O tratamento lastreado em antidepressivos não podia ser interrompido subitamente. Caso isso ocorresse, haveria efeitos colaterais decorrentes da abrupta suspensão do uso do medicamento. Tontura, sudorese, dor de cabeça, desconforto gastrintestinal, terrores noturnos. Essas eram algumas conseqüências da interrupção repentina do tratamento. O organismo, habituado à ação da substância sobre o corpo, reagia à falta dela com uma espécie de tempestade. E isso, como bem enfatizou o dr. Augustus, não queria dizer que a paroxetina gerava dependência, e sim que o abandono do tratamento tinha de ser gradual. Os mal-estares cessariam dentro de poucos dias.
Provei dessas reações todas as vezes que ensaiei abandonar o tratamento. Após três dias sem tomar os comprimidos, começava a me sentir estranho. Meu corpo ficava à mercê de sensações adversas - qual zonzeiras, formigamentos, pulsação dentro da cabeça, cólicas gastrointestinais. Resumindo: eu me sentia podre. Esse era o preço que eu pagava por minha rebeldia suicida. Estava cansado daquelas consultas inúteis com o dr. Augustus. Nossos encontros tornavam-se cada vez mais banais. Comentávamos os assuntos do noticiário nacional, falávamos do tempo, do meu desempenho na faculdade, das malditas sessões de psicoterapia – pelas quais eu ainda não podia pagar. E eu nunca dizia o que realmente precisava dizer. Que o meu coração dava coices dentro do peito, os quais me lançavam violentamente para frente e me causavam uma sensação de dormência que surgia no estômago e morria na boca. Era o que eu queria dizer. Mas não tinha coragem de usar palavras tão chulas como coice e tranco diante do doutor, dentro daquela sala limpa e refrigerada.
Nós nos suportávamos. Eu precisava das receitas para comprar o medicamento. As atendentes da farmácia de manipulação continuavam a me tratar com bonomia. Às vezes eu chegava zonzo, cambaleante, sem fôlego à farmácia, e elas edulcoravam tudo com um sorriso amistoso. Meu corpo despencava sobre a cadeira. É pelo convênio, por favor. O suor escorrendo aos borbotões. Tiro um sorriso do fundo da minha alma para a morena que me atende. Mais alguma coisa, senhor?Assino o formulário que ela me entrega. Suas unhas estão pintadas de branco. Quer casar comigo?
terça-feira, 31 de março de 2009
Paroxetina - Trecho (IV)
Encerrando, ao menos por ora, a publicação de fragmentos do romance Paroxetina neste burgo, segue um breve relato das conseqüências da brusca interrupção do tratamento com antidepressivos na vida do personagem-narrador, Marcel dos Santos Reis:
***
segunda-feira, 30 de março de 2009
Paroxetina - Trecho (III)
Há no livro várias descrições de crises de pânico vividas pelo protagonista, Marcel. A que escolhi para postar aqui está no final do romance, e, se não é a de que mais gosto, é uma de que me recordo bem do momento em que foi gestada, por assim dizer. Ter lembrado de quando essa passagem foi escrita me fez querer compartilhá-la com vocês.
Vocês estão aí, não estão? Seja como for, lá vai:
De repente, é como se eu me encontrasse num campo minado; todos os caminhos tornam-se inseguros. Para onde quer que eu olhe, vejo objetos que se distanciam, enquanto de mim se apodera uma espécie de desespero. Então o ar começa a se rarefazer e, em conseqüência disso, minhas pernas já não me obedecem mais. Meu coração se acelera, põe-se a galope; dá início a um processo de agonia imediato; nesse instante sei que vou morrer. Mas, mesmo meu corpo estando tomado por uma desordem vertiginosa, luto para não sucumbir - sei que apesar de todo sofrimento e de toda força antagônica, preciso me manter de pé, raciocinando, sentindo o sol queimar a minha pele, a terra sob os meus pés, o vento, o vento... A poesia então é intrusa, mas também é alento. De que me servem agora os choros contidos? A visão do paraíso continua lá, em algum lugar, intacta, embora não inalterada. Fico feliz porque uma formiga se intromete num dos meus sapatos. Arfo, e permaneço parado. Pessoas andam de um lado a outro – meus estranhos, meus iguais. O motor dos automóveis fere-me a auto-estima, a fumaça dos automóveis... Faltam poucos metros pr’eu chegar ao prédio da faculdade, não posso desistir agora. Retomo o controle da minha respiração e começo a caminhar lentamente. O horror vai dando lugar a uma sensação de alívio. Atravesso a rua...
***
À guisa de acompanhamento, John Coltrane. Saravá!
sábado, 28 de março de 2009
Paroxetina - Trecho (II)
Enquanto toda a mídia se refestela com o lançamento do novo romance de Chico Buarque, eu publico mais um trecho do meu desconhecido Paroxetina. A disputa é desigual, mas pode ser que, por um milagre ou por uma (improvável) comoção popular, meu livrinho suscite o interesse de alguma casa editorial, ganhe as livrarias do país em breve e se torne campeão de vendas – deixando Chico, o grande compositor e escritor de talento, chorando o leite derramado. Ha! (Sonhar não custa nada).
***
Segue um trecho da primeira parte do livro, A vida em edição comentada:
Trovejava. Vó Odila me orientava a não tomar banho imediatamente após as refeições. Uma vez ela e tia Verônica quase puseram a porta do banheiro abaixo para me impedir de cometer suicídio. Assim cresci amedrontado. Os pesadelos em que eu era esmagado por forças invisíveis persistiam. Somou-se a isso o horror a um filme sobre a vida de um rapaz que tinha o rosto deformado por uma deficiência congênita. Toda vez que esse filme passava na tevê eu ia pra bem longe do aparelho. Não sei exatamente por que eu temia tanto assim o filme. E anos mais tarde, quando o pânico começaria a me atormentar a existência, eu também teria imensa dificuldade em me encarar no espelho. Era como se visse refletida a mesma deformidade do rapazinho do filme. Um aleijão que se formara à minha revelia. Uma porcaria. Um nojo.
