quinta-feira, 5 de março de 2009

Diário de um chimpanzé (V)

Andando pelo calçadão do Mercado Municipal, ele chuta o restolho de hortaliças e desvia dos cães vadios e dos pedintes que atravancam o caminho. Sente uma leve dor no flanco esquerdo, um aviso de que em breve uma hérnia eclodirá bem ali, à altura do rim, como a do pai eclodiu. O joelho esquerdo também está dolorido, mas ele sabe que isso nada tem que ver com previsões meteorológicas de qualquer espécie. Costume de velhos. Caminha até a banca de jornal e espia as manchetes. Desemprego. Futebol. Crise econômica. Carnaval. Violência. Corrupção. Mais carnaval e futebol. Pousa inopinadamente o olhar sobre a fileira de revistas pornográficas: a moda agora são as mulheres-fruta. Mulher com mulher já virou clichê, mas homem com homem - pelo menos em banca de jornal – é um fenômeno recente. E ninguém parece se importar. Acha bom que seja assim. Todo cidadão tem direito a escolher a sacanagem que melhor lhe aprouver. Um carro-de-som passa gritando ofertas de cama, mesa e banho no seu ouvido. Outro carro anuncia a chegada de um circo de nome esquisito na cidade. Ele ainda vai descobrir o que tanto esses circos de nome estrangeiro vêm fazer na sua cidade, um desconhecido fim de mundo. Ganhar dinheiro? Mas como, se mais ninguém parece se interessar por espetáculos circenses hoje em dia?

Carrega um buraco negro no peito. Está muito suscetível a enfermidades. Resolve entrar no Mercadão. Vai até uma peixaria e pergunta o preço do quilo de cação. Gosta de sentir o cheiro das mercadorias. Gosta de ver essa gente que se dedica a um ofício tão antigo e essencial. Quando está imerso em uma crise existencial profunda, dirigi-se ao Mercado Municipal em busca de conforto. Ali sente-se humano, substantivo, telúrico. Chega-se até a barraquinha onde um octogenário de cabelos acinzentados e unhas grossas e sujas vende livros, revistas e jornais velhos. Uma vez comprou ali um livro por cinco reais e o vendeu por oitenta, na internet. Desnecessário dizer que se arrependeu.

Sai do mercado quando sente um inexpugnável desejo de deitar-se naquele chão centenário e chorar que nem criança.

Um funcionário lava o saguão da biblioteca. Ambos trocam um olhar impessoal, quase hostil. Já “brigaram” pela posse do jornal várias vezes. Quando um dia o tênue fio da civilização se romper, sairão no braço. O tênue fio da civilização! Ensaio sobre a cegueira, filme de Fernando Meireles baseado no romance homônimo de José Saramago, versa basicamente sobre isso. Uma epidemia de cegueira assola a humanidade, que pouco a pouco transgride as leis de convivência mais básicas. A barbárie recrudesce. E só não triunfa completamente porque Juliane Moore guia-nos até a luz.

Tivera rusgas com outros leitores por causa de jornal e espaço para ler. Apesar de sempre procurar ser educado e justo, conseguiu ganhar a antipatia de alguns “velhos loucos.” Havia um que portava um cajado e um saco de estopa, e sempre chegava ao local fazendo estardalhaço. Seus olhos eram azuis e aguados, e apenas dois dentes amarelados figuravam solitários em sua boca murcha. Sentava-se a uma mesa de modo a atrair a atenção toda para si, e sacava do saco de estopa uma lupa com a qual lia o noticiário político dos dois jornais assinados pela biblioteca. Era um entusiasta de Barack Obama. De cada dez palavras que dizia, podia-se compreender uma.

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