- Volta um pouco o disco. Escuta esse pedaço em que ele fala que a Mônica queria ver um filme do Godarte. Quem é esse tal de Godarte? – perguntou-me, enquanto procurava carrapatos em seu Cocker Spaniel, com seus dedos longos e ágeis.
Eu estava deitado no sofá bege de frente para ela, mirando seus pés alvos, delicados, sempre sem vestígios de esmalte.
- É um cineasta francês muito conhecido. Chama-se Jean-Luc Godard. Eu nunca vi nenhum filme dele, mas sei que eles fizeram a cabeça de muita gente.
- E por que a Mônica queria ver um filme do Godard?
- Porque ela era uma intelectual que gostava de filmes de alto valor artístico, com conteúdo, entende?
Cruzei meus braços sob a cabeça, tirei meus sapatos e ajeitei os pés sobre o sofá. De repente ouvi o som agudo do carrapato sendo esmagado pelas unhas de Noêmia, que demonstrava estranho brilho de felicidade nos olhos. Se ao menos ela soubesse que os homens sentimos dor, não me torturaria de tal maneira.
* * *
- Por que você escreve?, perguntou Noêmia, enquanto revirava seu guarda-roupa à procura de uma pasta com antigos papéis de carta.
- Pelo mesmo motivo que desejo você!, senti vontade de dizer.
Para ela tudo necessitava uma explicação lógica e razoável.
- Não sei. Acho que é uma forma de estar no mundo. Ou de fugir desse mundo.
- Antigamente eu costumava escrever cartas pros meninos de quem gostava.
Os ursos de pelúcia e sua boneca quase centenária estavam harmoniosamente dispostos junto à cabeceira da cama. Eu sentia pudor em tocá-los. Pois, ao fazê-lo, seria como se estivesse a palpar os limites eróticos do seu corpo.
- Não encontro os papéis de carta. Talvez a empregada tenha colocado no armário do corredor.
- E o que a gente vai fazer agora?
- Primeiro eu acho melhor você fechar a janela. Tá começando a chover.
Nesse momento fui acometido de um estremecimento. Suas palavras me haviam soado como uma declaração de amor. Esse mesmo amor que eu tantas vezes contestara, e que até repudiara em ocasiões análogas a essa. De repente vi a mim e a Noêmia num futuro próximo, de mãos dadas, indo tomar sorvete num domingo à tarde. Eu diria que a desejava mais que tudo, e que sua companhia anulava totalmente minha necessidade de compreensão das questões mais complexas sobre a vida e a morte. Seu corpo deixaria de ser um enigma a ser decifrado, e seu toque conjugaria amor e sexo.
Depois viria a fome, o riso amarelo, o deboche, a dor do parto. Os beijos não mais proveriam pães quentes. E o cotidiano se interporia entre o sublime e o olvido. A felicidade se mostraria por intermédio das pequenas epifanias familiares. Até que nos olharíamos num fim de tarde e de imediato entenderíamos o porquê de nossa ansiedade juvenil nunca ter desaparecido.
Noêmia deu um assobio estridente.
- Oiiiii! Onde é que você esteve, hein?
- Verborragia...
- O quê? Você sempre me assusta quando solta essas palavras estranhas.
Eu sorri. Ato contínuo sentei-me a seu lado na cama.
- Desculpa. Eu prometo não voar pra tão longe quando estiver com você.
- Tá bom. Eu acredito. Você tá com fome?
- Um pouco.
- Acho que sobrou estrogonofe do almoço.
(Trecho extraído de um conto meu intitulado O Prosador, que há quatro anos jaz na gaveta da minha escrivaninha).
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