A televisão tinha uma grande parcela de culpa nisso tudo. Os programas vespertinos mostravam criaturas bizarras, mutantes, solitárias. Tinha de tudo: falcatrua, beatitude, adultério, perfídia sexual. Certa vez entrevistaram um menino-peixe que vivia num aquário. Assisti à entrevista consternado por um misto de incredulidade e comiseração. Eu não podia assimilar certas coisas, e não havia como ignorá-las. Isso me privou de muitas noites de sono: o eterno remoer de indignações. Teria sido mais fácil aprender a dançar, tocar piano ou guitarra, confeccionar balões, fabricar gaiolas – vô Aranha ministrava oficinas. Mas nessa noite pedi à vó Odila que me deixasse dormir a seu lado, encolhido entre ela e meu avô na cama de casal. Tudo menos a culpa. Os pais – e os avós, por conseguinte – preferiam pecar por excesso. Cediam. Às vezes apelavam a seu Cristóvão, que mal conseguia ler e entoar seus cantos litúrgicos de tão velho. Ele me confundia com outras crianças. Chamava-me de Pedrinho, Robinson Crusoe, Peter Pan... Dizia que eu seria muito feliz, e que daria muita felicidade à família. Eu acreditava e comia os bolinhos de arroz e a paçoca que dona Mariúcha preparava - tudo bento. Enquanto isso, Amanda, minha vizinha, me ensinava a ser um homenzinho: põe a mãozinha aqui, bem. Isso, devagar. Agora beijo de língua. E quase me afogo da primeira vez. Mulher gosta de homem que aperta, fala grosso, morde. Para uma garota de apenas treze anos, Amanda até que sabia das coisas. A ela mostrei meu primeiro pentelhinho. Não consigo ficar feliz por isso, amor. Em breve você se tornará um escravo. Sofrerá de um mal indefinido e emanado de mulheres sádicas sobre cujos corpos você pairará como uma abelha faminta diante da flor. Fiquei sem entender. Dia seguinte, trepado no telhado da edícula, Isaías, o irmão mais velho de Amanda, me oferece um cigarro. Um tanto de alcatrão e outro de nicotina aceleraria o processo de crescimento dos meus pêlos pubianos, ele me garantiu. Fumei. Me engasguei. E quase me finei na tosse. Isaías, meu verdugo, ria à grande. Meses depois um facínora juvenil das redondezas se encarregaria da minha vingança: arrebentaria a cara de Isaías com um pedaço de bambu. Esclareço: não fui o mandante. Tratava-se de rixa antiga – Isaías tinha seus desafetos. E confesso que, quando contemplei seu corpo estirado no sofá da sala, a cara túmida e ensangüentada que lhe conferia uma feição monstruosa, senti pena a ele. Dois dentes pontudos e lacerados que sua mãe colocou diante dos meus olhos: só um animal pra fazer isso com uma criança, dizia ela, chorosa. Semanas depois Isaías voltava pra detrás do balcão do botequim do pai, o qual era regularmente freqüentado por Bernardo. E não era um boteco qualquer; era dos mais odiosos e anti-higiênicos, do tipo que serve salsichas mofadas e torresmos adiposos como tira-gosto. Aos sábados havia suã e torneio de truco. Um sósia do Roberto Carlos se apresentava num palco mambembe feito de paletes de madeira empilhados. O cantor colhia flores e aplausos. Vestia um terno branco e depauperado, que aos poucos ia se impregnando de manchas de álcool e gordura; aqui e ali também maculado por guimbas de cigarro. Vez em quando alguém propunha um duelo. Você vai cantar o quê? Garrincha, o dono da birosca, tentava impor alguma ordem aos trabalhos, enquanto eu, premido entre uma pilha de engradados e a mesa de sinuca, pensava se já não era hora de convencer meu pai a voltar pra casa. A qualquer momento Isabel podia surgir inadvertidamente e me resgatar daquela fedentina atroz. Contendas figadais adviriam disso. Bernardo dava um trago no hi-fi, eu já o via claudicando pela calçada até chegar ao portão de casa. Os gritos, as ofensas que ele e Isabel trocariam já reverberavam na minha cabeça. Via Dick recolher-se célere à caixa de papelão que lhe servia de abrigo; meu irmão encolhido num canto da cozinha, as mãos espalmadas contraindo os ouvidos. Meus nervos enregelados e destrinchados a alicate. As mãos de Bernardo arrancavam cabelos; um punho cerrado (o meu?) descia-lhe contra a face num golpe duro; alguns fantasmas incendiados crepitavam estrepitosamente, num vaivém de insânia etílica: eu o débil mental? Nessa hora brotava minha impotência: um broxa que não chegou a foder.
A televisão tinha uma grande parcela de culpa nisso tudo. Os programas vespertinos mostravam criaturas bizarras, mutantes, solitárias. Tinha de tudo: falcatrua, beatitude, adultério, perfídia sexual. Certa vez entrevistaram um menino-peixe que vivia num aquário. Assisti à entrevista consternado por um misto de incredulidade e comiseração. Eu não podia assimilar certas coisas, e não havia como ignorá-las. Isso me privou de muitas noites de sono: o eterno remoer de indignações. Teria sido mais fácil aprender a dançar, tocar piano ou guitarra, confeccionar balões, fabricar gaiolas – vô Aranha ministrava oficinas. Mas nessa noite pedi à vó Odila que me deixasse dormir a seu lado, encolhido entre ela e meu avô na cama de casal. Tudo menos a culpa. Os pais – e os avós, por conseguinte – preferiam pecar por excesso. Cediam. Às vezes apelavam a seu Cristóvão, que mal conseguia ler e entoar seus cantos litúrgicos de tão velho. Ele me confundia com outras crianças. Chamava-me de Pedrinho, Robinson Crusoe, Peter Pan... Dizia que eu seria muito feliz, e que daria muita felicidade à família. Eu acreditava e comia os bolinhos de arroz e a paçoca que dona Mariúcha preparava - tudo bento. Enquanto isso, Amanda, minha vizinha, me ensinava a ser um homenzinho: põe a mãozinha aqui, bem. Isso, devagar. Agora beijo de língua. E quase me afogo da primeira vez. Mulher gosta de homem que aperta, fala grosso, morde. Para uma garota de apenas treze anos, Amanda até que sabia das coisas. A ela mostrei meu primeiro pentelhinho. Não consigo ficar feliz por isso, amor. Em breve você se tornará um escravo. Sofrerá de um mal indefinido e emanado de mulheres sádicas sobre cujos corpos você pairará como uma abelha faminta diante da flor. Fiquei sem entender. Dia seguinte, trepado no telhado da edícula, Isaías, o irmão mais velho de Amanda, me oferece um cigarro. Um tanto de alcatrão e outro de nicotina aceleraria o processo de crescimento dos meus pêlos pubianos, ele me garantiu. Fumei. Me engasguei. E quase me finei na tosse. Isaías, meu verdugo, ria à grande. Meses depois um facínora juvenil das redondezas se encarregaria da minha vingança: arrebentaria a cara de Isaías com um pedaço de bambu. Esclareço: não fui o mandante. Tratava-se de rixa antiga – Isaías