terça-feira, 26 de maio de 2009

Entre os muros da escola*

Terça-feira passada, assisti com satisfação ao melhor programa da televisão aberta brasileira. Sim, meus caros, ele é exibido pela tevê Globo nas noites de terça. Não, não se trata do irregular e dispensável Casseta & Planeta, nem do simplório e vulgar Toma lá, da cá – e sim do jornalístico comandado pelo veterano Caco Barcelos, Profissão Repórter.

Para quem não conhece o programa, segue uma breve descrição. A cada semana, uma equipe de repórteres liderada por Caco Barcelos elege um determinado tema – ou pauta, no jargão jornalístico – e o explora numa espécie de documentário multifacetado, onde os muitos vieses do assunto são desenvolvidos em micro-reportagens apresentadas de modo alternado ao longo do episódio.

Dito assim, parece que o programa não apresenta nada de novo, uma vez que a televisão nacional contém uma série de atrações semelhantes – entre elas o Globo Repórter, exibido pela mesma emissora. O que diferencia Profissão Repórter dos seus congêneres é a abordagem. Aqui, o que interessa é apresentar os “bastidores e desafios da reportagem”, isto é, revelar ao telespectador o que todos os veículos jornalísticos, televisivos ou não, procuram esconder.

Pois bem. Na última terça-feira 19, o tema em questão foi o cotidiano de um grupo de estudantes do ensino médio da periferia de São Paulo. Os repórteres se dividiram em duplas e investiram em algumas frentes de possível interesse jornalístico. Por exemplo: enquanto uma dupla acompanhava o dia-a-dia de uma professora de matemática que leciona cerca de catorze horas diárias para conseguir uma renda de R$ 3.000,00 mensais, uma outra registrava a rotina extraclasse de alguns alunos. Entre os muros da escola, professores sobrecarregados e mal pagos se esforçam para transmitir o mínimo de conhecimento a uma horda de adolescentes dispersos e desinteressados.

Conhecemos, por meio das lentes e da abordagem dos jovens repórteres, pessoas com as quais topamos diariamente e a quem muitas vezes não atribuímos o menor valor. Pessoas como essa professora de matemática, que, dona de uma inquebrantável resignação, ministra conceitos de álgebra, aritmética, geometria etc. a adolescentes como a mulatinha grávida de nove meses que não presta a menor atenção à aula por se julgar incapaz de entender as lições, e o rapaz algo tímido e franzino que deseja aprender para “ser alguém na vida” e concilia os estudos com o emprego de auxiliar de escritório numa indústria metalúrgica.

À medida que conquistam a confiança dos “personagens” que se destacam no transcorrer das matérias, os jornalistas conseguem registrar fatos da sua vida pessoal, e são essas incursões para além dos muros da escola que nos dão uma melhor noção de como vive a maioria dos brasileiros.

A jovem gestante divide o mesmo teto com oito irmãos e trabalha como babá para contribuir (modestamente) com o orçamento doméstico. Visitamos sua casa simples, conversamos com sua mãe, conhecemos até o beliche onde, segundo a mãe, a criança foi concebida. Em seguida, acompanhamos o garoto estudioso até sua casa depois da aula, por volta das 11 da noite. Ele nos convida para entrar. O repórter vacila, não acha o horário conveniente. Decide apenas cumprimentar o pai do menino, que descansa no sofá da sala. Da porta mesmo, esboça uma discreta saudação, que não encontra resposta. “É que ele está um pouco alcoolizado”, o menino justifica a apatia do pai.

Às cinco horas da manhã, o repórter apanha o menino em casa e juntos enfrentamos uma viagem de metrô de mais de uma hora até seu local de trabalho. E só algumas dezenas de quilômetros depois, após termos atravessado a maior cidade do país quase de ponta a ponta, nos despedimos do jovem aprendiz, na porta da fábrica.

