domingo, 19 de abril de 2009

Ursos panda não sofrem de insônia


O outono chegou em surdina e nos deixou a todos resfriados. Os ventos gelados de fim de tarde vieram a reboque. As xícaras de café não perduram fumegantes por muito tempo. Entre um parágrafo e outro, elas nos brindam com beijos mornos ou frios. Entre uma idéia mal acabada e outra. As pessoas vão tirando seus agasalhos do guarda-roupa, eles fedem a bolor e naftalina. Os meninos recolheram suas pipas, muitas delas jazem presas nos fios da rede elétrica, de manhã os pardais pousam nelas. No inverno a decadência é elegante. A moda dos decadentes. Cobertores velhos esquentam qual religião. Um bom livro e um bom amante. A televisão é sexo casual. Alta madrugada, canais estrangeiros exibem documentários sobre a vida selvagem. A vida amorosa dos panda gigantes chineses prende minha atenção. Violência e apreensão no contato sexual entre macho e fêmea, e o milagre prosaico que brota do ventre dela. O filhote nasce cego e pelado. Não difere muito de um filhote de rato. Difícil acreditar que em poucos meses se transmutará num belo e imponente panda adulto. A mãe o cria sozinha: o mantém rente a seu corpo peludo e aconchegante, lambe-o, amamenta-o. Quando ela sai da toca pra se alimentar de bambus silvestres, ele fica sozinho, à mercê dos predadores. Com cerca de três semanas, seu corpo já está todo coberto com uma pelagem bicolor: o branco e o preto característicos e bem distribuídos, o primeiro prevalecendo no tronco e na cabeça do animal, e o segundo cobrindo os membros, as orelhas e as inconfundíveis máscaras ao redor dos olhos. Ao dar pela ausência da mãe, o filhote abandona o confortável berço de folhas secas tramado por ela e engatinha vacilante por sobre as rochas, cabeceando e berrando desesperado como se pressentisse a aproximação de aves de rapina famintas. Não muito distante dali, a mãe ouve o clamor do filho e parte diligente de volta à toca. O reencontro é pleno de satisfação e alívio. Ela o pega ao colo e o embala serenamente com seus enormes braços sobrepostos, à semelhança de uma mãe humana. Em poucos minutos o filhote repousa tranqüilo e destemido no seguro leito materno. Há um hiato de meses e em seguida vemos o filhote já crescido, com pelo menos um terço do tamanho da mãe, aventurando-se nos arredores da toca e trepando nas árvores num arremedo do pai que não chegou a conhecer. O narrador do documentário tece suas considerações finais. A caça aos panda é punida com severidade, mas seu habitat natural está ameaçado pela intervenção humana. Que será de nós se não cuidarmos para que os panda sobrevivam? Quatro da manhã. Desligo a tevê, junto coberta, travesseiro, o livro negligenciado que depositarei sobre a cômoda, e vou pra cama. Que será do filhote de panda? Que será de mim? Tento pegar no sono, em vão.

***
Enquanto o inverno não chega:


6 comentários:

  1. porque passei por aqui

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  2. passei por ali, passei por lá e cheguei aqui.
    bom o líquido que sai do seu discurso.

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  3. Obrigado pela visita e pelos comentários, Dheyne.

    Adorei seu verso-elogio: "bom o líquido que sai do seu discurso."

    Você tem talento para a poesia.

    Abraço!

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  4. por nada, virei sempre, salvei aqui.
    é porque gostei.
    e thanks
    a noite está meio invertida hj, sofre de avessos,
    às vezes,
    não acha?

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  5. é preciso do pouco pra tirar um panda do toco do dia.
    like this:
    "Há um hiato de meses"

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  6. That's it, Dheyne. Nunca tinha pensado nisso: "a noite sofre de avessos." As noites desse começo de outono têm sido especiais: olho pro céu e não consigo acreditar que nosso planeta esteja em perigo, como apregoam os cientistas. (Mas está.)

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