tinha seus desafetos. E confesso que, quando contemplei seu corpo estirado no sofá da sala, a cara túmida e ensangüentada que lhe conferia uma feição monstruosa, senti pena a ele. Dois dentes pontudos e lacerados que sua mãe colocou diante dos meus olhos: só um animal pra fazer isso com uma criança, dizia ela, chorosa. Semanas depois Isaías voltava pra detrás do balcão do botequim do pai, o qual era regularmente freqüentado por Bernardo. E não era um boteco qualquer; era dos mais odiosos e anti-higiênicos, do tipo que serve salsichas mofadas e torresmos adiposos como tira-gosto. Aos sábados havia suã e torneio de truco. Um sósia do Roberto Carlos se apresentava num palco mambembe feito de paletes de madeira empilhados. O cantor colhia flores e aplausos. Vestia um terno branco e depauperado, que aos poucos ia se impregnando de manchas de álcool e gordura; aqui e ali também maculado por guimbas de cigarro. Vez em quando alguém propunha um duelo. Você vai cantar o quê? Garrincha, o dono da birosca, tentava impor alguma ordem aos trabalhos, enquanto eu, premido entre uma pilha de engradados e a mesa de sinuca, pensava se já não era hora de convencer meu pai a voltar pra casa. A qualquer momento Isabel podia surgir inadvertidamente e me resgatar daquela fedentina atroz. Contendas figadais adviriam disso. Bernardo dava um trago no hi-fi, eu já o via claudicando pela calçada até chegar ao portão de casa. Os gritos, as ofensas que ele e Isabel trocariam já reverberavam na minha cabeça. Via Dick recolher-se célere à caixa de papelão que lhe servia de abrigo; meu irmão encolhido num canto da cozinha, as mãos espalmadas contraindo os ouvidos. Meus nervos enregelados e destrinchados a alicate. As mãos de Bernardo arrancavam cabelos; um punho cerrado (o meu?) descia-lhe contra a face num golpe duro; alguns fantasmas incendiados crepitavam estrepitosamente, num vaivém de insânia etílica: eu o débil mental? Nessa hora brotava minha impotência: um broxa que não chegou a foder.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Paroxetina - Trecho
Resolvi publicar aqui alguns trechos do meu romance inédito, Paroxetina, que, como vocês já sabem, foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2008 e recebeu menção honrosa da comissão julgadora.
A seguir, um trechinho da segunda parte do livro, intitulada Um mar de cafeína:
Foi o próprio dr. Moraes quem o indicou. Numa conversa particular com minha mãe, o médico veterano falou a respeito desse jovem psiquiatra da cidade de Lorena, que, segundo ele, poderia tratar do meu caso. Isabel disse que me acompanharia ao consultório do tal médico, e eu não tive como recusar. Também estava cansado de viver com medo do próximo passo que daria. O ambiente ao meu redor podia, de uma hora pra outra, transformar-se numa esfera inóspita e ameaçadora sem que eu tivesse discernimento o suficiente para provar a mim mesmo que as sensações de pavor e de iminência da destruição não passavam de invenção da minha própria cabeça. Ou, colocando de um outro modo: o mundo à minha volta continuava o mesmo; era o meu corpo que criava a sensação de perda de controle, de perigo de morte. Tudo estava relacionado a um distúrbio orgânico que gerava crises de falta de ar, taquicardia, sudorese, medo do desconhecido. E, embora eu houvesse lido bastante a respeito da síndrome do pânico em jornais, revistas e sites na internet, quando uma crise eclodia, esse parco conhecimento adquirido não era suficiente para fazer com que eu a suprimisse. Então acabava por amargar mais uma “crise de nervos”, por assim dizer, e sempre saía dela como se estivesse acabado de disputar uma luta frenética com um pugilista cem vezes mais forte do que eu.
terça-feira, 24 de março de 2009
Para o alto com Machado de Assis, Kafka, e Antonio Carlos Villaça
Eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada...
Que multidão de dependências na vida! Umas coisas nascem das outras, enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se e o tempo vai andando sem se perder a si mesmo.
Ai, ai, ai, deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida. Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.
Que multidão de dependências na vida! Umas coisas nascem das outras, enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se e o tempo vai andando sem se perder a si mesmo.
Ai, ai, ai, deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida. Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.
(Machado de Assis)
Comecei a ler Machado de Assis. O choque foi muito sério: eu vinha do sublime ou das sublimidades, e de repente, “não mais que de repente”, como em Vinícius, me lançava na aventura da incorporação do cotidiano à vida cultural, descobria a possibilidade de fazer arte, criar, com elementos prosaicos, com a vida simples. Descobri o valor da vida simples. A existência das entrelinhas. A força da ambigüidade. Em Machado, encontrei pela primeira vez, aos dezesseis, dezessete, o turvo, o obscuro, o confuso, a sombra, o lado trágico dos seres. (...) Machado foi um dos reveladores da miséria humana ao meu coração de menino.
A vida escapava-me. Eis o que precisamente sentia: escapar-me a vida. Eu tinha medo. Medo de quê? De não me encontrar, de ser traído pelo destino.
Refugiei-me nas leituras. Recolhi-me a meu mundo interior, como a personagem de A Metamorfose, de Kafka. É verdade: quando li a descrição kafkiana, eu me disse com angústia – este homem sou eu. Encontrava-me nele perfeitamente.
(Antonio Carlos Villaça in O Nariz do Morto)
sábado, 21 de março de 2009
Prêmio Sesc de Literatura 2008 - Fim da Angústia
Acabou a angústia. O resultado do Prêmio Sesc de Literatura 2008 foi finalmente divulgado nesta sexta-feira. Eu havia inscrito um romance meu na competição e aguardava ansioso pelo anúncio dos vencedores. Infelizmente, meu livro não ganhou o prêmio principal, que garantiria sua publicação e comercialização pela editora Record. Mas não tenho motivos para estar triste. Ao contrário. Meu romance Paroxetina ou Crônicas de um ansioso crônico ficou entre os vinte quatro finalistas da categoria e, o que me deixou ainda mais contente e orgulhoso, recebeu menção honrosa da comissão julgadora.
Sinceramente, eu não imaginava que o livro pudesse chegar tão longe. Entre várias razões, por não se tratar de um romance no sentido clássico, e sim de um relato ficcional de cunho autobiográfico narrado num tom de tragicomédia. Para mim, a chance de ele ser descartado de saída pelo júri era muito grande. Que bom que eu estava enganado!
