terça-feira, 12 de abril de 2011

Elas pareciam muito estranhas, sorriam e conversavam e eram felizes.

Foi no jardim de infância que conheci as primeiras crianças da minha idade. Elas pareciam muito estranhas, sorriam e conversavam e eram felizes. Não gostei delas. Sempre me sentia enjoado e o ar tinha um aspecto estranhamente calmo e puro. Pintávamos com tinta guache. Plantávamos sementes de rabanete no jardim e algumas semanas mais tarde os comíamos com sal. Gostava da senhora que ensinava no jardim de infância, gostava mais dela que dos meus pais. Um problema que eu enfrentava era ir ao banheiro. Estava sempre apertado, mas tinha vergonha de deixar os outros saberem da minha necessidade. Assim, eu segurava. Era realmente terrível conter a vontade. E o ar estava puro, e eu sentia vontade de vomitar, vontade de cagar e de mijar, mas não dizia nada. E quando algumas das outras crianças voltavam do banheiro, eu pensava: vocês estão sujas, vocês fizeram algo lá dentro...

As garotinhas eram bacanas em seus vestidos curtos, com seus cabelos longos e seus belos olhos, mas eu pensava, elas também fazem as coisas lá dentro, mesmo que finjam que não.

O jardim de infância era em grande parte constituído de ar puro...

(Trecho de "Misto-quente", de Charles Bukoski. Tradução de Pedro Gonzaga. L&PM Pocket - 316 páginas.)

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Poema de Ana Cristina Cesar

Nada, esta espuma

Por afrontamento do desejo

insisto na maldade de escrever

mas não sei se a deusa sobe à superfície

ou apenas me castiga com seus uivos.

Da amurada deste barco

Quero tanto os seios da sereia.


Publicado no livro "A teus pés", de 1982.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Reparo

Casa em obras

Cheiro nauseante de cimento

Sem Internet

solicitamos reparo.


Há um elefante branco e pútrido na sala

Solicitamos reparo

Reparo

Para a solidão.

10/02/2011

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Alguns dos melhores filmes que vi em 2010

Sem ordem de preferência:

Ervas Daninhas

À Prova de Morte

Um Homem Sério

Tudo Pode Dar Certo

Ilha do Medo

Vício Frenético

A Estrada

Ponyo – Uma amizade que veio do mar

O Escritor Fantasma

Como treinar o seu dragão

Férias Frustradas de Verão

Toy Story 3

A Rede Social


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A juventude do artista

O problema dele é que não está preparado para fracassar. Quer um A ou um alfa ou cem por cento em todas as tentativas, e um grande Excelente! na margem. Ridículo! Infantil! Ninguém precisa lhe dizer isso: pode ver por si próprio. Mesmo assim. Mesmo assim não pode agir. Não hoje. Talvez amanhã. Talvez amanha tenha vontade, tenha coragem.

Se fosse uma pessoa mais cálida, sem dúvida acharia tudo mais fácil: a vida, o amor, a poesia. Mas não há calor em sua natureza. E não é o calor que leva a escrever poesia. Rimbaud não era cálido. Baudelaire não era cálido. Quente, sim, mas era preciso – quente na vida, quente no amor -, mas não cálido. Ele também é capaz de ser quente, não deixou de acreditar nisso. Mas no momento, no momento indefinido, ele é frio: frio, congelado.

E qual o desfecho dessa falta de calor, dessa falta de coração? O desfecho é que está sentado sozinho na tarde de domingo no quarto de cima de uma casa no fundo do campo de Berkshire, com corvos crocitando no campo e uma névoa cinzenta no céu, jogando xadrez sozinho, ficando velho, esperando a noite cair para, sem nenhuma culpa, fritar suas lingüiças para comer com pão no jantar. Aos dezoito anos, podia ter sido um poeta. Agora não é um poeta, nem um escritor, nem um artista. É um programador de computador, um programador de computador de vinte e quatro anos num mundo em que não existe programadores de computador de trinta anos. Trinta é velho demais para ser programador; a pessoa se volta para alguma outra coisa – algum tipo de empresariado – ou se mata. Só porque é jovem, porque os neurônios em seu cérebro ainda estão disparando mais ou menos infalivelmente, é que tem um pé na indústria de computadores britânica, na sociedade britânica, na Grã-bretanha em si. Ele e Ganapathy são dois lados da mesma moeda: Ganapathy morrendo de fome não porque está separado da Mãe Índia, mas porque não come direito, porque apesar de seu mestrado em ciência da computação não sabe nada sobre vitaminas, minerais e aminoácidos; e se trancou num fim de jogo debilitador, jogando consigo mesmo, a cada lance mais encurralado, mais derrotado. Um dia desses, os homens da ambulância terão de ir ao apartamento de Ganapathy e tirá-lo de lá numa maca com um cobertor em cima da cara. Depois de levar Ganapathy, podiam vir buscá-lo também.


