quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Um dos melhores clipes já feitos

Dia desses, passeando pelos canais de tevê, topei com esse videoclipe do Eric Clapton, e me encantei com a qualidade do mesmo. É perfeita a adequação entre os conteúdos de som e imagem. Prova de que o belo quase sempre advém da simplicidade.

Confiram:

O fim do mundo e outras lorotas ou Passando o chapéu

Poema da necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar, Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.

(Carlos Drummond de Andrade in Sentimento do Mundo)

Acrescento: É preciso pagar a conta do telefone.


Where is the fucking money?

É grave a crise, my fellows! Os telejornais noticiam o flagelo da indústria nacional. Queda de 12,4 % na produção - demissões em massa. Os bancos, contudo, nunca lucraram tanto. Spreads altíssimos, brada o presidente Lula, indignado. Mas se deu conta dos lucros absurdos que o setor bancário tem obtido nos últimos anos só agora? Depois os escribas da imprensa o chamam de apedeuta e ele se ressente. Quem manda dar entrevista dizendo que tem ojeriza à leitura dos jornais? Será que só o noticiário político-econômico lhe dá azia, ou a palavra escrita de um modo geral?

Clóvis Rossi (sensato e competente como sempre) escreveu na Folha de S. Paulo que essa crise financeira não é uma quimera nem uma tragédia natural. Ela foi gerada pela irresponsabilidade dos mercadores de crédito internacionais, banqueiros, especuladores, dirigentes de instituições financeiras de vulto como Allan Greeenspan e quejandos. Ou seja: não é um tsunami - muito menos uma marolinha -, mas sim um achaque de proporção global. Desculpe a indelicadeza, leitor, mas o que eu quero dizer é que colocaram no nosso rabo, entendem? E o pior é que esses caras receberam bônus milionários por seus serviços. Suspeita-se ainda que a fonte desse dinheiro seja a “ajuda financeira” concedida pelo governo americano às instituições de crédito. Ahá! Os manos tripudiaram. Fizeram os governantes de bobo. Lá, agora vejo, é como cá.

Mas eu confessava que é preciso pagar a conta do telefone... Mas como? Cá estamos todos desempregados. A mocinha da Telefonica aquiesceu em parcelar nossa dívida em quatro vezes. Agora só precisamos passar o chapéu. Será que Allan Greespan não dava uma forcinha? Alguém aí tem uma ideia? Pensei em colocar um cofrinho aqui no blog. Se cada um dos meus dois ou três leitores colocasse uma moedinha toda vez que acessasse o blog, quanto eu arrecadaria por mês? Talvez desse pra comprar um açaí-na-tigela, se bem que o preço do açaí subiu... Até tu, açaí!?

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Blog é uma merda!

Do blog da escritora Clarah Averbuck:

blog é uma merda. se você não escreve no blog, te mandam emails reclamando do abandono. se está se sentindo mal e escreve no blog, te escrevem reclamando que você reclamou. se você está feliz e escreve no blog, te acusam de só falar de si mesmo. se você cansou de ficar reclamando e ficando feliz publicamente porque causa muito furor e foi trabalhar, dizem que você está negligenciando seus importantíssimos leitores. então você publica um trecho de seu novo livro no blog e ele VIRA UM LIVRO DE BLOG. se você escreveu uma crônica e publicou no blog, ela vira um TEXTO DE BLOG. se você escreve um conto ficcional, ele vira um FATO CUSPIDO E NARRADO EM UM BLOG. depois ainda perguntam por que eu canso. mas aí fico com uma saudadinha de poder publicar a qualquer momento e faço um blog qualquer escondido. leva um tempo até descobrirem e é legal. depois, quando descobrem e começam a achar que o meu email é um SAC, é hora de acabar.

***
Clarah é uma pioneira da blogosfera. Os textos que ela publicou no extinto blog Brazileira Preta serviram de base para seu primeiro livro de ficção, Máquina de Pinball, que por sua vez foi adaptado para o cinema pelo diretor Murilo Salles (Nunca fomos tão felizes, Como nascem os anjos, Seja o que Deus quiser) no ano passado. O resultado pode ser visto em Nome Próprio, filme estrelado pela ótima Leandra Leal - ao qual infelizmente ainda não assisti. (Não ter acesso a produção cultural de qualidade é o que mais me deprime em viver no interior. Eu quero corda pr’eu me enforcar, porra!)

Não dá pra gritar nem fazer birra na internet - graças a Deus! Mas não se morre de tédio? Bem, a meu ver só morre de tédio ou solidão aquele que não tem talento. Se você não acredita em mim, assista a O Escafandro e a Borboleta, o belo filme dirigido por Julian Schnabel. Depois conversamos.