Durante cerca de quarenta minutos, desfrutamos da companhia dessas pequenas criaturas. Tempo suficiente para descobrir que a professora de matemática, embora ensine com dedicação e goste do magistério, faz tratamento contra hipertensão. Para sermos apresentados a outros personagens e conhecer outras histórias, como a do garoto mais popular do colégio, um ex-encrenqueiro que, de acordo com a mãe, agora tem se comportado. Ele nos introduz nos diferentes “bandos” dos quais é integrante - pequenos grêmios que se caracterizam por seus gostos, seu modo de vida. Uns cultuam o hip-hop e o grafite; outros, o pagode e a cerveja; e há ainda os que curtem rock e skate. São os manos da periferia. A rapaziada que dribla habilmente as agruras rotineiras e ainda consegue "tirar onda". Tribos. Juntos esses jovens se sentem mais fortes. Intramuros, os que não se encaixam em nenhum grupo, os que destoam da maioria por alguma razão, são alvo de chacota. Em nossa curta estada na periferia da megalópole, recebemos a notícia de que um estudante de catorze anos cometeu suicídio. Numa carta deixada para a mãe, o garoto pede desculpas por não ter tido força suficiente para sobreviver aos anos de insultos e agressões físicas constantes.

Faltando poucos minutos para o final de mais uma edição do Profissão Repórter, a mulatinha extrovertida e sorridente que conhecemos no começo do programa entra em trabalho de parto. A repórter que a acompanhara desde o início da matéria segue depressa para o hospital onde a menina está prestes a dar à luz uma outra menina, cujo nome de pronúncia difícil foi extraído de um seriado estrangeiro qualquer.

*Título do filme francês que venceu a Palma de Ouro em Cannes, no ano passado. Dirigido por Laurent Cantet, o longa narra o cotidiano de uma escola pública da periferia de Paris.

sábado, 23 de maio de 2009

O Naufrágio da Ópera Flutuante

em memória de Mario Benedetti, homem bom que não conheci, mas cuja obra hei de descobrir

Atenção, senhoras e senhores! Quem fala é o seu timoneiro. Peço que me escutem atentamente pois o que tenho a informar é grave. A Ópera Flutuante está prestes a naufragar e não há botes para todos. Por favor, organizem-se em fila indiana – mulheres e crianças primeiro – e sigam as instruções da tripulação. A embarcação deverá soçobrar dentro de uma hora e meio mais ou menos, portanto ainda temos um bom tempo para acondicionar a todos (?) nos botes sem afobação.

Isso não aconteceu de fato, mas poderia ter acontecido. Por pouco A Ópera Flutuante - romance do americano John Barth com o qual eu vinha me digladiando havia duas semanas - não vai a pique. Nelson Rodrigues achava que não devíamos perder tempo tentando ler o maior número possível de livros. Para ele, só havia três ou quatro “livros totais”, aos quais devíamos nos ater durante toda nossa vida de leitor. Mas a realidade é que nos desgastamos com a leitura de romances “mais áridos que três desertos”, reféns de nossa insaciável curiosidade.

Agora que comecei a trabalhar, terei de diminuir meu ritmo de leitura, que já era lento, diga-se de passagem. Invejo essa gente que lê (ou afirma ler) uma grande quantidade de livros num curto período de tempo – sem contudo prejudicar sua vida social ou abrir mão de outras atividades como internet, cinema, esporte, caça ao tesouro etc. Como eu queria ser assim, multifuncional! Mas não dá. Se tento me dedicar a várias atividades simultaneamente, acabo entrando em parafusos. Espero conseguir ler dois, no máximo três livros por mês. Terei de ser mais seletivo, ir ao encontro dos “livros totais.” O que mais me preocupa é a escrita. Será que conseguirei produzir como antes? Se bem que já faz algum tempo que não crio nada que preste. Um conto aqui, um aforismo acolá. Ó Pai! Será o peso da menção honrosa?
***
Para encerrar, segue, em versão bilíngüe, um poema do peruano César Vallejo:

Intensidad y altura
Intensidade e Altura

Quiero escribir, pero me sale espuma,
Quero escrever, mas só me sai espuma,
quiero decir muchíssimo y me atollo;
quero dizer muitíssimo e me entulho;
no hay cifra hablada que no sea suma,
não há cifra falada sem ser suma
no hay pirámide escrita, sin cogollo.
nem pirâmide escrita, sem cogulho.