Sofri muito durante esses seis meses de espera. Criei este blog para tentar arejar um pouco a cuca, esquecer o romance e o prêmio - pois eu só fazia imaginar o modo com que o livro seria recebido, além de meu futuro como escritor caso não obtivesse nenhum reconhecimento. Pensei em abandonar a pena, por assim dizer. Essa poderia (e pode) ser minha maior contribuição à literatura brasileira, que, a bem da verdade, anda carecendo muito mais de leitores que de literatos, sejam eles bons ou ruins. Por isso cogitei de me resignar apenas com a condição de leitor, que é muito mais confortável que a de autor, em todos os sentidos.
Passei dois anos escrevendo e reescrevendo esse livro. O texto foi reformulado várias vezes, até que em agosto do ano passado eu me dei por vencido: decidi que daria o romance por encerrado. Então, após algumas tentativas malogradas de apresentá-lo a uma editora, tomei a iniciativa de inscrevê-lo no Prêmio Sesc, um concurso exclusivamente voltado para autores inéditos. Foi um verdadeiro sacrifício fazer as quatro cópias exigidas pelo regulamente e ter de transportá-las até a unidade do Sesc mais próxima, em Taubaté. Além do quê, depois que entreguei os originais, caí na bobeira de reler o livro e me deparei com vários erros de revisão, principalmente de ortografia. Fiquei chateadíssimo. Imaginei que, além de mau prosador, me tachariam de semi-analfabeto.
O tempo e o parecer do júri, no entanto, se encarregaram de provar que eu estava sendo severo demais comigo mesmo, e que, embora o livro esteja longe de ser irretocável, ele possui algumas qualidades.
Não tenho a mínima idéia de como a distinção outorgada a mim e a dois outros escritores pela comissão julgadora do prêmio influenciará nossas carreiras. Mas gostaria muito que ela suscitasse o interesse de algum editor por nossas obras. Seria maravilhoso. Afinal, todo criador deseja expor seu trabalho ao público, ainda que isso cause um grande desconforto.
Enfim, parabéns aos vencedores: Márcio Ribeiro Leite, por O momento mágico (romance); e Sergio Leo, por Mentiras do Rio (contos). E o meu voto de sucesso aos outros dois colegas que também obtiveram menção honrosa, José Jorge de Mendonça, pelo romance Vale Grande, e Edson Dourado Marques, por Com quem o demônio aprende.
Caso você queira conferir todo o resultado do concurso, basta clicar aqui.
Sinceramente, eu não imaginava que o livro pudesse chegar tão longe. Entre várias razões, por não se tratar de um romance no sentido clássico, e sim de um relato ficcional de cunho autobiográfico narrado num tom de tragicomédia. Para mim, a chance de ele ser descartado de saída pelo júri era muito grande. Que bom que eu estava enganado!
Sofri muito durante esses seis meses de espera. Criei este blog para tentar arejar um pouco a cuca, esquecer o romance e o prêmio - pois eu só fazia imaginar o modo com que o livro seria recebido, além de meu futuro como escritor caso não obtivesse nenhum reconhecimento. Pensei em abandonar a pena, por assim dizer. Essa poderia (e pode) ser minha maior contribuição à literatura brasileira, que, a bem da verdade, anda carecendo muito mais de leitores que de literatos, sejam eles bons ou ruins. Por isso cogitei de me resignar apenas com a condição de leitor, que é muito mais confortável que a de autor, em todos os sentidos.
Passei dois anos escrevendo e reescrevendo esse livro. O texto foi reformulado várias vezes, até que em agosto do ano passado eu me dei por vencido: decidi que daria o romance por encerrado. Então, após algumas tentativas malogradas de apresentá-lo a uma editora, tomei a iniciativa de inscrevê-lo no Prêmio Sesc, um concurso exclusivamente voltado para autores inéditos. Foi um verdadeiro sacrifício fazer as quatro cópias exigidas pelo regulamente e ter de transportá-las até a unidade do Sesc mais próxima, em Taubaté. Além do quê, depois que entreguei os originais, caí na bobeira de reler o livro e me deparei com vários erros de revisão, principalmente de ortografia. Fiquei chateadíssimo. Imaginei que, além de mau prosador, me tachariam de semi-analfabeto.
O tempo e o parecer do júri, no entanto, se encarregaram de provar que eu estava sendo severo demais comigo mesmo, e que, embora o livro esteja longe de ser irretocável, ele possui algumas qualidades.
Não tenho a mínima idéia de como a distinção outorgada a mim e a dois outros escritores pela comissão julgadora do prêmio influenciará nossas carreiras. Mas gostaria muito que ela suscitasse o interesse de algum editor por nossas obras. Seria maravilhoso. Afinal, todo criador deseja expor seu trabalho ao público, ainda que isso cause um grande desconforto.
Enfim, parabéns aos vencedores: Márcio Ribeiro Leite, por O momento mágico (romance); e Sergio Leo, por Mentiras do Rio (contos). E o meu voto de sucesso aos outros dois colegas que também obtiveram menção honrosa, José Jorge de Mendonça, pelo romance Vale Grande, e Edson Dourado Marques, por Com quem o demônio aprende.
Caso você queira conferir todo o resultado do concurso, basta clicar aqui.
Um abraço de chimpanzé.
quarta-feira, 18 de março de 2009
Radiohead e a descoberta do mundo
Ontem assisti a um show antigo do Radiohead na tevê e posso dizer com certeza, e alguma pieguice, que experimentei uma sensação semelhante àquela que nós, os tarados por literatura, vivenciamos quando descobrimos um grande escritor. Ao ver a performance da cultuada banda inglesa num festival de música europeu, em 2003, eu me dei conta de que aquilo que sempre ouvira falar a respeito do som do grupo não era nenhum exagero: os caras são mesmo uns monstros.
Acho que só não “descobri” a música do Radiohead antes por pura preguiça – essa meia-irmã da ignorância. Já disse aqui que, quando recebo uma dica ou me interesso por qualquer manifestação artística, procuro saber mais a respeito. Sou um sujeito estranho que leva o cinema e a literatura (que são meus principais pólos de interesse) a sério, sendo que o mesmo se aplica às demais formas de arte. Pois não fosse nossa capacidade de abstração, voltaríamos a andar de quatro e a catar piolho na cabeça uns dos outros – quer dizer, nada muito diferente, ou mais indigno, do que costumamos nos ocupar atualmente.
