Tudo que não sei devo às minhas leituras. Como todo mundo. Em qualquer lugar do mundo.
IvanLessa
Eram duas e pouco da tarde. Sentado a uma mesinha quadrada de arestas arredondadas, e com quatro cadeiras desconfortáveis, duas de cada lado da mesa, eu lia os jornais do final de semana na Biblioteca Municipal de Lorena, cidade vizinha à minha. Um pouco sonolento, um pouco faminto, meio desiludido da vida. Desde que meu pai parara de assinar o maior jornal do país, por motivos que não cabe explicitar aqui, eu vivia nessa lengalenga de me deslocar até uma biblioteca pública ao menos uma vez por semana para me manter informado. Acompanhar o noticiário pela tevê não me satisfaz; palavras impressas são, a meu ver, mais dignas de confiança. Ademais, de um modo geral os jornais impressos expõem os fatos com maior riqueza de detalhes – e há sempre os editoriais, as charges, os quadrinhos, entre outros atrativos.
Numa mesinha paralela à minha, três pré-adolescentes cochichavam entre si enquanto faziam o dever de casa. A mais falante delas, uma pretinha jeitosa e lampeira, falava às outras duas a meu respeito. Apurei os ouvidos para tentar entender o que dizia, mas só consegui compreender uma frase, que veio acompanhada de uma gargalhada geral e estridente: Deixa ele em paz. Vai ver ele é feliz assim.
Fiquei pensando no que tinha ouvido, e não consegui mais me concentrar na leitura do jornal. O que ela queria dizer com vai ver ele é feliz assim? Posso estar enganado, mas acho que ela se referia ao fato de eu estar sentado ali, lendo, há mais de uma hora. Para ela, aquilo era incompreensível. Não conseguia imaginar como alguém podia sentir prazer ou satisfação com a leitura de jornais e livros (havia três volumes sobre a mesa). Ler sempre lhe fora uma obrigação à qual encarava resignadamente; a palavra impressa só lhe legara aflição, sofrimento. E de quem era a culpa? Decerto que não era minha. Dos pais? Dos professores? Do nosso presidente: um homem sabidamente avesso à leitura? Não importava. Não era a primeira vez que minha condição de leitor gerava risos e desconfiança em alguém.
O leitor é um palhaço. Ele não inspira respeito como os desportistas. Há basicamente dois tipos de reações geradas por alguém que se declara afeito à leitura: uma solene e exagerada respeitabilidade, e a galhofa. Eu já provei de ambas. Tenho de confessar que a primeira é a que me diverte mais, embora às vezes cause um certo desconforto. Quando alguém “descobre” que sou um leitor inveterado, tenta se aproximar referindo o último livro que leu, o avô ou o bisavô que era um grande leitor, os títulos lidos a contragosto para o vestibular. Enfim, ninguém quer falar de futebol com o leitor. Quando muito, de cinema. Acham que o leitor ou é gay ou é broxa, porque não falam de mulher com ele. Espantam-se ao ver o leitor ingerir bebida alcoólica, ou comer carne vermelha. Se o leitor está meio infeliz num dado dia e não interage amiúde, correm a buscar-lhe um livro, revista, manual de instrução que seja, a fim de animá-lo. O leitor não tem sossego.
Muitos tratam o leitor como um sacerdote. Admiram sua vocação, mas agradecem a Deus por não serem investidos dela. O homem que lê vale mais. Quem foi o imbecil que disse isso? Por certo que pretendia zombar da cara dos leitores, além de complicar-lhes a vida. Uma postura arrogante adotada por um certo grupo de intelectuais ao longo do tempo acabou por contribuir para que os letrados passassem a ser vistos como uns onanistas esnobes, tão alienantes quanto alienados. Sinceramente, não ligo que zombem de mim; isso me diverte. Incomodam-me mais os que me tratam com ar cerimonioso só porque gosto de letrinhas que, juntas, formam sílabas, que por sua vez formam palavras, que formam frases, que compõem parágrafos etc. etc. O que há de especial nisso, minha gente? Vamos comer, vamos beber, trepar, rezar, festejar, chorar... Deixem os livros abertos. Deixem as portas, janelas e balcões abertos também, como naquele poema de Garcia Lorca*. É possível ler sem fechar os olhos para o mundo, sim. Uma obra é uma extensão de um destino humano e vice-versa. Ambos não são inconciliáveis.
Por que perco meu tempo com isso? Não sei.
Vai
ver
sou
feliz
assim.
Numa mesinha paralela à minha, três pré-adolescentes cochichavam entre si enquanto faziam o dever de casa. A mais falante delas, uma pretinha jeitosa e lampeira, falava às outras duas a meu respeito. Apurei os ouvidos para tentar entender o que dizia, mas só consegui compreender uma frase, que veio acompanhada de uma gargalhada geral e estridente: Deixa ele em paz. Vai ver ele é feliz assim.