Quiero escribir, pero me siento puma;
Quero escrever, porém me sinto puma;
quiero laurearme, pero me encebollo.
quero a glória, e no entanto a mim me esbulho.
No hay toz hablada, que no llegue a bruma,
Não há tosse que nos fale sem ser bruma,
no hay dios ni hijo de dios, sin desarollo.
Não há deus nem seu filho, sem acúleo.

Vámonos, pues, por eso, a comer yerba,
Vamos, por isso, comer erva, sorva,
carne de llanto, fruta de gemido,
carne de pranto, fruta de gemido
nuestra alma melancólica en conserva.
a nossa alma em conserva sempre torva.

¡Vámonos! ¡Vámonos! Estoy herido;
Vamos agora porque estou ferido;
vámonos a beber lo ya bebido,
vamos beber o que já foi bebido,
vámonos, cuervo, a fecundar tu cuerva.
e vamos, corvo, fecundar a corva.

21/10/1937

(Tradução de Ivo Barroso)

terça-feira, 19 de maio de 2009

Índios (3)

Homens brancos que vivenciam a experiência de passar uma temporada numa aldeia indígena costumam ficar impressionados com o modo de vida dos nativos. Confrontados com uma cultura totalmente diversa da sua, eles têm a oportunidade de compará-las e pesar as “qualidades” e os “defeitos” de cada uma, por assim dizer. Não são poucos os casos de brancos – principalmente estudiosos – que, após mergulhar no cotidiano de tribos indígenas, emergem fascinados pelo sendo de organização e a simplicidade reinantes nessas sociedades. O jornalista Washington Novaes é um típico exemplo de intelectual que conhece a fundo a questão indígena brasileira. Há anos ele se dedica ao estudo sociológico dessas comunidades, tendo inclusive desfrutado do convívio de tribos indígenas amazônicas mais de uma vez. Seu fascínio e admiração pelo modo com que os nativos se organizam em grupo podem ser conferidos, entre vários outros registros, num pequeno documentário produzido pela TV Cultura, o qual pode ser visto em reprises esparsas nas madrugadas do canal. Nesse depoimento, Novaes ressalta o respeito que os índios têm pela natureza, sua política social equânime, que privilegia o trabalha em grupo e dá voz a todos os membros da aldeia, bem como seu desapego das coisas materiais. Os índios não são consumistas. Eles se contentam com o necessário - não há produção em escala no universo indígena. Assim não produzem lixo em excesso. Se os rios e as matas de onde o índio tira seu sustento estão ameaçados, não é por culpa sua, e sim da ambição e da irresponsabilidade (leia-se estupidez) do homem branco. Os índios têm muito a nos ensinar, Washington Novaes reitera várias vezes ao longo do documentário. Ao contrário do que acreditavam os colonizadores, os gentis estão longe de ser selvagens. Não precisa ser nenhum especialista em cultura indígena para deduzir que os verdadeiros merecedores desse epíteto somos nós.

domingo, 17 de maio de 2009

Índios (2)

