terça-feira, 6 de outubro de 2009

Angústia II

A linguagem em Angústia é extremamente concisa e percuciente. A sensação de asfixia gerada pelos períodos curtos e a aspereza dos adjetivos denotam o mal-estar do narrador frente ao mundo. Como ressaltei anteriormente, não obstante seu relato seja marcado pela desesperança e pelo ódio, de um modo geral Luis da Silva sente compaixão pela gente humilde com que ele convive. Dona Adélia, por exemplo, a mãe de Marina, fora “carrapeta”, vivaz, e não devia se sentir culpada por ter se transformado numa pessoa infeliz. Já o marido, Seu Ramalho, é um homem trabalhador e honesto, que não merecia o desgosto causado pela leviandade da filha. Seu Ivo é um sujeito imprestável mas bom, que ora amarga a ira de Luis, ora goza de sua generosidade. A prostituta, a empregada, a datilógrafa, o pai, o avô (Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva), os antigos escravos e empregados da fazenda – todos perpassam as memórias de Luis da Silva, que os descreve de maneira sóbria e ampla, expondo suas faltas e suas virtudes. A única personagem que não recebe qualquer misericórdia por parte do narrador é Julião Tavares, a personificação do que Luis da Silva julga haver de pior num ser humano.

Os ratos que infestam a casa de Luis da Silva “mijam na literatura”; Marina faz a higiene no banheiro do quintal, dá uma “mijada sonora.”A poesia em Angústia é de origem orgânica: cheiros, feições e fluidos são evocados ao longo de todo o romance, compondo uma atmosfera poética única em nossa literatura, que talvez só encontre paralelo em algumas obras de Aloísio Azevedo, como O Cortiço.

Luis da Silva se ufana intimamente de sua erudição, mas nunca a alardeia. Tanto o repugnam as pessoas que desprezam a educação e a cultura quanto os beletristas, os parnasianos e seus preciosismos. É inclemente com os livros ruins e seus autores, tal qual Graciliano tinha fama de ser. Aliás, é fácil, e por isso mesmo perigoso e inapropriado, identificar semelhanças entre autor e personagem. Como todo grande ficcionista, Graciliano Ramos certamente deve ter emprestado muito de si a Luis da Silva. Vícios e qualidades do mestre devem ter sido empregados na construção dessa personagem tão complexa e fascinante que é Luis da Silva, alguém com quem nos identificamos por ser, em certa medida, parecido com todos nós.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Angústia I

Li Angústia pela primeira vez aos 19 anos. Foi meu primeiro contato com a obra de Graciliano Ramos. Nunca li um livro do mestre alagoano por obrigação; sempre que o fiz foi por prazer e/ou curiosidade. Angústia foi um dos livros que marcaram o início de minha trajetória de leitor. Dizem que Graciliano não gostava muito do romance, que o julgava mal escrito. É difícil saber se isso corresponde à verdade. Não há (muitas?) testemunhas vivas que possam desmentir ou confirmar esse tipo de boato. Além do quê, existem várias lendas em torno da figura desse notável escritor. A de que ele era impiedoso com os jovens romancistas que lhe apresentavam originais ruins talvez seja a mais conhecida delas. Fala-se até que ele chegava ao ponto de rasgar contos ou artigos medíocres na frente do infeliz do autor. Eu sinceramente não acredito nisso. Não acredito que o autor de Memórias do Cárcere e Infância fosse capaz de tal descompostura. E ainda assim já tive pesadelos em que Graciliano, depois de passar os olhos por um escrito qualquer meu, rasgava-o em mil pedaços bem diante de mim.

Reli Angústia recentemente. E o achei extraordinário de novo. Penso que reler um bom livro é um dos maiores prazeres que uma pessoa letrada pode experimentar. Sempre que releio um livro que foi de grande importância para a minha formação, sinto-me remoçado. Há títulos aos quais eu sempre retorno: O Encontro Marcado, do Fernando Sabino, é um deles. Eduardo Mariano, narrador do romance, é um dos meus personagens favoritos da literatura nacional. Luis da Silva, o narrador de Angústia, certamente também figura nessa lista.

