o pai, no entanto, os olhos do menino ganham alguma vivacidade. Há um clima de camaradagem entre os dois, que só é desfeito quando Antoine comete suas traquinagens e pequenos delitos, ou quando resolve se insurgir contra as arbitrariedades dos próprios pais e da sociedade em geral.

Jason Taylor é o narrador-protagonista de Menino de Lugar Nenhum, romance de formação do escritor britânico David Mitchell, lançado o ano passado no Brasil pela editora Cia das Letras. Ele vive numa cidadezinha do interior da Inglaterra chamada Black Swan Green, título original do livro. Amado e protegido pela família, Taylor não encontra a mesma acolhida de que dispõe em casa na escola. Vítima de gagueira, é alvo constante de chacota dos outros garotos, que o apelidam de Verme. Para minimizar o problema da gagueira, chamada por ele de Carrasco, Jason recorre a uma fonoaudióloga. Além de se interessar por atividades caras à maioria dos garotos de sua idade, Jason dedica-se (secretamente) à poesia. Reconhece, em dado momento da narrativa, que se os colegas descobrissem esse seu hobby sua vida social estaria comprometida de vez. Por isso envia poemas para concursos e revistas locais sob o pseudônimo de Eliot Bolívar. “Quando você mostra pra alguém uma coisa que escreveu, está oferecendo uma estaca pontiaguda, deitando no caixão e dizendo ‘Quando você quiser’”, diz na ocasião em que encontra Madame Crommelynck, senhora culta e experiente que faz críticas construtivas à sua obra.

As narrativas de Truffaut e Mitchell têm pontos em comum, como a fluência e o lirismo. Não há espaço para a pieguice nem para a divagação gratuita. Mas o humor está presente em ambas, principalmente como antídoto a um possível laivo de (auto)comiseração que poderia arruinar os relatos de cunho autobiográfico. Os personagens também não são caricatos nem agem segundo uma disposição maniqueísta. Por mais cruéis que os pais de Antoine Doinel possam ser, eles são dotados de algum senso de justiça, e soam sinceros quando se põem a ministrar conselhos que julgam importantes para a formação do filho. Por vezes os personagens de Menino de Lugar Nenhum podem parecer estereotipados, mas isso não é um problema narrativo, e sim uma conseqüência do olhar imaturo e parcial do protagonista-narrador. Seus algozes, por exemplo, são naturalmente descritos como bestas-feras despidas de bons sentimentos. Os pais, apesar de cuidar para que nada lhe falte, vivem às turras, o que é motivo de descontentamento para Jason.

Dois adolescentes de natureza diversa vivendo no mesmo século em décadas diferentes. Jason Taylor e Antoine Doinel. O primeiro tenta se livrar do assédio dos colegas de escola e sofre com a separação dois pais. O segundo possui espírito livre e se esforça para adaptar-se à vida em sociedade, a qual julga castradora e injusta.

François Truffaut e David Mitchell. Um cineasta e um romancista de origens e épocas diferentes. Dois grandes artistas. Duas grandes obras.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Angústia II

A linguagem em Angústia é extremamente concisa e percuciente. A sensação de asfixia gerada pelos períodos curtos e a aspereza dos adjetivos denotam o mal-estar do narrador frente ao mundo. Como ressaltei anteriormente, não obstante seu relato seja marcado pela desesperança e pelo ódio, de um modo geral Luis da Silva sente compaixão pela gente humilde com que ele convive. Dona Adélia, por exemplo, a mãe de Marina, fora “carrapeta”, vivaz, e não devia se sentir culpada por ter se transformado numa pessoa infeliz. Já o marido, Seu Ramalho, é um homem trabalhador e honesto, que não merecia o desgosto causado pela leviandade da filha. Seu Ivo é um sujeito imprestável mas bom, que ora amarga a ira de Luis, ora goza de sua generosidade. A prostituta, a empregada, a datilógrafa, o pai, o avô (Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva), os antigos escravos e empregados da fazenda – todos perpassam as memórias de Luis da Silva, que os descreve de maneira sóbria e ampla, expondo suas faltas e suas virtudes. A única personagem que não recebe qualquer misericórdia por parte do narrador é Julião Tavares, a personificação do que Luis da Silva julga haver de pior num ser humano.

Os ratos que infestam a casa de Luis da Silva “mijam na literatura”; Marina faz a higiene no banheiro do quintal, dá uma “mijada sonora.”A poesia em Angústia é de origem orgânica: cheiros, feições e fluidos são evocados ao longo de todo o romance, compondo uma atmosfera poética única em nossa literatura, que talvez só encontre paralelo em algumas obras de Aloísio Azevedo, como O Cortiço.