Fiquei pensando no que tinha ouvido, e não consegui mais me concentrar na leitura do jornal. O que ela queria dizer com vai ver ele é feliz assim? Posso estar enganado, mas acho que ela se referia ao fato de eu estar sentado ali, lendo, há mais de uma hora. Para ela, aquilo era incompreensível. Não conseguia imaginar como alguém podia sentir prazer ou satisfação com a leitura de jornais e livros (havia três volumes sobre a mesa). Ler sempre lhe fora uma obrigação à qual encarava resignadamente; a palavra impressa só lhe legara aflição, sofrimento. E de quem era a culpa? Decerto que não era minha. Dos pais? Dos professores? Do nosso presidente: um homem sabidamente avesso à leitura? Não importava. Não era a primeira vez que minha condição de leitor gerava risos e desconfiança em alguém.
O leitor é um palhaço. Ele não inspira respeito como os desportistas. Há basicamente dois tipos de reações geradas por alguém que se declara afeito à leitura: uma solene e exagerada respeitabilidade, e a galhofa. Eu já provei de ambas. Tenho de confessar que a primeira é a que me diverte mais, embora às vezes cause um certo desconforto. Quando alguém “descobre” que sou um leitor inveterado, tenta se aproximar referindo o último livro que leu, o avô ou o bisavô que era um grande leitor, os títulos lidos a contragosto para o vestibular. Enfim, ninguém quer falar de futebol com o leitor. Quando muito, de cinema. Acham que o leitor ou é gay ou é broxa, porque não falam de mulher com ele. Espantam-se ao ver o leitor ingerir bebida alcoólica, ou comer carne vermelha. Se o leitor está meio infeliz num dado dia e não interage amiúde, correm a buscar-lhe um livro, revista, manual de instrução que seja, a fim de animá-lo. O leitor não tem sossego.
Muitos tratam o leitor como um sacerdote. Admiram sua vocação, mas agradecem a Deus por não serem investidos dela. O homem que lê vale mais. Quem foi o imbecil que disse isso? Por certo que pretendia zombar da cara dos leitores, além de complicar-lhes a vida. Uma postura arrogante adotada por um certo grupo de intelectuais ao longo do tempo acabou por contribuir para que os letrados passassem a ser vistos como uns onanistas esnobes, tão alienantes quanto alienados. Sinceramente, não ligo que zombem de mim; isso me diverte. Incomodam-me mais os que me tratam com ar cerimonioso só porque gosto de letrinhas que, juntas, formam sílabas, que por sua vez formam palavras, que formam frases, que compõem parágrafos etc. etc. O que há de especial nisso, minha gente? Vamos comer, vamos beber, trepar, rezar, festejar, chorar... Deixem os livros abertos. Deixem as portas, janelas e balcões abertos também, como naquele poema de Garcia Lorca*. É possível ler sem fechar os olhos para o mundo, sim. Uma obra é uma extensão de um destino humano e vice-versa. Ambos não são inconciliáveis.
Por que perco meu tempo com isso? Não sei.
Vai
ver
sou
feliz
assim.
***
Despedida*
Se eu morrer,
deixai o balcão aberto.
O menino chupa laranjas.
(Do meu balcão eu o vejo.)
O segador sega o trigo.
(Do meu balcão eu o sinto.)
Se eu morrer,
deixai o balcão aberto!
"Aquele que não lê, mal fala, mal ouve e mal vê" e tem mais, para suas vizinhas de mesas na biblioteca: "Tanto na escola como na vida ou você acompanha o que está acontecendo ou é passado para trás"."A curiosidade e o interesse, abrem as portas da aprendizagem e da inteligência". Meu caro Bruno, muito bom seu texto, notícias "impressas são mais dignas de confiança", é verdade, o jornal,a revista tem mais consistência, apesar de no meu caso ter diminuido bastante o impresso, lendo mais pela internet, apesar de sentir muita falta e saudade do papel. Acho que até para uma simples conversa numa mesa de bar, é preciso está bem informado, para que se tenha uma troca de informação prazerosa e um papo proveitoso, jamais vazio e sem conteúdo, onde se bebe muito e se fala muita bobagem, não que seja contra a jogar conversa fora, pois quando a pessoa é inteligente termina-se aprendendo algo de novo. Isto me faz lembrar o belo filme que revi ontem: "Zorba o Grego"(1964), em que um escritor faz amizade com uma pessoa rude, mas vivida, prática, inteligente, alegre, amante da vida e da música. Personagem vivido magistralmente por Anthony Quinn (1915-2001). Um abraço, Armando
ResponderExcluirCaro Armando,
ResponderExcluiragradeço as palavras e a dica de cinema, pois confesso que ainda não vi "Zorba, o Grego",uma falta grave para quem se apresenta como cinéfilo.
Um abraço. E volte sempre.