Trecho final do romance Juventude, de J. M. Coetzee.

sábado, 13 de novembro de 2010

Um Deus das pequenas e das grandes causas

São raras as vezes em que penso em Deus. Apesar disso, tenho um fundo religioso, uma ânsia de religião. Queria me convencer de que definitivamente tenho uma definição de Deus, um conceito de Deus. Mas não tenho nada semelhante. São raras as vezes em que penso em Deus, pelo simples fato de que o problema me excede tão demasiada e soberanamente, que chega a me provocar uma espécie de pânico, uma debandada geral de minha lucidez e de minha razão. “Deus é a totalidade/’, diz Avellaneda com freqüência. “Deus é a Essência de tudo”, diz Aníbal, “o que mantém tudo em equilíbrio, em harmonia, Deus é a Grande Coerência. Sou capaz de entender uma e outra definição, mas nem uma nem outra são a minha definição. É provável que eles estejam no caminho certo, mas não é desse Deus que necessito. Necessito de um Deus com quem conversar, um Deus em quem possa buscar amparo, um Deus que responda aos meus questionamentos, que suporte as metralhadas das minhas dúvidas. Se Deus é a Totalidade, a Grande Coerência, se Deus não é mais que a energia que mantém vivo o Universo, se é algo tão incomensuravelmente infinito, que importância posso ter para Ele, um átomo tão precariamente alçado a um insignificante piolho de seu Reino? Não me importa ser um átomo do último piolho de seu Reino, mas me importa que Deus esteja ao meu alcance, me importa poder agarrá-lo, não com minhas mãos, claro, nem sequer com meu raciocínio. Importa agarrá-lo com meu coração.

Trecho do romance A Trégua, do uruguaio Mario Benedetti.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Lendo-endo-endo

Não sei por que (cinismo!), mas quando encontro velhos amigos eles sempre me perguntam o que estou lendo no momento. Ninguém fala do “meu tricolor”, nem pergunta se fui ao show da dupla sertaneja ou do grupo de pagode da atualidade no último domingo, nem se tenho feito exercícios físicos com regularidade, nem se tenho ido à igreja, nem se casei ou tenho procriado por aí. Querem apenas saber o que estou lendo.

Pois bem. Para os que vivem querendo saber que livros jazem à minha cabeceira, aí vai:

Comarc McCarthy e Philip Roth – Dois dos maiores – se não OS MAIORES – romancistas americanos contemporâneos. Do primeiro, estou lendo "Todos os Belos Cavalos”, estória de meninos-rancheiros, haciendas mexicanas, e, claro, cavalos, muitos cavalos. (Aliás, o título, “All The Pretty Horses”, me é caro porque considero o cavalo uma das mais belas e fascinantes criações da natureza. Posso não saber montar e não entender bulhufas de eqüinos, mas não há como ignorar a força e o porte magnífico dessa espécie.) McCarthy é preciso nas descrições, usa poucos adjetivos, “abusa” da conjunção “e” em muitas sentenças, tornando-as mais longas e fluidas, além de ser bastante hábil na construção dos diálogos. O narrador em terceira pessoa atém-se o tempo todo aos fatos, à superfície dos corpos, aos gestos. Os sentimentos e pensamentos das personagens nunca são revelados; estamos distante do campo do “fluxo de consciência” à James Joyce, por exemplo.

Não seria descabido considerar “Todos os Belos Cavalos” um road novel, já que boa parte dos acontecimentos se dá na estrada – com a diferença de que o meio de transporte utilizado é o cavalo, e não o automóvel.

Para leitores citadinos, a trama e a ambientação rural do romance podem até soar enfadonhas, mas é praticamente impossível não admirar a boa e sofisticada prosa de Comarc McCarthy.

***

A Humilhação: Trigésimo livro do profícuo Philip Roth, que costuma lançar um livro por ano. O tema desta novela curta (são aproximadamente 100 páginas) é o talento. Um famoso ator sexagenário enfrenta uma grave crise pessoal e profissional: é abandonado pela mulher, sofre com terríveis dores na coluna, e se vê incapacitado de atuar de repente.

Privado de seu talento, o protagonista mergulha numa depressão profunda, que o leva a se internar numa clínica psiquiátrica. Após um breve período de internação, ele retorna para casa e se fecha para o mundo. Mesmo os apelos do agente e melhor amigo para que volte a trabalhar são inúteis. Ele se convence de que está irremediavelmente arruinado e de que nada de inspirador pode voltar a acontecer consigo. Até o dia em que uma mulher vinte e cinco anos mais jovem do que ele entra sorrateiramente em sua vida.

Roth é um mestre da narrativa longa. Seu texto é conciso e elegante. Sua capacidade de criar personagens complexos e de expor suas aflições de modo claro e original é rara. Poucos escritores atuais possuem uma verve narrativa tão vigorosa quanto a sua. E embora este “A Humilhação” não traga o melhor de seu talento, é sem dúvida um deleite para os apreciadores da boa literatura.