Mas, quase esqueço de concordar com Averbuck, blog é mesmo uma merda. Um conselho de amigo: não cometa o desatino de criar um blog. Porque qualquer chimpanzé pode criar e "alimentar" um blog com todo tipo de bobagem. O difícil é conseguir abandoná-lo depois. Vai por mim.

Bolsa Bichano

Contando ninguém acredita. Mas, no interior do Mato Grosso do Sul, um gato recebeu R$20,00 do Bolsa Família durante sete meses.

A notícia é antiga (foi noticiada pela imprensa no dia 24 de janeiro), mas eu só tomei conhecimento do caso ontem, enquanto lia os jornais da semana passada na Biblioteca Pública de Lorena.

A patuscada envolvendo o gato Billy, que, diga-se de passagem, não teve culpa de nada, é inegavelmente engraçada. Porém não há motivo para risos quando pensamos que existem inúmeros beneficiários ilegítimos de um programa que visa a amparar aqueles que vivem abaixo da linha da pobreza ou se equilibrando nela constantemente.

Mais informações aqui.

Cinema Mudo

Eu e meu pai não temos muita coisa em comum. Tirante o fato de que somos muito parecidos fisicamente, são poucos nossos gostos e opiniões convergentes. No tocante a cinema, por exemplo, meu pai não nutre o menor entusiasmo pelos títulos que me apaixonam. Ele prefere os filmes que são esquecidos logo após serem vistos; eu aprecio aqueles que ficam na memória por um bom tempo, gerando reflexão e reacendendo velhos conflitos internos e quase sempre insolúveis.

Quando assistimos a um filme juntos, não é raro que ele se aborreça de saída com o que chama de blablablá insuportável (leia-se a introdução da trama). "Muito falatório pro meu gosto", dispara, ríspido, virando pro outro lado no sofá. Se ninguém é assassinado ou não ocorre um crime instigante nos primeiros vinte minutos da fita, meu pai desiste dela. Conversação em cinema não é com ele. Meu pai - como eu não canso de enfatizar ironicamente - é um amante do cinema mudo.

Mas ele não é o único. A maioria das pessoas que conheço não tem paciência para assistir a filmes que por assim dizer fazem pensar. O que as cativa são os thrillers de ação espertos, daqueles que geram uma saudável (?) taquicardia do começo ao fim, e os dramas de forte apelo emocional. Sem falar nas comédias adolescentes de alto teor escatológico.

Mas, antes que me xinguem de ranzinza, intelectual xiita, ou de desprovido de senso de humor, quero dizer que também gosto de uma boa comédia, de um bom filme de ação, e, em menor grau, de um drama meloso. O que me difere dessas pessoas que mencionei acima é o fato de essa minha disposição para o passatempo cinematográfico ser a exceção, e não a regra. Pois, quando vou ao cinema ou à videolocadora, simplesmente não consigo deixar meu cérebro em casa.

O último dos irmãos Coen

Ontem fui ao cinema assistir a Queime Depois de Ler, o último trabalho dos irmãos Coen. O filme estreou no Brasil em novembro passado, mas, como a rede de cinema aqui do shopping padece de um anacronismo homérico quando o assunto é data de exibição, nós sempre somos os últimos a ver os títulos mais discutidos e badalados do circuito nacional - isso quando eles são exibidos por aqui, o que quase nunca acontece.

Queime Depois de Ler é uma tragicomédia ao melhor estilo dos Coen. Ou seja, um filme para fãs. Acontece que o cinema daqui mantém uma promoção para atrair público na segunda-feira, dia em o ingresso custa R$5,00 (inteira) e R$2,50 (meia). E como há muita gente de férias agora em janeiro, as salas costumam estar lotadas nas segundas e nas quartas-feiras. A sessão em que assisti ao filme dos Coen não estava lotada; havia umas trinta pessoas na sala; mas pelo menos dois terços delas se decepcionaram com Queime Depois de Ler.

Isso porque certamente nunca ouviram falar nos irmãos Coen e só compraram o ingresso para ver Brad Pitt e George Clooney em cena. Até aí tudo bem. O problema é que neste filme Pitt interpreta um personal trainer idiota que perto do final da história leva um tiro na testa, e Clooney vive um ex-policial cafajeste e não menos aloprado que dá o tiro na testa de Pitt.