O filósofo australiano Peter Singer ensina bioética na universidade americana de Princeton, Nova Jersey. Domingo passado, a Folha de S. Paulo publicou no caderno Mais! uma entrevista que Singer concedeu ao jornalista Sérgio Dávila, na qual falou sobre como o consumo de objetos de luxo pode contribuir para o aumento da pobreza no mundo. Crítico do consumismo irresponsável, Peter Singer acredita que a pessoa que compra um produto cuja venda irá beneficiar alguém ou alguma organização rica, ou que não tem problema de dinheiro, está contribuindo para o aumento da pobreza, uma vez que sua atitude não ajudará quem mais sofre com a falta de recursos. Questionado por Sérgio Dávila se ao efetuar uma compra qualquer o comprador não está ajudando a manter uma determinada quantidade de empregos, o filósofo respondeu que sim, o consumo de um modo geral é benéfico à sociedade, mas que se pudermos conjugar consumo com responsabilidade social estaremos de fato ajudando a construir uma sociedade mais igualitária, ao invés de apenas circunscrever a riqueza a uma pequena camada de privilegiados.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Índios (1)

Há exatos três anos uma série de atentados protagonizados por bandidos do PCC (Primeiro Comando da Capital, organização criminosa que, entre outras atribuições, "controla" os presídios do Estado) aterrorizou a população de São Paulo. Como o próprio governador do estado à época, Claudio Lembo, confirmou, era uma tragédia anunciada. De acordo com Lembo, a polícia tinha conhecimento de um plano articulado pelos criminosos para imprimir um “estado de sítio” na maior cidade do país por meio de ataques a delegacias de polícia, agências bancárias, ao sistema de transporte público, e a outras instituições importantes. Mesmo ciente da intenção do PCC, a Justiça concedeu a muitos presidiários bem comportados o direito de passar o Dia das Mães com a família, e a polícia paulista não conseguiu garantir a segurança da população. Os atentados, que tiveram início no dia 12 e se estenderam até o dia 20 de maio, resultaram em 496 mortos em todo o estado, entre militares e civis. No domingo 14, Dia das Mães, toda a mídia se mobilizou para cobrir o saldo dessa onda de destruição, e à noite telejornais e “revistas eletrônicas” como Fantástico e Domingo Espetacular noticiaram a angústia das mães que haviam perdido seus filhos justamente no dia dedicado a elas. Ao longo da semana pudemos acompanhar pelo noticiário todo o terror perpetrado pelos bandidos que houveram por bem não retornar à prisão na segunda-feira, como determinara a Justiça. Nos velórios de policiais militares e civis, a bandeira nacional e do Estado de São Paulo cobriam os caixões, e as saraivadas de tiros e o som fúnebre dos metais encobriam o choro dos parentes. Nos sepultamentos de cidadãos comuns, nada de tiros ou música para abafar o pranto dos familiares. Passados três anos, aproximadamente 60% dos casos de homicídio ainda não foram solucionados.

domingo, 10 de maio de 2009

Dez anos depois

É comum em entrevistas de emprego o recrutador perguntar ao candidato como ele se imagina dali a dez anos. Tal pergunta tem o propósito de aferir o grau de objetividade do candidato, e como ele se posiciona diante da vida. Falar bobagem nessa etapa é dar adeus à chance de emprego. E como ter certeza de que sua resposta é original, e que, mais importante de tudo, irá agradar ao entrevistador? Difícil saber.

Minhas respostas sempre foram vagas, não raro insinceras. Mas não por desonestidade de minha parte, e sim porque nunca soube ao certo o que queria (quero) para mim no futuro. Em garoto eu vivia dizendo que gostaria de ser engenheiro, o que enchia meu pai de orgulho e esperança. Engenheiro, o filho teria emprego garantido e em poucos anos ganharia muito mais dinheiro do que ele ganhara a vida toda. Contudo eu sequer sabia no que consistia a profissão de engenheiro, tampouco que existem vários campos de atuação para esse profissional. Minha disposição de me tornar um engenheiro provia do meu desejo de ser rico - mais rico que meu pai, o que não era difícil -, e naquela época eu só conhecia três tipos de pessoas que ganhavam dinheiro: médicos, engenheiros, e artistas. Como sempre fui facilmente impressionável, nunca cheguei a aventar a possibilidade de me tornar médico. Já meu “lado artístico” nunca foi muito desenvolvido, apesar de eu ser dramático por natureza e viver imitando cantores populares e não tão populares assim longe de olhares críticos e / ou reprovadores. É verdade que houve uma época em que quis ser pintor, outra que quis ser roteirista de HQ, e, mais recentemente, um período em que desejei – ardorosamente, diga-se -, ser cineasta. Tudo ponderado, tratei de me colocar no meu devido lugar. Eu andei pensando em suicídio. Melhor dizendo, em quanto o suicídio é contraproducente. Acho que só acredito no suicídio como “expressão artística”, ou algo que o valha.