Ao contrário do que muitos apregoam, não considero Angústia um romance pessimista. O amargurado Luis da Silva lança quase sempre um olhar compassivo sobre seus semelhantes. Seu ódio é direcionado apenas àqueles que considera vis de alguma forma, como Julião Tavarez, seu antagonista, e Marina, pivô de sua desilusão amorosa. Tal como a maioria dos personagens criados por Graciliano Ramos, Luis da Silva é um ser abrutalhado, que apesar de possuir certo refinamento intelectual – única característica que o distingue de Paulo Honório e Fabiano, respectivos protagonistas de São Bernardo e Vidas Secas, por exemplo - tem sérias dificuldades para se relacionar com as outras pessoas. Todos os seus gestos, até mesmo os mais amistosos, estão carregados de uma violência tipicamente sertaneja, e de uma melancolia comum aos existencialistas. Luis da Silva tem plena consciência de que não passa de “um Luis da Silva qualquer”, ou seja, de que está só no mundo, de que não há nada nem ninguém que o ampare ou governe seu destino, e que portanto está condenado à liberdade.

Marina, a vizinha por quem Luis se apaixona, continua sendo uma mulher sem consciência do quanto sua beleza e sua displicência podem ferir os homens. É a mesma Marina cantada por Dorival Caymmi, que se pinta e se enfeita sem precisar, vulgarizando assim seus belos traços ao invés de realçá-los. Uma das mulheres mais interessantes da nossa literatura, sem dúvida.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Um desejo de morte ou de dor

Continuamos a caminhar. (...) Retomamos o caminho. Até quando? Os homens vão morrendo a nossa lado. Breve, morreremos nós também, sem termos feito o que foi sonho em nós, ou fantasia. A vida é assim. Temos de vivê-la, é nosso ofício provisório. Um dia, sem que saibamos por que nem como, talvez pingue de nós, obscuramente, ao caminharmos à noite, o começo de uma longa história.

Antonio Carlos Villaça / O Nariz do Morto

Eu me olhava no espelho e perguntava: Você quer a vida medíocre? E se você precisar que alguém lhe estenda a mão para atravessar a rua... Bem, é natural que você sinta medo. Acho que sim. Olhar para baixo do alto de um grande edifício ou de um viaduto costuma causar vertigem e ânsia de vômito em quem nunca se encaixou confortavelmente no escaninho que lhe foi legado pelo destino. Você quer a vida medíocre? Para começar a viver de verdade, arrisque dar um passo à frente. Ande – desacreditado ou não – pelo fio dilacerante da absurdidade, e goze, em vez de simplesmente lamentar, o desconforto causado por cada sorriso amarelo. Por que você não cumprimenta ou sequer encara os fantasmas que fazem a ronda noturna nos seus sonhos mais pesados e úmidos? Sinta o desequilíbrio, a angústia e os questionamentos perpétuos que enfraquecem gradativamente seus ossos. Suas mãos estão úmidas e frias, seus pés estão moles e começaram a se esfarelar, sua cabeça lateja e sua boca está dormente. Custa colocar dois ou três substantivos concretos e coloridos neste texto? Você deveria se permitir um cheiro (bom ou ruim, não importa), uma imagem (um homem magro e pálido que usa um chapéu marrom de couro, fuma um cachimbo castanho e perolado, e ri ou chora nervosamente; uma mulher velha e gorda, tintura roxa no cabelo crespo e curto, que sobe ofegante uma ladeira), ou até um toque morno e fugidio de uma criança peralta ou de um animal mais ou menos domesticado. E mesmo se nada existisse. Ou então se tudo o que lhe disseram repetidas vezes, com entonações variadas e alguns falsetes, for verdade. Quando você cair e não puder mais abrir os olhos que já terão escorregado mansamente por um desvão qualquer do mundo... Se você se diluir todo durante a última chuva, se ela aguar seu sangue e torná-lo menos espesso, talvez você finalmente se misture e se confunda com todos os outros seres e as substâncias todas que um dia os homens lograram nomear, e possa, quem sabe, respirar de novo.

Você quer a vida medíocre?

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Paulinho da Viola conta e canta Lupicínio Rodrigues.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Forever Young

Eu ia escrever um post sobre os últimos filmes que vi na tevê, mas, uma vez que os dois posts anteriores ficaram uma merda, resolvi poupar dessa chateação os dois ou três leitores habituais deste blog. Se bem que é forçoso não compartilhar o fato de ter visto As Virgens Suicidas pela segunda vez ontem à noite.