Luis da Silva se ufana intimamente de sua erudição, mas nunca a alardeia. Tanto o repugnam as pessoas que desprezam a educação e a cultura quanto os beletristas, os parnasianos e seus preciosismos. É inclemente com os livros ruins e seus autores, tal qual Graciliano tinha fama de ser. Aliás, é fácil, e por isso mesmo perigoso e inapropriado, identificar semelhanças entre autor e personagem. Como todo grande ficcionista, Graciliano Ramos certamente deve ter emprestado muito de si a Luis da Silva. Vícios e qualidades do mestre devem ter sido empregados na construção dessa personagem tão complexa e fascinante que é Luis da Silva, alguém com quem nos identificamos por ser, em certa medida, parecido com todos nós.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Angústia I

Li Angústia pela primeira vez aos 19 anos. Foi meu primeiro contato com a obra de Graciliano Ramos. Nunca li um livro do mestre alagoano por obrigação; sempre que o fiz foi por prazer e/ou curiosidade. Angústia foi um dos livros que marcaram o início de minha trajetória de leitor. Dizem que Graciliano não gostava muito do romance, que o julgava mal escrito. É difícil saber se isso corresponde à verdade. Não há (muitas?) testemunhas vivas que possam desmentir ou confirmar esse tipo de boato. Além do quê, existem várias lendas em torno da figura desse notável escritor. A de que ele era impiedoso com os jovens romancistas que lhe apresentavam originais ruins talvez seja a mais conhecida delas. Fala-se até que ele chegava ao ponto de rasgar contos ou artigos medíocres na frente do infeliz do autor. Eu sinceramente não acredito nisso. Não acredito que o autor de Memórias do Cárcere e Infância fosse capaz de tal descompostura. E ainda assim já tive pesadelos em que Graciliano, depois de passar os olhos por um escrito qualquer meu, rasgava-o em mil pedaços bem diante de mim.

Reli Angústia recentemente. E o achei extraordinário de novo. Penso que reler um bom livro é um dos maiores prazeres que uma pessoa letrada pode experimentar. Sempre que releio um livro que foi de grande importância para a minha formação, sinto-me remoçado. Há títulos aos quais eu sempre retorno: O Encontro Marcado, do Fernando Sabino, é um deles. Eduardo Mariano, narrador do romance, é um dos meus personagens favoritos da literatura nacional. Luis da Silva, o narrador de Angústia, certamente também figura nessa lista.

Ao contrário do que muitos apregoam, não considero Angústia um romance pessimista. O amargurado Luis da Silva lança quase sempre um olhar compassivo sobre seus semelhantes. Seu ódio é direcionado apenas àqueles que considera vis de alguma forma, como Julião Tavarez, seu antagonista, e Marina, pivô de sua desilusão amorosa. Tal como a maioria dos personagens criados por Graciliano Ramos, Luis da Silva é um ser abrutalhado, que apesar de possuir certo refinamento intelectual – única característica que o distingue de Paulo Honório e Fabiano, respectivos protagonistas de São Bernardo e Vidas Secas, por exemplo - tem sérias dificuldades para se relacionar com as outras pessoas. Todos os seus gestos, até mesmo os mais amistosos, estão carregados de uma violência tipicamente sertaneja, e de uma melancolia comum aos existencialistas. Luis da Silva tem plena consciência de que não passa de “um Luis da Silva qualquer”, ou seja, de que está só no mundo, de que não há nada nem ninguém que o ampare ou governe seu destino, e que portanto está condenado à liberdade.

Marina, a vizinha por quem Luis se apaixona, continua sendo uma mulher sem consciência do quanto sua beleza e sua displicência podem ferir os homens. É a mesma Marina cantada por Dorival Caymmi, que se pinta e se enfeita sem precisar, vulgarizando assim seus belos traços ao invés de realçá-los. Uma das mulheres mais interessantes da nossa literatura, sem dúvida.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Um desejo de morte ou de dor

Continuamos a caminhar. (...) Retomamos o caminho. Até quando? Os homens vão morrendo a nossa lado. Breve, morreremos nós também, sem termos feito o que foi sonho em nós, ou fantasia. A vida é assim. Temos de vivê-la, é nosso ofício provisório. Um dia, sem que saibamos por que nem como, talvez pingue de nós, obscuramente, ao caminharmos à noite, o começo de uma longa história.