Daí que eu sempre fui um ator medíocre. E um notívago de quinta categoria. Quase nunca cedo meu lugar no ônibus por vergonha e ruborizo ante uma mulher bonita. Dizem que não acredito em Deus por preguiça, mas não é verdade (?). Falam de minhas carências sem ter coragem de sondar minhas virtudes. No fundo, sou um romântico - no melhor sentido do termo, qual seja o de alguém que ama o belo e reconhece as mazelas do mundo sem jamais tirar os pés do chão. Sei lá. Eu queria ser poeta. Mais combativo. Cara-de-pau. Um compositor popular, como já comentei aqui outro dia. Escritor? Não sei. Quero tanto que tenho medo. E, como dizia Clarice Lispector, quem tem medo de escrever jamais escreverá algo que preste.

Nesta semana inicio uma nova fase na minha vida. Não, não vou sair por aí com mochila a tiracolo, sem lenço nem documento, saudoso da época em que ser hippie era a única maneira decente de levar a vida. Vou começar num emprego novo. Vou trabalhar com finanças, empréstimos, juros simples e compostos. Vou de esporte fino. E vou graças à generosidade de um amigo, que acreditou em mim e me deu esta oportunidade. Um amigo.

Tento me imaginar daqui a dez anos, debalde. Tento me imaginar escritor. Mas mal consigo vislumbrar o que me aguarda daqui a dez dias. O presente é tão grande, cantava o poeta. Não nos afastemos. Não nos afastemos muito. E, se possível, vamos de mãos dadas.

***

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Coisas que aprendemos andando de ônibus - Divagações

Não sei como é na sua cidade, mas aqui em Guaratinguetá cerca de 90% por cento da frota de ônibus possui televisão de bordo. E eu sou a favor da pena capital pro sujeito que teve essa idéia brilhante. Porque é simplesmente um suplício viajar com o som e as imagens atordoantes exibidas numa tela fixada no alto da parede que separa o banco do motorista do primeiro assento de passageiros. Se o volume fosse um pouco mais baixo e não ameaçasse gravemente meu sistema auditivo, talvez eu não me incomodasse tanto, e quem sabe até recebesse melhor as informações veiculadas ao longo da programação gerada especificamente para a empresa de transporte urbano que atua na cidade desde que eu me conheço por gente.

Hoje, por exemplo, o “canal do ônibus” informou que porções excessivas de chocolate podem ser fatais aos cachorros, pois que o chocolate possui uma substância (não me perguntem qual) nociva ao melhor amigo do homem. Os filhotes são os menos resistentes a essa substância, portanto devem ser totalmente privados do consumo de chocolate. No máximo, e se o dono achar mesmo necessário que seu cão desfrute vez ou outra desse doce tão popular entre os humanos, é tolerável um bombom dos pequenos, de menos de 50 gramas.

Outro fato de que tomei conhecimento foi que o governo pretende ampliar a fiscalização nos sítios em que se produz açaí. O motivo é o combate à contaminação da fruta pelo mosquito transmissor da doença de Chagas, para a qual ainda não existe cura. A doença de Chagas, como vocês devem saber, conduz a pessoa à morte em questão de anos e de maneira tenebrosa. O coração do doente incha de modo irreparável, e não há outra solução senão o transplante. Eu, que há coisa de dois anos sou um consumidor regular de açaí na tigela, fiquei assustadíssimo por saber que durante todo esse tempo estive exposto a tal perigo, e, na condição de hipocondríaco inveterado, já cogito suprimir essa (deliciosa) sobremesa da minha dieta, assim como fiz com o caldo-de-cana depois que foram noticiados casos de mortes de pessoas que beberam garapa de cana contaminada.