O primeiro e surpreendente filme de Sofia Coppola é uma adaptação do extraordinário romance homônimo do americano Jeffrey Eugenides, lançado no Brasil pela editora Rocco, em ótima tradução de Marina Colasanti. Após debutar no cinema como atriz na terceira parte de O Poderoso Chefão, e ter sofrido duras críticas por sua atuação medíocre, Sofia resolveu voltar ao meio agora como diretora, e escolheu um material no mínimo ousado, que poderia ter comprometido seriamente essa sua nova empreitada. Para sorte nossa não foi o que ocorreu. Tendo o pai, Francis Ford Coppola, como um dos produtores, e o apoio de um elenco de primeira – com destaque para James Woods e Kathleen Turner, que vivem os pais das cinco adolescentes -, Sofia conseguiu fazer um filme sensível e original, ainda que não impecável. Entre as lindas garotas loiras que interpretam as irmãs suicidas, destaca-se a talentosa Kirsten Dunst, que voltaria a trabalhar com a diretora em Maria Antonieta, no qual interpreta o papel-título.

Quando vi o filme pela primeira vez, eu ainda não havia lido o livro. Depois de ter comprado e lido a edição de bolso lançada pela Rocco em parceria com a L&PM por R$ 13,00, achei o filme ainda melhor. Trata-se de uma brilhante adaptação de um romance complexo, narrado na segunda pessoa do plural por um grupo de garotos que testemunham a morte de cada uma das meninas.

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Bob Dylan é gênio? A maioria dos chimpanzés (eu incluso) acha que sim, mas há quem o considere apenas um compositor competente e superestimado. Lembro de uma cena de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa em que (o genial) Woody Allen ridiculariza o músico num curto bate-papo com uma fã dele. A propósito, quem interpreta a tiete de Dylan é a ótima Shelley Duvall, de O Iluminado, e Popeye. Por ande anda Shelley Duval?

Um compositor nacional constantemente comparado a Dylan é Chico Buarque, que já chegou a ser chamado de “Bob Dylan brasileiro” nos EUA. Chico é quase unanimidade no Brasil: gênio. Mas seus detratores o acusam de barroco e exageradamente rebuscado. Na minha modesta opinião, o repertório de Chico vai do sublime ao tedioso, sempre com muita dignidade. Foi esse, aliás, o parecer de Paulo Francis a respeito de 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, como li numa dessas deliciosas coletâneas de artigos do escritor.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Algumas cinematográficas II

Em DVD

Assisti a sete filmes em DVD nos dois últimos fins de semana:

O Leitor – Embora Kate Winslet esteja muito bem como a sentinela nazista que se envolve com o tal leitor do título, apenas isso não garante o interesse pelo filme, que aliás é bem enfadonho. Trata-se de um melodrama em dois atos com uma carga de “filme de tribunal.” A mensagem essencial do filme é a seguinte: facínoras também amam.

Foi apenas um sonho – Outro filme protagonizado pela ótima Kate Winslet, em sua segunda parceria com Leonardo DiCaprio. Dirigido por Sam Mendes (Beleza Americana, Soldado Anônimo), este drama versa basicamente sobre os conflitos de um jovem casal suburbano nos EUA da década de 50. Inconformados com sua vida monótona, Frank e April (DiCaprio e Winslet) sonham em se mudar para Paris a fim de viver uma vida menos ordinária. April é a atriz frustrada que não aceita sua condição de mãe e dona-de-casa, e Frank é um funcionário insatisfeito de uma grande empresa na qual o pai também fizera carreira como vendedor. Convencido pela esposa, ele resolve pedir as contas e ir para Paris. Quando a notícia se espalha, o casal vira motivo de chacota na vizinhança, o que só reforça seu desejo de mudar de vida. Um tema interessante – assim como o de O Leitor. Mas o resultado final é apenas mediano, como de resto toda a obra do diretor.