Antonio Carlos Villaça / O Nariz do Morto

Eu me olhava no espelho e perguntava: Você quer a vida medíocre? E se você precisar que alguém lhe estenda a mão para atravessar a rua... Bem, é natural que você sinta medo. Acho que sim. Olhar para baixo do alto de um grande edifício ou de um viaduto costuma causar vertigem e ânsia de vômito em quem nunca se encaixou confortavelmente no escaninho que lhe foi legado pelo destino. Você quer a vida medíocre? Para começar a viver de verdade, arrisque dar um passo à frente. Ande – desacreditado ou não – pelo fio dilacerante da absurdidade, e goze, em vez de simplesmente lamentar, o desconforto causado por cada sorriso amarelo. Por que você não cumprimenta ou sequer encara os fantasmas que fazem a ronda noturna nos seus sonhos mais pesados e úmidos? Sinta o desequilíbrio, a angústia e os questionamentos perpétuos que enfraquecem gradativamente seus ossos. Suas mãos estão úmidas e frias, seus pés estão moles e começaram a se esfarelar, sua cabeça lateja e sua boca está dormente. Custa colocar dois ou três substantivos concretos e coloridos neste texto? Você deveria se permitir um cheiro (bom ou ruim, não importa), uma imagem (um homem magro e pálido que usa um chapéu marrom de couro, fuma um cachimbo castanho e perolado, e ri ou chora nervosamente; uma mulher velha e gorda, tintura roxa no cabelo crespo e curto, que sobe ofegante uma ladeira), ou até um toque morno e fugidio de uma criança peralta ou de um animal mais ou menos domesticado. E mesmo se nada existisse. Ou então se tudo o que lhe disseram repetidas vezes, com entonações variadas e alguns falsetes, for verdade. Quando você cair e não puder mais abrir os olhos que já terão escorregado mansamente por um desvão qualquer do mundo... Se você se diluir todo durante a última chuva, se ela aguar seu sangue e torná-lo menos espesso, talvez você finalmente se misture e se confunda com todos os outros seres e as substâncias todas que um dia os homens lograram nomear, e possa, quem sabe, respirar de novo.

Você quer a vida medíocre?

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Paulinho da Viola conta e canta Lupicínio Rodrigues.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Forever Young

Eu ia escrever um post sobre os últimos filmes que vi na tevê, mas, uma vez que os dois posts anteriores ficaram uma merda, resolvi poupar dessa chateação os dois ou três leitores habituais deste blog. Se bem que é forçoso não compartilhar o fato de ter visto As Virgens Suicidas pela segunda vez ontem à noite.

O primeiro e surpreendente filme de Sofia Coppola é uma adaptação do extraordinário romance homônimo do americano Jeffrey Eugenides, lançado no Brasil pela editora Rocco, em ótima tradução de Marina Colasanti. Após debutar no cinema como atriz na terceira parte de O Poderoso Chefão, e ter sofrido duras críticas por sua atuação medíocre, Sofia resolveu voltar ao meio agora como diretora, e escolheu um material no mínimo ousado, que poderia ter comprometido seriamente essa sua nova empreitada. Para sorte nossa não foi o que ocorreu. Tendo o pai, Francis Ford Coppola, como um dos produtores, e o apoio de um elenco de primeira – com destaque para James Woods e Kathleen Turner, que vivem os pais das cinco adolescentes -, Sofia conseguiu fazer um filme sensível e original, ainda que não impecável. Entre as lindas garotas loiras que interpretam as irmãs suicidas, destaca-se a talentosa Kirsten Dunst, que voltaria a trabalhar com a diretora em Maria Antonieta, no qual interpreta o papel-título.

Quando vi o filme pela primeira vez, eu ainda não havia lido o livro. Depois de ter comprado e lido a edição de bolso lançada pela Rocco em parceria com a L&PM por R$ 13,00, achei o filme ainda melhor. Trata-se de uma brilhante adaptação de um romance complexo, narrado na segunda pessoa do plural por um grupo de garotos que testemunham a morte de cada uma das meninas.

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Bob Dylan é gênio? A maioria dos chimpanzés (eu incluso) acha que sim, mas há quem o considere apenas um compositor competente e superestimado. Lembro de uma cena de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa em que (o genial) Woody Allen ridiculariza o músico num curto bate-papo com uma fã dele. A propósito, quem interpreta a tiete de Dylan é a ótima Shelley Duvall, de O Iluminado, e Popeye. Por ande anda Shelley Duval?

Um compositor nacional constantemente comparado a Dylan é Chico Buarque, que já chegou a ser chamado de “Bob Dylan brasileiro” nos EUA. Chico é quase unanimidade no Brasil: gênio. Mas seus detratores o acusam de barroco e exageradamente rebuscado. Na minha modesta opinião, o repertório de Chico vai do sublime ao tedioso, sempre com muita dignidade. Foi esse, aliás, o parecer de Paulo Francis a respeito de 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, como li numa dessas deliciosas coletâneas de artigos do escritor.