Talvez eu seja mesmo muito sugestionável, pois meu interesse pelo Radiohead data de meados do ano passado, quando já havia rumores de que eles se apresentariam no Brasil no início deste ano, como de fato acontecerá nesta sexta-feira, no Rio, e no domingo, em São Paulo. Talvez Thom Yorke, o vocalista da banda, seja mesmo um extraterrestre, como desconfia meu irmão, Chukatrok. Talvez o desespero tenha potencializado minha faculdade de assimilação do contemporâneo e do belo. E talvez eu não passe mesmo de um idiota: alguém que pensa ter uma razoável compreensão das “coisas do mundo”, mas que na realidade está muito distante disso.
(Talvez eu só esteja com sono.)
Talvez eu seja mesmo muito sugestionável, pois meu interesse pelo Radiohead data de meados do ano passado, quando já havia rumores de que eles se apresentariam no Brasil no início deste ano, como de fato acontecerá nesta sexta-feira, no Rio, e no domingo, em São Paulo. Talvez Thom Yorke, o vocalista da banda, seja mesmo um extraterrestre, como desconfia meu irmão, Chukatrok. Talvez o desespero tenha potencializado minha faculdade de assimilação do contemporâneo e do belo. E talvez eu não passe mesmo de um idiota: alguém que pensa ter uma razoável compreensão das “coisas do mundo”, mas que na realidade está muito distante disso.
(Talvez eu só esteja com sono.)
segunda-feira, 16 de março de 2009
Dois trechos
Humor à indiana
Não tenho celular, por razões óbvias – eles corroem o cérebro humano, fazem os nossos testículos encolherem e secam o nosso sêmen, como bem sabemos -, portanto, tenho de ficar no escritório. Para o caso de haver uma crise.
Não tenho celular, por razões óbvias – eles corroem o cérebro humano, fazem os nossos testículos encolherem e secam o nosso sêmen, como bem sabemos -, portanto, tenho de ficar no escritório. Para o caso de haver uma crise.
Aravind Adiga in O Tigre Branco
O maior homem de letras do nosso tempo*
Quando chegam ao apartamento, ele pergunta em voz suplicante:
- Está disposta mesmo?
Ela se impressiona com a fraqueza da atitude dele. Na escuridão do interior, a que os olhos dela ainda não se ajustaram, ele parece uma muda de roupas pendurada do cabide branco e largo do rosto.
John Updike in Corre, Coelho
(Nova Cultura, 1989. Trad.: Pinheiro de Lemos)
***
*Essa declaração foi feita pelo romancista americano Philip Roth, quando da morte de Updike, em janeiro último.
Ao ler Corre, Coelho - ou Coelho Corre, na tradução mais recente de Paulo Henriques Britto - , fica fácil perceber por que Roth, um dos maiores ficcionistas americanos vivos, teceu esse comentário sobre o colega morto.
sábado, 14 de março de 2009
Vamos chorar abraçados?
Escrevi uma crônica sobre o ato de chorar. Pretendia publicá-la aqui mas, como ficou um tanto quanto longa, resolvi que o melhor seria alocá-la no blog em que costumo postar alguns textos de ficção de vez em quando. Portanto, caso você queira conferir esse meu breve ensaio sobre o choro, é só clicar aí do lado sobre a legenda Chimpanzés também choram.
E por falar em choro, ontem ouvi uma música na voz da inesquecível Cássia Eller e fiquei triste com o fato de não podermos mais contar com uma intérprete do porte dela na MPB. Não que eu seja um fã incondicional da Cássia. Acho que ela foi feliz em muitas escolhas artísticas que fez e morreu (infelizmente) no seu auge criativo.
Mas como não dá pra ficar lamentando a perda dessa grande cantora, nos esbaldemos com o que Cássia nos legou de melhor: como sua interpretação dessa ótima canção composta por Erasmo Carlos (grande figura!) e Dion di Mucci.
Mas como não dá pra ficar lamentando a perda dessa grande cantora, nos esbaldemos com o que Cássia nos legou de melhor: como sua interpretação dessa ótima canção composta por Erasmo Carlos (grande figura!) e Dion di Mucci.
quarta-feira, 11 de março de 2009
Terrorismo à americana
Há alguns anos os Estados Unidos vêm produzindo um tipo muito particular de criminoso: o atirador sem causa. Esses atiradores geralmente são jovens em idade escolar, tidos como freaks (esquisitos, desajustados) pela sociedade, com fácil acesso a armas de fogo, que planejam seus atentados meticulosamente, e cujas vítimas são colegas de escola, professores, e, em última instância, eles próprios.
O caso mais famoso dessa espécie de terrorismo é o do massacre de Columbine, ocorrido em abril de 1999 numa pacata cidadezinha do estado do Colorado. Na ocasião, dois adolescentes abriram fogo contra colegas e professores do Instituto Colombine, deixando 15 mortos, incluindo eles mesmos, que se mataram após a chacina.
Outros episódios dentro e fora dos EUA também marcaram época. No Brasil, o caso mais conhecido é o do estudante de medicina Mateus da Costa Meira, que em novembro de 1999 invadiu uma sala de cinema num shopping em São Paulo e disparou contra a platéia, matando três pessoas e ferindo outras cinco. O filme que estava sendo exibido quando do ataque era Clube da Luta, de David Fincher, e eu me lembro de Arnaldo Jabor espinafrando a obra de Fincher e o cinema de ação hollywoodiano de modo geral em seu comentário no Jornal da Globo, como se a violência perpetrada naquela noite fatídica houvesse sido transmitida a nós, os puros de coração, através do cinema americano. Simples assim.
Seria leviano afirmar que os americanos criaram essa nova categoria de terrorismo e a exportaram para o resto do mundo. Equivaleria a sustentar que as “raízes do mal” germinam apenas em solo americano, na terra do capitalismo desmedido, onde os fracos não têm vez etc. – o que é uma completa tolice. Do mesmo modo, acredito que a violência no cinema – ou nos videogames – não seja a principal propagadora do mal entre os jovens que cometem essas atrocidades. Ela até pode servir de modelo para os ataques, mas não me parece ser seu fator gerador.
Cineastas como Michel Moore (Tiros em Columbine) e Gus Van Sant (Elefante) investigaram, cada qual à sua maneira, os motivos que levam parte da juventude americana a cometer tais atos de desespero. O primeiro, utilizando o documentário como instrumento de investigação, acredita que o livre acesso a armas letais e o descaso do governo para com a população mais pobre do país seriam as principais causas desses atentados. Já o segundo, valendo-se dos meios ficcionais, atribui essas manifestações ao isolamento social e a fragilidades emocionais inerentes aos protagonistas. Ou seja, enquanto para Michel Moore as deficiências sócio-culturais são as verdadeiras vilãs, para Gus Van Sant, o problema maior está no silêncio dos jovens atiradores, um silêncio que denota medo e desesperança, e que, somado à extrema facilidade de se adquirir armas letais no país, acaba culminando em violência gratuita.