A Garota Ideal - Ryan Gosling vive um auxiliar de escritório misantropo que um belo dia apresenta uma boneca inflável como sua namorada à família e aos vizinhos. A princípio o espanto é geral, mas aos poucos todos aceitam o namoro com certa naturalidade a fim de não ferir os sentimentos do rapaz. Mais uma comédia dramática “sensível e inteligente” – e dispensável - produzida pelo cinema independente americano.

A Felicidade Não Se Compra – Clássico do cinema americano dirigido por Frank Capra e estrelado por James Stuart, em 1946. Uma parábola sobre os valores essenciais da América. Stuart interpreta um jovem do interior dos EUA que abre mão de suas mais altas ambições para se dedicar ao bem-estar da família e do povoado local. Aliás, só agora me ocorrem as (ligeiras) semelhanças entre esse filme e o recente Foi apenas um sonho. Cada qual trata do american way of life à sua maneira: o primeiro pela via do humor e do melodrama, e o segundo pela via da tragédia.

O Agente da Estação – Outro produto do cinema alternativo americano. Mas este me parece um projeto mais bem-sucedido que “A Garota Ideal”. Novamente o protagonista é um outsider, o que é quase uma regra inalterável do cinema indie mundial. Finbar (o ótimo Peter Dinklage) é um anão que trabalha numa oficina de brinquedos em Nova Iorque. Sua especialidade é o conserto de trens elétricos. Com a morte de seu patrão e amigo, Fin herda uma pequena propriedade à margem de uma linha ferroviária numa cidadezinha do interior, para onde acaba se mudando. Lá ele conhece um pequeno grupo de pessoas com quem faz amizade. O desenrolar dessas novas amizades e a maneira como Finbar encara o preconceito e o deboche são os fios condutores desse drama bastante acima da média.

Embriagado de Amor – O quarto filme do diretor Paul Thomas Anderson (Magnólia, Boogie Nights) é uma insólita comédia romântica estrelada por Adam Sandler e Emily Watson. Ele é um pequeno empresário do ramo dos desentupidores de pia, atormentado pela solidão e por suas sete irmãs superprotetoras; e ela é a “mulher misteriosa” que entra na vida dele por intermédio de uma das irmãs. A maioria dos recursos cinematográficos caros a P.T. Anderson está lá: planos longos, atuações carregadas (quase caricatas), cores vibrantes – porém não há mais o mesmo painel narrativo presente em seus trabalhos anteriores.

Amores – Comédia nacional sobre relacionamentos amorosos contemporâneos, dirigida por Domingos Oliveira, e baseada em sua peça homônima. Como em toda adaptação teatral, o forte é o desempenho dos atores, essencial para a sustentação da trama. Domingos de Oliveira filma de maneira muito simples: a câmera sempre acompanha os personagens de perto, restringindo ao máximo o espaço da ação. A preocupação com cenário, figurino, iluminação, e demais recursos técnicos é mínima – o que interessa é pura e simplesmente a mise-en-scéne. Divertido, sem dúvida. As questões discutidas também são bastante pertinentes. Mas o filme posterior de Domingos, “Separações”, me parece mais rico em todos os sentidos.

sábado, 22 de agosto de 2009

Algumas cinematográficas I

Últimas idas ao cinema



Inimigos Públicos - O último filme que me levou ao cinema. Um legítimo e moderno "filme de gângster", dirigido por Michael Mann, o mesmo dos ótimos Fogo Contra Fogo, Colateral e Miami Vice, e estrelado por Johnny Depp, Christian Bale e Marion Cotillard. As seqüências de ação são primorosas, os diálogos são inteligentes, e as interpretações (destaque para o sempre ótimo Deep), cativantes.


A Era do Gelo 3 - Tão divertido quanto os anteriores, embora menos interessante. O filme foi todo pensado para a exibição em 3 D, como provam as infindáveis cenas de ação que por vezes cansam um pouco. Ninguém sai insatisfeito do cinema, mas com a sensação de que o material se esgotou.


