"Certa vez - e que linda vez que isso foi! - vinha uma vaquinha pela estrada abaixo, fazendo muu! E essa vaquinha, que vinha pela estrada abaixo fazendo muu!, encontrou um amor de menino chamado Pequerrucho Fuça-Fuça..."
Essa história contava-lhe o pai, com aquela cara cabeluda, a olhá-lo por entre os óculos.
Ele era o Pequerrucho Fuça-Fuça que tinha encontrado a vaquinha que fazia muu!
descendo a estrada onde morava Betty Byrne, a menina que vendia confeitos de limão.
James Joyce / Retrato do Artista Quando Jovem
Dos dois aos seis anos de idade fui um peixinho preto de olhos esbugalhados, e vistosas barbatanas, no aquário de tio Luis. Eu era o encarregado de limpar a sujeira que aderia ao vidro daquela caixa retangular de sessenta centímetros de comprimento por trinta de altura. Há uma espécie de peixe ornamental indicado para auxiliar na manutenção de aquários por se alimentar de restos de algas e do limo que se acumula no vidro. Bem, eu era um desses. Foram quatro dos melhores anos de minha vida. Fiz boas amizades e entabulei um romance com uma fêmea de Helostoma temminkii, popularmente conhecido como peixe beijador, que acabou me trocando por um peixe-gato de irreprochável má fama. Que fazer se elas preferem os cafajestes?
Mas tive de abandonar o exílio no aquário a fim de ingressar na vida escolar.
Minha mãe levou-me pela mão até a singela escolinha do bairro, onde todos os meus amigos mais velhos (a maioria dos meus amigos era de mais idade) já estudavam. Eu pulava de alegria por saber-me possuidor de um imponente arsenal de material escolar. Fugaz alegria. O estojo de lápis importado, que de tão grande mal cabia na carteira da menina de trancinhas e olhinhos puxados, tratou logo de sobrepujar qualquer vestígio de gáudio. Pus o rabo entre as pernas e me concentrei em apreender a cantiga que tia Ruth, a descendente de alemães de 1,90 m, olhos cinza escuros e membros de fazer inveja a qualquer halterofilista, tentava ensinar ao bando de filhotes que ainda não se tinham restabelecido por completo do berreiro que haviam armado.
Aprendi o bê-á-bá, fiz outras amizades, e comi muito sagu. Mais tarde debutei no catecismo. A santíssima trindade nos foi empurrada goela abaixo. Salve rainha; ensaio da confissão; Marcelino, Pão e Vinho. O padre José nos maldisse pela nossa inépcia religiosa. Rodrigo mandou-o tomar no meio do c... e foi excomungado. Anos depois obteve o perdão de João Paulo II e retornou ao seio da Santa Igreja. A caminho da escola passávamos pelo sobrado em que morava a loira peituda que gostava de se exibir pra nós em trajes mínimos – só uma vez a epifania de vê-la nua em pêlo, e põe pêlo nisso! Eu tinha um caderno de caligrafia. Um vira-lata neurastênico. Um pai acoólatra. Uma angústia da dimensão de Júpiter que me assaltava aos domingos. E um tesão precoce pelo cabaço que iria perder aos quinze, com uma das mucamas que trabalhavam na Casa Grande.
Em pouco mais de dois anos fui remanejado para uma escola cuja construção datava da primeira metade do século XX. Um casarão com escadas, portas e janelas enormes - projetado para abrigar a juventude bem-comportada do período entre a primeira e a segunda grandes guerras.
De que eu me recordo dessa colônia penal? Que me meti numa briga com um moleque mais forte do que eu e fui obrigado a fingir um desmaio na quadra de esportes. Que ia pra escola de ônibus e fiz amizade com um cobrador. Fui ludibriado por uma garota que pintava os cabelos de vermelho e gostava de rock-and-roll. E que a partir da sexta série me tornei uma negação em matemática. Ah, também não posso deixar de registrar que passei muita vergonha e fiz papel de palhaço numa excursão escolar ao Playcenter. Que me tornei um ansioso crônico. E que me meti a dramaturgo, pintor, e contista – tendo fracassado em todas essas frentes.
Mas não me arrependo de nada. (Quer dizer, só de ter dado um chute na bunda do Frederico, que não o merecia). E, se preciso – e possível - fosse, encararia o ensino básico outra vez, com um pouco mais de bagagem, o que seria ótimo.
Pois bem. Hoje, meu irmão, Pequerrucho Fuça-Fuça, de quatro anos, foi à escola pela primeira vez. Desde que soube que ia entrar para a escolinha, ele se mostrou bastante seguro e entusiasmado. Só que, como dizem lá em Portugal, na prática a teoria é diferente. E pequerrucho acabou sucumbindo à vontade de chorar, quando minha mãe o deixou na sala de aula, em companhia de outros vinte e poucos pimpolhos.
De volta a casa, Pequerrucho Fuça-Fuça me contou como fora seu primeiro dia de aula:
- Eu fui na escola e não chorei, Bu. A professora não deixou a gente desenhar, mas deixou jogar bola.
- Que bom, Pequerrucho! O Bu já sabia que você ia tirar de letra. E amanhã, você vai de novo?
- Ah, eu tava pensando em faltar amanhã.
Tentei fazê-lo reconsiderar a idéia, mas ele ainda está reticente.
Que a vida escolar de Pequerrucho Fuça-Fuça, que nunca foi um peixinho de aquário, seja mais próspera que a minha.
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