Todos os garotos nos apaixonamos por ela, mas apenas Júlio ficou refém de uma paixão mais grave. Durante a última festa junina que minha mãe organizou no nosso bairro, em que L. e Júlio formaram um par, e na qual eu fui o noivo pela primeira e única vez, meu amigo aproveitou a queima de fogos para lançar um beijo à parceira e se declarar em seguida, no intuito de não dar margem a uma recusa. A princípio a investida deu certo, e os dois curtiram um namorico de não mais que três semanas. Júlio chorou muito quando L. lhe disse que não queria prosseguir com o namoro. Tentamos consolá-lo, debalde. O fato de ele tentar disciplinar L. com reprovações a determinados comportamentos seus - como o modo com que se postava em meio a um grupo de garotos, sempre gentil e sensual, embora nunca vulgar, o que muitos chimpanzés encaravam erroneamente como flerte – por certo contribuiu para o fim precoce do romance. L. não era garota que se contentasse com amarras.
Gostava de surpreender. Vivia em constante mutação. Sempre a dois ou três passos à frente do restante do grupo, no que tangia à maturidade. Foi uma das primeiras a arrumar emprego, num escritório contábil no centro da nossa cidade (quase) morta. Pouco a pouco nossa infância se dissolvia. Até que chegou o tempo em que nossos corpos já não cabiam mais naquele círculo riscado a giz em que plantávamos, sem ansiedade, nossas raízes. E então os membros da matilha se dispersaram.
L. se casou pouco depois da irmã do meio e antes da primogênita, para desespero desta. Mal tivemos tempo de felicita-la pela gravidez gemelar, pois seu casamento ocorreu às pressas e em surdina, como se a família desejasse purgar a vergonha de ter uma filha de dezessete anos grávida por meio do enlace matrimonial. Um anacronismo. Uma violência. Assim L. foi tirada de nós. Mudou-se para a casa dos pais do marido, um rapaz pouco mais velho que ela, filho dum microempresário. Passamos a vê-la muito raramente. Os gêmeos nasceram. L. mudou o visual, mas continuava bonita. Sempre que nos topávamos de passagem, era amável, encantadora. Veio o terceiro filho. Nossos encontros fortuitos tornaram-se cada vez mais esparsos. No supermercado, na fila do cinema, do pão. Da última vez, estava de cabelo curto. Saía de um restaurante com o marido, trazia o filho caçula ao colo, o casal de gêmeos de mãos dadas com o pai.
Ontem eu soube por meu irmão do meio que L. morreu na última segunda-feira. Há meses se tratava de uma leucemia. Quando a vi de cabelo curto no passeio familiar, não imaginava que ela vivia as implacáveis conseqüências do câncer. Mesmo morando numa cidade pequena, nem sempre as notícias importantes chegam até nós a tempo. Rodrigo, Júlio, Cecília, Amanda... Não sei quantos de nós sabiam da doença de L. Para mim foi um choque. Severo. L. era um ano mais jovem do que eu. Estava no auge da juventude. De repente, eclode a doença fatal. Que conclusões tirar disso? Não sei. Apenas lamento muito sua morte. Muito mesmo. Não merecia. Não merecemos. Mas vida e morte não são mera questão de merecimento. Vive-se e morre-se, ponto.
Pego o velho caderninho de bolso e, ao folheá-lo, descubro que o bichano desenhado por L. continua lá, a lamber a patinha dianteira.
Querida L., nós te amamos.
Gostava de surpreender. Vivia em constante mutação. Sempre a dois ou três passos à frente do restante do grupo, no que tangia à maturidade. Foi uma das primeiras a arrumar emprego, num escritório contábil no centro da nossa cidade (quase) morta. Pouco a pouco nossa infância se dissolvia. Até que chegou o tempo em que nossos corpos já não cabiam mais naquele círculo riscado a giz em que plantávamos, sem ansiedade, nossas raízes. E então os membros da matilha se dispersaram.
L. se casou pouco depois da irmã do meio e antes da primogênita, para desespero desta. Mal tivemos tempo de felicita-la pela gravidez gemelar, pois seu casamento ocorreu às pressas e em surdina, como se a família desejasse purgar a vergonha de ter uma filha de dezessete anos grávida por meio do enlace matrimonial. Um anacronismo. Uma violência. Assim L. foi tirada de nós. Mudou-se para a casa dos pais do marido, um rapaz pouco mais velho que ela, filho dum microempresário. Passamos a vê-la muito raramente. Os gêmeos nasceram. L. mudou o visual, mas continuava bonita. Sempre que nos topávamos de passagem, era amável, encantadora. Veio o terceiro filho. Nossos encontros fortuitos tornaram-se cada vez mais esparsos. No supermercado, na fila do cinema, do pão. Da última vez, estava de cabelo curto. Saía de um restaurante com o marido, trazia o filho caçula ao colo, o casal de gêmeos de mãos dadas com o pai.
Ontem eu soube por meu irmão do meio que L. morreu na última segunda-feira. Há meses se tratava de uma leucemia. Quando a vi de cabelo curto no passeio familiar, não imaginava que ela vivia as implacáveis conseqüências do câncer. Mesmo morando numa cidade pequena, nem sempre as notícias importantes chegam até nós a tempo. Rodrigo, Júlio, Cecília, Amanda... Não sei quantos de nós sabiam da doença de L. Para mim foi um choque. Severo. L. era um ano mais jovem do que eu. Estava no auge da juventude. De repente, eclode a doença fatal. Que conclusões tirar disso? Não sei. Apenas lamento muito sua morte. Muito mesmo. Não merecia. Não merecemos. Mas vida e morte não são mera questão de merecimento. Vive-se e morre-se, ponto.
Pego o velho caderninho de bolso e, ao folheá-lo, descubro que o bichano desenhado por L. continua lá, a lamber a patinha dianteira.
Querida L., nós te amamos.
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