domingo, 1 de fevereiro de 2009

O improvável colóquio entre um chimpanzé e uma barata – Parte II


O modo com que me ignorava veementemente fazia daquele pequeno inseto ortóptero da família dos blatídeos (pesquisei no dicionário) um dissimulado de marca maior. Suas anteninhas inquietas agora se movimentavam em várias direções; estava completamente absorvida pela leitura de Nabokov, não por acaso seu escritor predileto, como vim a descobrir mais tarde.

Cansado de ser ignorado, resolvo tentar maneiras mais hostis de aproximação:

- Você vai sair daí ou vou ter de sujar meus livros com a gosma branca das suas tripas?

E eis que ela rompe o silêncio:

- Você poderia sair de frente da luz, por favor? Está fazendo sombra.

Decepção. Esperava uma reação igualmente violenta e recebi um pedido cortês. Quem essa baratinha pensa que é? Querendo atribuir a mim a pecha de chato... Muito astuto da parte dela. Penso em empunhar um chinelo ou uma vassoura, mas desisto assim que ela me dirige a palavra pela segunda vez:

- Ah, nada como uma boa prosa para preencher o vazio dos dias chuvosos!

- Se você me der licença, eu gostaria de continuar organizando os livros. Não tenho nada contra as baratas; acho-as um pouco nojentas, insistentes, urbanas demais pro meu gosto, mas não tenho ojeriza ou fobia à sua classe. Só não gosto quando vocês se intrometem na nossa vida como está acontecendo agora. Portanto, para não reforçar ainda mais o mau juízo que faço da sua espécie, você poderia sair de cima dos meus livros?

- Era só isso? Por que você não disse antes? – e saltou da pilha de livros pousando suavemente no piso frio.

Ergueu-se sobre duas patas e me encarou com um ar circunspeto:

- Acho que nós ainda não fomos apresentados. Moro aqui há pouco tempo e, como a leitura toma quase todo o meu dia, não tive a chance de tomar conhecimento dos vizinhos.

- Entendo. Meu nome é Bruno, tenho 24 anos, e moro nesta casa há pelo menos quinze. E você?

- Eu não tenho nome. Tampouco sei minha idade. E vivo na sua biblioteca há mais ou menos seis semanas.

- E você só fez ler nessas seis semanas! O que tem lido?

- Um pouco de tudo. Agora, como você pode ver, estou relendo Lolita, a obra-prima de Vladimir Nabokov. Sempre volto a esse livro. É parte importante da minha formação como leitor. Também reli Cem Anos de Solidão. Aliás, aqui entre nós, adoro esse romance.

- Então você é uma barata macho?

- E solteiro. Não nasci para o casamento, sabe?

Sua astúcia me cativa. Então me sento de pernas cruzadas no chão frio à sua frente:

- Você nunca sai de dentro do armário?, digo, e só me dou conta da dubiedade da pergunta instantes depois.

- Claro que sim. Mas só à noite, quando todos estão dormindo. Aí saio à cata de restos de comida, migalhas, e outras porcarias que vocês derrubam nos cantos da casa.

- E os noticiários, você tem acompanhado?

- É um hábito do qual não consigo abrir mão. Mas, ao contrário dos humanos, eu tenho mais interesse pelas notícias velhas. Gosto de ser sempre o último a saber - o que não quer dizer que eu saiba menos que você ou outra pessoa qualquer.

- O que acha do caso Cesari Battisti?

- Bem, não tenho uma opinião definitiva a respeito, mas me parece que o governo brasileiro está metendo os pés pelas mãos. Não respeitar a decisão de um país democrático como a Itália é um disparate. Mas, em matéria de disparates, este governo é pródigo.

- Com um time de assessores do naipe de Marco Aurélio Garcia, não é de admirar que a produção de patuscadas seja constante.

- Concordo. Já vivi o bastante para poder afirmar com categoria: jamais vi semelhante asno à frente de um cargo tão importante no governo.

Aquele ortóptero intelectual era realmente um pândego, no melhor estilo Diogo Mainardi. Agradeci aos céus (e aos esgotos) por terem enviado criaturinha tão arguta para estagiar em minha modesta biblioteca.

Não consegui me furtar a lhe pedir mais conselhos e opiniões:

- Quais suas expectativas em relação a Barack Obama?

- Olha, sinceramente, não agüento mais falar desse assunto. Na condição de inseto abjeto, torço para que o mundo fique cada vez mais infecto, e espero que Obama consiga a seguinte proeza: tornar o mundo melhor para os humanos e, ao mesmo tempo, mais deplorável para nós, baratas. Abaixo a higiene!

- Não creio que ele disponha de meios para realizar semelhante façanha. Mas, em todo caso, gosto de pensar que ele se sairá bem.

A baratinha pôs-se a fazer circunvoluções em torno das pilhas de livros, numa clara demonstração de impaciência.

- Uma última coisa: Você é o autor das páginas avulsas que encontrei outro dia no meio dumas revistas velhas? – perguntou.

- Isso. Trata-se de rascunhos de um livro que terminei no ano passado e que enviei para um concurso. Não me orgulho muito dele. É pouco provável que ele seja premiado.

- Convém não alimentar falsas esperanças – disse, debochado. Se isso lhe servir de consolo, já li coisas piores.

De repente minha mãe entrou no quarto portando uma vassoura. Uma funérea coincidência.

- Mãe, você pode me emprestar a vassoura um instante?

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