sábado, 23 de maio de 2009

O Naufrágio da Ópera Flutuante

em memória de Mario Benedetti, homem bom que não conheci, mas cuja obra hei de descobrir

Atenção, senhoras e senhores! Quem fala é o seu timoneiro. Peço que me escutem atentamente pois o que tenho a informar é grave. A Ópera Flutuante está prestes a naufragar e não há botes para todos. Por favor, organizem-se em fila indiana – mulheres e crianças primeiro – e sigam as instruções da tripulação. A embarcação deverá soçobrar dentro de uma hora e meio mais ou menos, portanto ainda temos um bom tempo para acondicionar a todos (?) nos botes sem afobação.

Isso não aconteceu de fato, mas poderia ter acontecido. Por pouco A Ópera Flutuante - romance do americano John Barth com o qual eu vinha me digladiando havia duas semanas - não vai a pique. Nelson Rodrigues achava que não devíamos perder tempo tentando ler o maior número possível de livros. Para ele, só havia três ou quatro “livros totais”, aos quais devíamos nos ater durante toda nossa vida de leitor. Mas a realidade é que nos desgastamos com a leitura de romances “mais áridos que três desertos”, reféns de nossa insaciável curiosidade.

Agora que comecei a trabalhar, terei de diminuir meu ritmo de leitura, que já era lento, diga-se de passagem. Invejo essa gente que lê (ou afirma ler) uma grande quantidade de livros num curto período de tempo – sem contudo prejudicar sua vida social ou abrir mão de outras atividades como internet, cinema, esporte, caça ao tesouro etc. Como eu queria ser assim, multifuncional! Mas não dá. Se tento me dedicar a várias atividades simultaneamente, acabo entrando em parafusos. Espero conseguir ler dois, no máximo três livros por mês. Terei de ser mais seletivo, ir ao encontro dos “livros totais.” O que mais me preocupa é a escrita. Será que conseguirei produzir como antes? Se bem que já faz algum tempo que não crio nada que preste. Um conto aqui, um aforismo acolá. Ó Pai! Será o peso da menção honrosa?
***
Para encerrar, segue, em versão bilíngüe, um poema do peruano César Vallejo:

Intensidad y altura
Intensidade e Altura

Quiero escribir, pero me sale espuma,
Quero escrever, mas só me sai espuma,
quiero decir muchíssimo y me atollo;
quero dizer muitíssimo e me entulho;
no hay cifra hablada que no sea suma,
não há cifra falada sem ser suma
no hay pirámide escrita, sin cogollo.
nem pirâmide escrita, sem cogulho.

Quiero escribir, pero me siento puma;
Quero escrever, porém me sinto puma;
quiero laurearme, pero me encebollo.
quero a glória, e no entanto a mim me esbulho.
No hay toz hablada, que no llegue a bruma,
Não há tosse que nos fale sem ser bruma,
no hay dios ni hijo de dios, sin desarollo.
Não há deus nem seu filho, sem acúleo.

Vámonos, pues, por eso, a comer yerba,
Vamos, por isso, comer erva, sorva,
carne de llanto, fruta de gemido,
carne de pranto, fruta de gemido
nuestra alma melancólica en conserva.
a nossa alma em conserva sempre torva.

¡Vámonos! ¡Vámonos! Estoy herido;
Vamos agora porque estou ferido;
vámonos a beber lo ya bebido,
vamos beber o que já foi bebido,
vámonos, cuervo, a fecundar tu cuerva.
e vamos, corvo, fecundar a corva.

21/10/1937

(Tradução de Ivo Barroso)

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