segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Um post sobre nada, cronópio cronópio cronópio

" Perder o nada é um empobrecimento."

e ainda

"Acho mais importante o cu de um mosquito do que uma usina nuclear."

Manoel de Barros

O poeta mato-grossense Manoel de Barros especializou-se, ao longo dos seus mais de noventa anos de existência, em exaltar as formas de vida mais simples e, por isso mesmo, dotadas de grande apelo poético, como as plantas, os passarinhos, e os insetos. Seus livros estão repletos de seres miúdos cuja importância nem sempre é reconhecida por nós, seres "superiores" que transformamos nosso meio-ambiente com a mesma displicência errática com que o devastamos.

O primeiro livro de poemas de Manoel que me caiu nas mãos foi o extraordinário "Livro Sobre Nada (1996)", no qual o poeta reafirma sua admiração pelas pequenas criaturas da natureza. Encontrei o volume por acaso numa biblioteca pública do meu bairro, e à medida que avançava na leitura dos poemas, ia ficando cada vez mais fascinado por tão original expressão narrativa – e digo narrativa porque, mais do que simples elogios às coisas da natureza, os poemas de Manoel de Barros se caracterizam por conter sempre uma observação aguda da beleza e da sapiência dos pequenos atos humanos ou animais.

A seguir, um poema extraído do livro “O Guardador de Águas (1989).”

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada

I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II

Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -no silêncio líquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV

Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V

Escrever nem uma coisa Nem outra
-A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI

No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VIII

Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX

Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

***

A propósito, já que o assunto do post é a beleza das coisas inúteis, reproduzo abaixo um continho do livro “Histórias de Cronópios e de Famas”, de Julio Cortázar, outro eminente poeta do nada.

Costumes dos Famas

Aconteceu que um fama dançava trégua e dançava catala na frente de um armazém cheio de cronópios e esperanças. As mais irritadas eram as esperanças porque elas tratam sempre de que os famas não dancem trégua nem catala e sim espera, que é a dança que os cronópios e as esperanças conhecem.

Os famas se colocam de propósito na frente dos armazéns, e desta vez o fama dançava trégua e catala só para aborrecer as esperanças. Uma das esperanças depositou no chão seu peixe de flauta – pois as esperanças, como o Rei do Mar, estão sempre assistidas por peixes de flauta – e resolveu interpelar o fama, dizendo-lhe assim:

- Fama, não dance trégua nem catala defronte deste armazém.

O fama continuava dançando e ria.

A esperança chamou outras esperanças, e os cronópios fizeram roda para ver o que ia acontecer.

- Fama – disseram as esperanças. – Não dance trégua nem catala na frente deste armazém.

Mas o fama dançava e ria, zombando das esperanças.

Então as esperanças se jogaram em cima do fama e bateram nele. Deixaram-no ao lado de uma estaca, e o fama se queixava, envolvido em seu sangue e em sua tristeza.

Os cronópios chegaram furtivamente, aqueles objetos verdes e úmidos. Cercavam o fama e o lastimavam, dizendo-lhe assim:

- Cronópio, cronópio, cronópio.

E o fama compreendia, e sua solidão era menos amarga.

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