Sejam quais forem os estopins desses assassinatos, o fato é que eles estão se tornando cada vez mais constantes. Em 2007, houve chacinas dessa ordem numa universidade americana da Virgínia (32 mortos), e numa escola da Finlândia (8 mortos). Hoje pela manhã, ao acessar a internet, descubro que ocorreram mais dois casos do tipo, um na Alemanha e outro nos Estados Unidos. Este último se deu ontem no Alabama e envolveu um atirador que matou dez pessoas, entre elas um bebê de um ano e meio e sua mãe, além dele próprio. Até agora a polícia local não sabe o que motivou o crime. No sudoeste da Alemanha, um rapaz de 17 anos invadiu sua antiga escola na manhã desta quarta-feira e abriu fogo contra alunos e professores. Dezesseis pessoas morreram, incluindo o adolescente, morto em tiroteio com a polícia.
Como disse Bob Dylan em sua célebre canção, the times are changing. Ou melhor, things have changed.
O caso mais famoso dessa espécie de terrorismo é o do massacre de Columbine, ocorrido em abril de 1999 numa pacata cidadezinha do estado do Colorado. Na ocasião, dois adolescentes abriram fogo contra colegas e professores do Instituto Colombine, deixando 15 mortos, incluindo eles mesmos, que se mataram após a chacina.
Outros episódios dentro e fora dos EUA também marcaram época. No Brasil, o caso mais conhecido é o do estudante de medicina Mateus da Costa Meira, que em novembro de 1999 invadiu uma sala de cinema num shopping em São Paulo e disparou contra a platéia, matando três pessoas e ferindo outras cinco. O filme que estava sendo exibido quando do ataque era Clube da Luta, de David Fincher, e eu me lembro de Arnaldo Jabor espinafrando a obra de Fincher e o cinema de ação hollywoodiano de modo geral em seu comentário no Jornal da Globo, como se a violência perpetrada naquela noite fatídica houvesse sido transmitida a nós, os puros de coração, através do cinema americano. Simples assim.
Seria leviano afirmar que os americanos criaram essa nova categoria de terrorismo e a exportaram para o resto do mundo. Equivaleria a sustentar que as “raízes do mal” germinam apenas em solo americano, na terra do capitalismo desmedido, onde os fracos não têm vez etc. – o que é uma completa tolice. Do mesmo modo, acredito que a violência no cinema – ou nos videogames – não seja a principal propagadora do mal entre os jovens que cometem essas atrocidades. Ela até pode servir de modelo para os ataques, mas não me parece ser seu fator gerador.
Cineastas como Michel Moore (Tiros em Columbine) e Gus Van Sant (Elefante) investigaram, cada qual à sua maneira, os motivos que levam parte da juventude americana a cometer tais atos de desespero. O primeiro, utilizando o documentário como instrumento de investigação, acredita que o livre acesso a armas letais e o descaso do governo para com a população mais pobre do país seriam as principais causas desses atentados. Já o segundo, valendo-se dos meios ficcionais, atribui essas manifestações ao isolamento social e a fragilidades emocionais inerentes aos protagonistas. Ou seja, enquanto para Michel Moore as deficiências sócio-culturais são as verdadeiras vilãs, para Gus Van Sant, o problema maior está no silêncio dos jovens atiradores, um silêncio que denota medo e desesperança, e que, somado à extrema facilidade de se adquirir armas letais no país, acaba culminando em violência gratuita.
Sejam quais forem os estopins desses assassinatos, o fato é que eles estão se tornando cada vez mais constantes. Em 2007, houve chacinas dessa ordem numa universidade americana da Virgínia (32 mortos), e numa escola da Finlândia (8 mortos). Hoje pela manhã, ao acessar a internet, descubro que ocorreram mais dois casos do tipo, um na Alemanha e outro nos Estados Unidos. Este último se deu ontem no Alabama e envolveu um atirador que matou dez pessoas, entre elas um bebê de um ano e meio e sua mãe, além dele próprio. Até agora a polícia local não sabe o que motivou o crime. No sudoeste da Alemanha, um rapaz de 17 anos invadiu sua antiga escola na manhã desta quarta-feira e abriu fogo contra alunos e professores. Dezesseis pessoas morreram, incluindo o adolescente, morto em tiroteio com a polícia.
Como disse Bob Dylan em sua célebre canção, the times are changing. Ou melhor, things have changed.
domingo, 8 de março de 2009
Eu, menestrel?
Ontem falei pro meu irmão:
- Se eu tivesse talento, seria compositor popular, não escritor!
Invejo os compositores de música popular, que têm o privilégio de ouvir suas canções nas vozes de intérpretes ilustres e, mais excitante ainda, na voz do povo. É. Eu queria ser compositor. Eu e meu violão, no palco de um programa de auditório, lubrificando a tarde de domingo. Mais uma palhinha? Claro que sim!
- Se eu tivesse talento, seria compositor popular, não escritor!
Invejo os compositores de música popular, que têm o privilégio de ouvir suas canções nas vozes de intérpretes ilustres e, mais excitante ainda, na voz do povo. É. Eu queria ser compositor. Eu e meu violão, no palco de um programa de auditório, lubrificando a tarde de domingo. Mais uma palhinha? Claro que sim!
Quando vejo uma entrevista de um compositor, do homem por trás das letras e melodias que ouvimos e cantamos a vida toda, sempre me emociono. É incrível esse momento em que um sujeito que passa a maior parte da carreira nas sombras é trazido à luz. Nós costumamos atribuir uma canção a seu intérprete mais famoso, e quase sempre esquecemos que existe um artista anônimo (na maioria das vezes) responsável por ela.
Conversávamos sobre isso, eu e meu irmão, porque ele tem se dedicado a aprender violão por conta própria. Passa horas em frente ao computador, o violão ao colo, estudando cifras e tentando domar notas musicais, quase sempre debalde, diga-se.
Eu gostaria de aprender piano e violão. Mas isso é tarefa pra vida inteira: muito estudo e dedicação integral. Tocar por tocar, assim, pros amigos em reuniões íntimas - quiçá, quiçá, quiçá.
Um dia, quem sabe? Antes de o caldo entornar. Se o mundo não acabar depois de amanhã. Se eu sobreviver a mim mesmo. Depois do inverno nuclear vigente. Por que não um rock? Wy not um sambinha? Marchinha de carnaval. Samba-canção. Choro bem chorado.