Ouvi uma série de comentários desolados de expectadores medianos que não entenderam bulhufas do filme e por isso mesmo não se divertiram como eu me diverti. Os mais comuns foram: "Não tem pé nem cabeça"; "Não tem trilha sonora"; "A história é ridícula"; "Perdi meu tempo"; "Joguei dinheiro fora" etc. Paciência. É óbvio que essa gente que faz fila para assistir à sequência de Se eu fosse você não vai gostar do filme dos Coen. Mas, por outro lado, é ótimo e indispensável que vejam o filme de Daniel Filho. Porque se o exibidor não lucrar com esses títulos populares, nem cogitará de colocar em cartaz filmes alternativos como Queime Depois de Ler, Juno, Sweeney Todd, Brokeback Mountain, Possuídos, Encarnação do Demônio, O Labirinto do Fauno, aos quais assisti no cinema daqui.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Um post sobre nada, cronópio cronópio cronópio

" Perder o nada é um empobrecimento."

e ainda

"Acho mais importante o cu de um mosquito do que uma usina nuclear."

Manoel de Barros

O poeta mato-grossense Manoel de Barros especializou-se, ao longo dos seus mais de noventa anos de existência, em exaltar as formas de vida mais simples e, por isso mesmo, dotadas de grande apelo poético, como as plantas, os passarinhos, e os insetos. Seus livros estão repletos de seres miúdos cuja importância nem sempre é reconhecida por nós, seres "superiores" que transformamos nosso meio-ambiente com a mesma displicência errática com que o devastamos.

O primeiro livro de poemas de Manoel que me caiu nas mãos foi o extraordinário "Livro Sobre Nada (1996)", no qual o poeta reafirma sua admiração pelas pequenas criaturas da natureza. Encontrei o volume por acaso numa biblioteca pública do meu bairro, e à medida que avançava na leitura dos poemas, ia ficando cada vez mais fascinado por tão original expressão narrativa – e digo narrativa porque, mais do que simples elogios às coisas da natureza, os poemas de Manoel de Barros se caracterizam por conter sempre uma observação aguda da beleza e da sapiência dos pequenos atos humanos ou animais.

A seguir, um poema extraído do livro “O Guardador de Águas (1989).”

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada

I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II

Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -no silêncio líquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV

Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V

Escrever nem uma coisa Nem outra
-A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI

No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VIII

Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX

Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

***

A propósito, já que o assunto do post é a beleza das coisas inúteis, reproduzo abaixo um continho do livro “Histórias de Cronópios e de Famas”, de Julio Cortázar, outro eminente poeta do nada.

Costumes dos Famas

Aconteceu que um fama dançava trégua e dançava catala na frente de um armazém cheio de cronópios e esperanças. As mais irritadas eram as esperanças porque elas tratam sempre de que os famas não dancem trégua nem catala e sim espera, que é a dança que os cronópios e as esperanças conhecem.

Os famas se colocam de propósito na frente dos armazéns, e desta vez o fama dançava trégua e catala só para aborrecer as esperanças. Uma das esperanças depositou no chão seu peixe de flauta – pois as esperanças, como o Rei do Mar, estão sempre assistidas por peixes de flauta – e resolveu interpelar o fama, dizendo-lhe assim:

- Fama, não dance trégua nem catala defronte deste armazém.

O fama continuava dançando e ria.

A esperança chamou outras esperanças, e os cronópios fizeram roda para ver o que ia acontecer.

- Fama – disseram as esperanças. – Não dance trégua nem catala na frente deste armazém.

Mas o fama dançava e ria, zombando das esperanças.

Então as esperanças se jogaram em cima do fama e bateram nele. Deixaram-no ao lado de uma estaca, e o fama se queixava, envolvido em seu sangue e em sua tristeza.

Os cronópios chegaram furtivamente, aqueles objetos verdes e úmidos. Cercavam o fama e o lastimavam, dizendo-lhe assim:

- Cronópio, cronópio, cronópio.

E o fama compreendia, e sua solidão era menos amarga.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

O improvável colóquio entre um chimpanzé e uma barata – Parte II


O modo com que me ignorava veementemente fazia daquele pequeno inseto ortóptero da família dos blatídeos (pesquisei no dicionário) um dissimulado de marca maior. Suas anteninhas inquietas agora se movimentavam em várias direções; estava completamente absorvida pela leitura de Nabokov, não por acaso seu escritor predileto, como vim a descobrir mais tarde.

Cansado de ser ignorado, resolvo tentar maneiras mais hostis de aproximação:

- Você vai sair daí ou vou ter de sujar meus livros com a gosma branca das suas tripas?

E eis que ela rompe o silêncio:

- Você poderia sair de frente da luz, por favor? Está fazendo sombra.