Definitivamente, o mundo não é um bom lugar.

domingo, 3 de maio de 2009

Ao vencedor, as batatas

"Em todo caso, havia um só tunel: escuro e solitátio - o meu."
Ernesto Sábato / O túnel

Quando eu era garoto, acreditava que tudo correria bem no futuro desde que eu seguisse os passos que traçava com base no que as pessoas me haviam dito que era bom, justo, promissor. Bastaria continuar a me dedicar aos estudos, a respeitar meus pais, e a me alimentar corretamente. Seguindo esta receita tão básica, o início da minha vida adulta seria tranqüilo, cheio mesmo dessa substância, desse hormônio tão almejado que chamam de felicidade. Eu me formaria numa boa faculdade, arranjaria um ótimo emprego, conheceria uma mulher incrível, e constituiria uma família exemplar num lar aconchegante, desses para o qual a gente tem vontade de voltar correndo depois de um longo e exaustivo dia de trabalho.

Desnecessário dizer que nada disso aconteceu. Minha "vida adulta", se é que ela já começou, é um verdadeiro desastre. Por que estou falando disso? Não estou chorando o leite derramado não - longe de mim! É que dois filmes que vi esta semana me fizeram refletir sobre minha condição, e sobre o quão ingênuo eu fui acreditando que, caso eu me engajasse num projeto de "vida feliz", tudo correria às mil maravilhas. A propósito, os filmes que suscitaram estas ponderações são Clamor do Sexo, do Elia Kazan, e Mundo Livre, do Ken Loach. Basicamente, a única coisa que têm em comum, além de serem ótimos filmes, é a desesperança, precedida de desespero, que assola as personagens - jovens que um dia acreditaram que seriam vitoriosos na vida profissional e no amor, dois dos aspectos mais relevantes na medição do grau de felicidade de uma pessoa - num dado momento de suas vidas.

É assustador (e ridículo também) pensar que, após ter amargado várias derrotas, passei a apostar as fichas que me restavam num único livro. Um livro do qual ora me orgulho, ora me envergonho. Algumas dezenas de páginas de alto teor autobiográfico, escritas ao longo de dois anos. Tão pouco que, quando segurei o maço de folhas da última versão do romance pela primeira vez, pensei que ele fosse se esfarelar nas minhas mãos. Eu sentia (e ainda sinto) o bafo ácido de deboche que muita gente me dirigia. E não tinham razão? O que um filho da classe trabalhadora tinha de se meter em literatura - arte praticada pela elite; ofício de gênios, loucos, veados, vagabundos? Por que não arruma emprego na indústria como o pai? Por que não age como todo jovem de bem e arranja um emprego qualquer? Mas eu procurei - e muito! - emprego. Acontece que fracassei. Não fui competente o bastante. Não me deram oportunidade. Não tive sorte. E os concursos públicos? Não tive êxito; não estudei o suficiente; não prestei os concursos certos. Nada de batatas para mim, portanto. A literatura? Todos nós sabemos que nunca deu dinheiro. Conta-se nos dedos os privilegiados que vivem disso; os beste-sellers. Imagine: um rapazinho tímido e esquisito do interior do estado de SP, metido a escritor, e que, pasmem!, esperava que a literatura pudesse lhe abrir portas, ao menos dar-lhe um meio de subsistência, devolver-lhe a dignidade perdida... Um ingênuo! Um idiota! Um desesperado, sobretudo.
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Impossível não lembrar de O Náufrago, estupendo romance de Tomaz Bernhard.