Quanta pretensão!
Quanta pretensão!
quinta-feira, 5 de março de 2009
Diário de um chimpanzé (V)
Andando pelo calçadão do Mercado Municipal, ele chuta o restolho de hortaliças e desvia dos cães vadios e dos pedintes que atravancam o caminho. Sente uma leve dor no flanco esquerdo, um aviso de que em breve uma hérnia eclodirá bem ali, à altura do rim, como a do pai eclodiu. O joelho esquerdo também está dolorido, mas ele sabe que isso nada tem que ver com previsões meteorológicas de qualquer espécie. Costume de velhos. Caminha até a banca de jornal e espia as manchetes. Desemprego. Futebol. Crise econômica. Carnaval. Violência. Corrupção. Mais carnaval e futebol. Pousa inopinadamente o olhar sobre a fileira de revistas pornográficas: a moda agora são as mulheres-fruta. Mulher com mulher já virou clichê, mas homem com homem - pelo menos em banca de jornal – é um fenômeno recente. E ninguém parece se importar. Acha bom que seja assim. Todo cidadão tem direito a escolher a sacanagem que melhor lhe aprouver. Um carro-de-som passa gritando ofertas de cama, mesa e banho no seu ouvido. Outro carro anuncia a chegada de um circo de nome esquisito na cidade. Ele ainda vai descobrir o que tanto esses circos de nome estrangeiro vêm fazer na sua cidade, um desconhecido fim de mundo. Ganhar dinheiro? Mas como, se mais ninguém parece se interessar por espetáculos circenses hoje em dia?
Carrega um buraco negro no peito. Está muito suscetível a enfermidades. Resolve entrar no Mercadão. Vai até uma peixaria e pergunta o preço do quilo de cação. Gosta de sentir o cheiro das mercadorias. Gosta de ver essa gente que se dedica a um ofício tão antigo e essencial. Quando está imerso em uma crise existencial profunda, dirigi-se ao Mercado Municipal em busca de conforto. Ali sente-se humano, substantivo, telúrico. Chega-se até a barraquinha onde um octogenário de cabelos acinzentados e unhas grossas e sujas vende livros, revistas e jornais velhos. Uma vez comprou ali um livro por cinco reais e o vendeu por oitenta, na internet. Desnecessário dizer que se arrependeu.
Sai do mercado quando sente um inexpugnável desejo de deitar-se naquele chão centenário e chorar que nem criança.
Carrega um buraco negro no peito. Está muito suscetível a enfermidades. Resolve entrar no Mercadão. Vai até uma peixaria e pergunta o preço do quilo de cação. Gosta de sentir o cheiro das mercadorias. Gosta de ver essa gente que se dedica a um ofício tão antigo e essencial. Quando está imerso em uma crise existencial profunda, dirigi-se ao Mercado Municipal em busca de conforto. Ali sente-se humano, substantivo, telúrico. Chega-se até a barraquinha onde um octogenário de cabelos acinzentados e unhas grossas e sujas vende livros, revistas e jornais velhos. Uma vez comprou ali um livro por cinco reais e o vendeu por oitenta, na internet. Desnecessário dizer que se arrependeu.
Sai do mercado quando sente um inexpugnável desejo de deitar-se naquele chão centenário e chorar que nem criança.
Um funcionário lava o saguão da biblioteca. Ambos trocam um olhar impessoal, quase hostil. Já “brigaram” pela posse do jornal várias vezes. Quando um dia o tênue fio da civilização se romper, sairão no braço. O tênue fio da civilização! Ensaio sobre a cegueira, filme de Fernando Meireles baseado no romance homônimo de José Saramago, versa basicamente sobre isso. Uma epidemia de cegueira assola a humanidade, que pouco a pouco transgride as leis de convivência mais básicas. A barbárie recrudesce. E só não triunfa completamente porque Juliane Moore guia-nos até a luz.
Tivera rusgas com outros leitores por causa de jornal e espaço para ler. Apesar de sempre procurar ser educado e justo, conseguiu ganhar a antipatia de alguns “velhos loucos.” Havia um que portava um cajado e um saco de estopa, e sempre chegava ao local fazendo estardalhaço. Seus olhos eram azuis e aguados, e apenas dois dentes amarelados figuravam solitários em sua boca murcha. Sentava-se a uma mesa de modo a atrair a atenção toda para si, e sacava do saco de estopa uma lupa com a qual lia o noticiário político dos dois jornais assinados pela biblioteca. Era um entusiasta de Barack Obama. De cada dez palavras que dizia, podia-se compreender uma.
quarta-feira, 4 de março de 2009
Everything is broken
No post anterior, compartilhei um triste dado acerca da nossa sociedade com vocês: o uso irresponsável e aleatório de psicotrópicos. Acredito que a onipresença da finitude que nos assola (violência urbana e doméstica, crise econômica, aquecimento global) esteja nos fazendo recorrer a esses medicamentos. Essa, contudo, é uma análise bastante superficial. Cada um "se droga" por um motivo singular. E nós não começamos a nos drogar ontem.
Eu faço uso de um mesmo antidepressivo há cerca de seis anos. Tomo porque, segundo o médico com o qual me trato, sou um ansioso crônico. E o tratamento contínuo com cloridrato de paroxetina ajuda a mitigar minha ansiedade, e, principalmente, a impedir que em certos momentos ela chegue a um patamar tal que me leve a sofrer graves crises de pânico. Nunca contei isso a meus amigos. (Talvez eu me arrependa de fazê-lo agora.) Sempre tive vergonha. Por mais que hoje haja muita informação ao alcance de todos, muita gente ainda tem preconceito contra o usuário de psicotrópicos. Na última ficha de emprego que preenchi, omiti o fato de usar um medicamente diariamente. Achei melhor assim. Talvez eu tenha agido errado, mas não estou em condições de ponderar sobre isso agora.
Queremos dizer a verdade, mas não dizemos a verdade. Quando muito, nos aproximamos da verdade. Desejamos ser francos e honestos, porém nunca o somos completamente. Por medo de sermos rejeitados, escondemos nossa vergonha. Até que um dia ela vem à tona intempestivamente e nos envenena. Chafurdamos nela, a lama da nossa vergonha omitida.
Escrevi um livro de ficção para expor minha vergonha publicamente. Enviei-o a alguns editores e recebi recusas. Enviei-o para a apreciação de escritores "consagrados" e recebi elogios, reprimendas, e comentários mais ou menos gentis e encorajadores. Por fim, decidi enviá-lo a um concurso literário e o fiz. O resultado deve sair ainda neste mês. Não tenho muita esperança - e sinceramente nem sei se quero vê-lo publicado. Talvez seja contraproducente.