Decepção. Esperava uma reação igualmente violenta e recebi um pedido cortês. Quem essa baratinha pensa que é? Querendo atribuir a mim a pecha de chato... Muito astuto da parte dela. Penso em empunhar um chinelo ou uma vassoura, mas desisto assim que ela me dirige a palavra pela segunda vez:

- Ah, nada como uma boa prosa para preencher o vazio dos dias chuvosos!

- Se você me der licença, eu gostaria de continuar organizando os livros. Não tenho nada contra as baratas; acho-as um pouco nojentas, insistentes, urbanas demais pro meu gosto, mas não tenho ojeriza ou fobia à sua classe. Só não gosto quando vocês se intrometem na nossa vida como está acontecendo agora. Portanto, para não reforçar ainda mais o mau juízo que faço da sua espécie, você poderia sair de cima dos meus livros?

- Era só isso? Por que você não disse antes? – e saltou da pilha de livros pousando suavemente no piso frio.

Ergueu-se sobre duas patas e me encarou com um ar circunspeto:

- Acho que nós ainda não fomos apresentados. Moro aqui há pouco tempo e, como a leitura toma quase todo o meu dia, não tive a chance de tomar conhecimento dos vizinhos.

- Entendo. Meu nome é Bruno, tenho 24 anos, e moro nesta casa há pelo menos quinze. E você?

- Eu não tenho nome. Tampouco sei minha idade. E vivo na sua biblioteca há mais ou menos seis semanas.

- E você só fez ler nessas seis semanas! O que tem lido?

- Um pouco de tudo. Agora, como você pode ver, estou relendo Lolita, a obra-prima de Vladimir Nabokov. Sempre volto a esse livro. É parte importante da minha formação como leitor. Também reli Cem Anos de Solidão. Aliás, aqui entre nós, adoro esse romance.

- Então você é uma barata macho?

- E solteiro. Não nasci para o casamento, sabe?

Sua astúcia me cativa. Então me sento de pernas cruzadas no chão frio à sua frente:

- Você nunca sai de dentro do armário?, digo, e só me dou conta da dubiedade da pergunta instantes depois.

- Claro que sim. Mas só à noite, quando todos estão dormindo. Aí saio à cata de restos de comida, migalhas, e outras porcarias que vocês derrubam nos cantos da casa.

- E os noticiários, você tem acompanhado?

- É um hábito do qual não consigo abrir mão. Mas, ao contrário dos humanos, eu tenho mais interesse pelas notícias velhas. Gosto de ser sempre o último a saber - o que não quer dizer que eu saiba menos que você ou outra pessoa qualquer.

- O que acha do caso Cesari Battisti?

- Bem, não tenho uma opinião definitiva a respeito, mas me parece que o governo brasileiro está metendo os pés pelas mãos. Não respeitar a decisão de um país democrático como a Itália é um disparate. Mas, em matéria de disparates, este governo é pródigo.

- Com um time de assessores do naipe de Marco Aurélio Garcia, não é de admirar que a produção de patuscadas seja constante.

- Concordo. Já vivi o bastante para poder afirmar com categoria: jamais vi semelhante asno à frente de um cargo tão importante no governo.

Aquele ortóptero intelectual era realmente um pândego, no melhor estilo Diogo Mainardi. Agradeci aos céus (e aos esgotos) por terem enviado criaturinha tão arguta para estagiar em minha modesta biblioteca.

Não consegui me furtar a lhe pedir mais conselhos e opiniões:

- Quais suas expectativas em relação a Barack Obama?

- Olha, sinceramente, não agüento mais falar desse assunto. Na condição de inseto abjeto, torço para que o mundo fique cada vez mais infecto, e espero que Obama consiga a seguinte proeza: tornar o mundo melhor para os humanos e, ao mesmo tempo, mais deplorável para nós, baratas. Abaixo a higiene!

- Não creio que ele disponha de meios para realizar semelhante façanha. Mas, em todo caso, gosto de pensar que ele se sairá bem.

A baratinha pôs-se a fazer circunvoluções em torno das pilhas de livros, numa clara demonstração de impaciência.

- Uma última coisa: Você é o autor das páginas avulsas que encontrei outro dia no meio dumas revistas velhas? – perguntou.

- Isso. Trata-se de rascunhos de um livro que terminei no ano passado e que enviei para um concurso. Não me orgulho muito dele. É pouco provável que ele seja premiado.

- Convém não alimentar falsas esperanças – disse, debochado. Se isso lhe servir de consolo, já li coisas piores.

De repente minha mãe entrou no quarto portando uma vassoura. Uma funérea coincidência.

- Mãe, você pode me emprestar a vassoura um instante?