Transformers - A Vingança dos Derrotados: Com essa sequência, Michael Bay surpreendeu a todos com sua capacidade de superação: o filme é muito pior que o primeiro, que já é bem ruim. Duas horas e meia de tortura mitigadas apenas pela beleza de Megan Fox.


sábado, 1 de agosto de 2009

Diário de um chimpanzé (VI)

Rotina

Nos últimos dias ele tem alternado sentimentos de resignação e esperança. Quase nunca é agredido pela falta de sentido que sempre o acompanhou. Ainda não é a sensação de conforto absoluto que um dia pretende trazer consigo, a sensação de que viver é natural, e que portanto deve encarar seu destino humano como um chimpanzé ou um lagarto encaram o seu. Depois que experimentou o pânico, nunca mais conseguiu viver com total naturalidade; o tempo todo tem de se esforçar para convencer a si próprio de que estar vivo é natural e devemos tocar nossas vidas de acordo com o que nos constitui.

Tem saído para procurar emprego como de hábito. Na maioria das vezes fica sabendo de oportunidades por meio de amigos e conhecidos. Às vezes consegue uma ou outra entrevista; às vezes essas entrevistas se desdobram em segundas entrevistas ou em testes diversos, os quais ele encara estoicamente, sempre cuidando para transmitir uma impressão melhor do que sua aparência e seu semblante melancólico acusam. Quer impressionar sem cair no ridículo, mas quase nunca consegue. Diz pequenas mentiras e acredita que nunca vai ser desmascarado em razão da inocuidade desse ato. Mais do que mentiras, ele comete omissões. É um sonegador. Se fosse bom nisso, até que sentiria algum orgulho, mas passa muito longe da competência nesse quesito.

Gosta de acordar cedo – talvez pela ausência de obrigatoriedade. Se tivesse de se levantar cedo todos os dias, talvez passasse a não gostar. Gosta de tomar café na rua, e o faria sempre se dispusesse de recursos para tanto. Quando não sai à procura de emprego, vai à biblioteca municipal da cidade vizinha, Lorena. Descobriu o lugar por acaso, numa incursão à cidade, durante a qual deixou alguns currículos na agência de empregos do estado local e, na viagem de ônibus, conheceu uma delegada de polícia de meia-idade que lhe desejou boa-sorte. A biblioteca municipal de Lorena possui um acervo variado que lhe apetece. Além do mais, dispõe de assinaturas de jornais e revistas que ele gosta de ler com alguma periodicidade. Os funcionários o tratam com bonomia; permitem que ele empreste três livros por vez, e nunca o punem – sequer o repreendem – quando devolve os livros fora do prazo. A única ressalva que faz à biblioteca diz respeito à limpeza do local. Os banheiros são imundos. Não dispõem de papel higiênico nem de sabão para a higiene das mãos. A bem da verdade, a culpa pela imundície dos banheiros é dos usuários da biblioteca, que decerto reproduzem no ambiente coletivo o que fazem em casa. Caso essa suposição esteja correta, os azulejos do banheiro dessa gente devem estar sarapintados de bosta humana.

Cães vadios circulam livremente pelo prédio. Duas devotas de são Francisco de Assis - a mulher de cabelos tingidos de ruivo que trabalha no guarda-volumes, e a magrinha de olhos fundos que cuida do acervo restrito ao público – dão liberdade para que os cachorros se sintam à vontade no local, podendo se abrigar debaixo de qualquer mesa ou cadeira sem ser incomodados por ninguém, como se fossem vacas ou macacos sagrados indianos. E ele teme pelo dia em que atolará o pé num amontoado de merda canina ao adentrar o prédio, ao caminhar por entre as estantes de livros disponíveis para empréstimo, ou ao se dirigir ao cantinho debaixo da rampa de acesso à sala de informática para cadeirantes, onde jaz o bebedouro enferrujado.

Desfila suas dúvidas e sua insegurança pelos corredores das estantes. Abre livros empoeirados, lê alguns parágrafos, sente a aspereza do papel velho ao folhear. Agacha-se a fim de apanhar um volume na prateleira mais baixa. Permanece alguns minutos assim, de cócoras, namorando o romance, o volume de memórias, de conto, de poesia... Enrubesce quando se descobre observado: ainda é imaturo demais para ignorar o julgamento alheio. Quando se põe de pé novamente, sente uma dor aguda no joelho esquerdo, doente desde a manhã em que caiu no meio de uma partida de futebol na quadra da escola e nunca mais se levantou. Continua lá, estirado na intermediária, sob os olhares preocupados e zombeteiros dos colegas; sob o sol forte de uma bela manhã de verão.


(Continua.)