Queremos dizer a verdade, mas...
***
Planet Telex, Radiohead
terça-feira, 3 de março de 2009
Uma nação de ansiosos
O Grito, de Edward Munch
Desculpem, mas não me ocorreu nada menos clichê para ilustrar este post
Vocês têm idéia de qual é o medicamento mais vendido no País? Acertou quem respondeu Microvilar, anticoncepcional que vendeu 20 milhões de unidades em 2008.
Mas alguém aí sabe dizer qual foi o segundo remédio mais vendido em 2008? Não? Então respondo eu: Rivotril.
Segundo o IMS Helth - instituto que controla a indústria farmacêutica -, esse ansiolítico e anticonvulsionante vendeu cerca de 14 milhões de unidades no ano passado, desbancando medicamentos corriqueiros como Neosaldina, Buscopan e Tylenol. Até a famosa pomada contra assaduras Hipoglós vendeu menos que o tal Rivotril.
Matéria publicada na edição de 28 de fevereiro da revista Época informa que a classe dos tranqüilizantes é a sétima mais vendida no Brasil, e que o "fenômeno Rivotril" se deve, em grande medida, ao preço baixo do medicamento (uma caixa custa em média R$13,00), bem como ao diagnóstico incorreto de muitos médicos, que prescrevem Rivotril para pacientes que se queixam de dor de cabeça, estresse, gastrite etc. Isso, segundo especialistas, gera uma banalização do uso de antidepressivos - o que acaba por deixar milhares de pessoas dependentes de medicamentos controlados, os quais nem sempre são os adequados para tratar determinados casos.
Outro fator que colabora para a alta vendagem do Rivrotril é o que muitos psiquiatras chamam de "glamorização do ato de medicar-se." Isto é, os medicamentos psiquiátricos, antes vistos com maus olhos pela sociedade, de uns anos para cá passaram a ser aceitos com certa naturalidade. A ingestão desse tipo de remédio está até associada a status; quem pode, paga para se ver livre das angústias. Questões existenciais são tratadas da mesma maneira que distúrbios psíquicos; estar triste, deprimido ou ansioso - estados por que qualquer chimpanzé pode passar naturalmente - está sendo encarado como doença. E ninguém quer sofrer "à toa".
Lembro uma vizinha idosa que, após perder o marido, passou a tomar calmantes para dormir. Os filhos descabeçados eram outra grande fonte de problemas. De uma hora pra outra os cabelos daquela mulher tornaram-se branquíssimos. Passava o dia trancada no quarto e só fazia chorar. Haviam sido uma família de posses; agora viviam de uma pensão mixuruca. Às vezes, a velha saía de casa à noite e ia até a casa da lavadeira, que era quem lhe fornecia os calmantes. A filha da lavadeira era enfermeira e cuidava de arranjar os remédios no posto de saúde em que trabalhava. Até hoje lembro com horror o desespero da velha, quando a lavadeira lhe dizia que não tinha calmantes para lhe dar. Ela fincava os dedos alvos e enrugados na cabeleira algodoada e praguejava contra Deus e o mundo. Então a lavadeira a levava pra dentro de casa e lhe preparava um chá de capim cidreira. Um dia a velha dormiu e não acordou mais. Os filhos a acharam estirada na cama, com um terço numa mão e uma caixinha de calmantes na outra. Só a lavadeira chorou de verdade no velório.
Nós, que já fomos o povo mais feliz e festeiro do mundo, hoje somos uma nação de ansiosos.
Mas alguém aí sabe dizer qual foi o segundo remédio mais vendido em 2008? Não? Então respondo eu: Rivotril.
Segundo o IMS Helth - instituto que controla a indústria farmacêutica -, esse ansiolítico e anticonvulsionante vendeu cerca de 14 milhões de unidades no ano passado, desbancando medicamentos corriqueiros como Neosaldina, Buscopan e Tylenol. Até a famosa pomada contra assaduras Hipoglós vendeu menos que o tal Rivotril.
Matéria publicada na edição de 28 de fevereiro da revista Época informa que a classe dos tranqüilizantes é a sétima mais vendida no Brasil, e que o "fenômeno Rivotril" se deve, em grande medida, ao preço baixo do medicamento (uma caixa custa em média R$13,00), bem como ao diagnóstico incorreto de muitos médicos, que prescrevem Rivotril para pacientes que se queixam de dor de cabeça, estresse, gastrite etc. Isso, segundo especialistas, gera uma banalização do uso de antidepressivos - o que acaba por deixar milhares de pessoas dependentes de medicamentos controlados, os quais nem sempre são os adequados para tratar determinados casos.
Outro fator que colabora para a alta vendagem do Rivrotril é o que muitos psiquiatras chamam de "glamorização do ato de medicar-se." Isto é, os medicamentos psiquiátricos, antes vistos com maus olhos pela sociedade, de uns anos para cá passaram a ser aceitos com certa naturalidade. A ingestão desse tipo de remédio está até associada a status; quem pode, paga para se ver livre das angústias. Questões existenciais são tratadas da mesma maneira que distúrbios psíquicos; estar triste, deprimido ou ansioso - estados por que qualquer chimpanzé pode passar naturalmente - está sendo encarado como doença. E ninguém quer sofrer "à toa".
Lembro uma vizinha idosa que, após perder o marido, passou a tomar calmantes para dormir. Os filhos descabeçados eram outra grande fonte de problemas. De uma hora pra outra os cabelos daquela mulher tornaram-se branquíssimos. Passava o dia trancada no quarto e só fazia chorar. Haviam sido uma família de posses; agora viviam de uma pensão mixuruca. Às vezes, a velha saía de casa à noite e ia até a casa da lavadeira, que era quem lhe fornecia os calmantes. A filha da lavadeira era enfermeira e cuidava de arranjar os remédios no posto de saúde em que trabalhava. Até hoje lembro com horror o desespero da velha, quando a lavadeira lhe dizia que não tinha calmantes para lhe dar. Ela fincava os dedos alvos e enrugados na cabeleira algodoada e praguejava contra Deus e o mundo. Então a lavadeira a levava pra dentro de casa e lhe preparava um chá de capim cidreira. Um dia a velha dormiu e não acordou mais. Os filhos a acharam estirada na cama, com um terço numa mão e uma caixinha de calmantes na outra. Só a lavadeira chorou de verdade no velório.
Nós, que já fomos o povo mais feliz e festeiro do mundo, hoje somos uma nação de ansiosos.
Será possível?
Garçom, um Rivotril, por favor!
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