quinta-feira, 30 de abril de 2009

Elas por eles: dois trechos

Mas então de repente aconteceu uma coisa estranha.

Eu estava a tal ponto acostumado a pensar e a fantasiar tudo como nos livros e a imaginar que tudo no mundo era igual ao que eu antes havia criado nos meus sonhos, que nem entendi de imediato aquela coisa estranha. O fato foi o seguinte: Liza, que eu havia humilhado e esmagado, compreendeu muito mais do que eu poderia imaginar. De tudo a que assistira, ela compreendeu aquilo que as mulheres sempre compreendem quando amam com sinceridade: ela percebeu que eu era infeliz.

(Fiódor Dostiévski / Notas do Subsolo – L&PM, 2008, tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares).

***
Também o nosso conhecimento sobre Cecília continuou crescendo depois da morte, com a mesma surpreendente persistência. Embora ela raramente falasse e não tivesse tido amigos de verdade, todos tinham sua própria, vívida, lembrança de Cecília. Alguns de nós a tinham segurado no colo por cinco minutos, ainda bebê, enquanto a Sra Lisbon ia até em casa buscar a bolsa. Outros haviam brincado com ela na caixa de areia do jardim-de-infância, brigando por uma pazinha, ou tinham se exibido para ela atrás da amoreira que crescia como carne deformada por dentro dos argolões da cerca. Tínhamos ficado com ela na fila da vacina contra varíola, e mantido com ela, debaixo da língua, torrões de açúcar antipólio. Tínhamos lhe ensinado a pular corda e a queimar cobras, tínhamos impedido várias vezes que arrancasse as cascas de suas feridas, e tínhamos lhe avisado para não encostar a boca no bebedouro de Three Mile Park. Só alguns de nós tinham se apaixonado por ela, mas em segredo, sabendo que era a mais estranha das irmãs.

(Jeffrey Eugenides, As Virgens Suicidas – Rocco / L&PM, 2008, tradução de Marina Colasanti).

quarta-feira, 29 de abril de 2009

A humanidade segundo Bernardo Soares

Não posso considerar a humanidade senão como uma das últimas escolas da pintura decorativa da Natureza.

(Fernando Pessoa / Livro do Desassossego)

domingo, 26 de abril de 2009

Um chimpanzé no Twitter II

Blogar no domingo / é a tarefa mais vã / entanto blogamos / cedendo ao afã
Eu, parodiando (mal e porcamente) Ele.

aproximadamente 1 hora ago from web

Televisão: quem foi que chegou à conclusão de que nós gostamos de documentários sobre o mundo animal nas noites de domingo?

aproximadamente 2 horas ago from web

Ontem revi Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter. Mistura soberba de horror e ficção científica, com Kurt Russel em grande estilo, e música de Ennio Morricone.

aproximadamente 2 horas ago from web

Não bastasse o abalo provocado pela crise econômica, eis que eclode essa tal gripe suína. Que Deus, Buda, Alá, e todos as outras divindades nos protejam!

aproximadamente 3 horas ago from web

sábado, 25 de abril de 2009

Relendo velhos cadernos

Escarafunchando a gaveta da escrivaninha à cata de um cartão com o telefone de um amigo, encontro antigos caderninhos de apontamentos do tempo em que eu era um “escritor sério” que não deixava nenhuma idéia escapar, por menos auspiciosa que ela fosse. Há tempos me tornei um escritor relapso que vive fugindo ao trabalho, alegando falta de inspiração, essa quimera na qual a gente sem talento vive se fiando. Não sei quantos meses faz que não concluo um conto ou um capítulo de romance que preste. Tenho relido amiúde meus contos e pedaços de ficções antigas, principalmente o mais que citado Paroxetina, este elefante branco ao qual não sei que destino dar. Não raro topo com citações anotadas há anos, algumas muito interessantes e justificáveis, outras que denotam o garotinho perdido que eu já fui e que, em certa medida, ainda continuo sendo.

Minhas cadernetas são as mais vagabundas possíveis; nada de moleskine ou obviedades semelhantes; sempre usei brochuras da credeal que não custam mais que R$ 2,00 e podem ser adquiridas em qualquer birosca. Nunca tive letra bonita nem fui caprichoso. Também nunca zelei pela ordem ou por uma “metodologia de pesquisa” pré-definida. Esses caderninhos estão repletos de rascunhos, citações, telefones, endereços, anotações de aulas, e vários outros escritos misturados. É estranho folheá-los e encontrar minutas de contos e do meu único romance concluído. Dá uma certa satisfação saber que aqueles embriões se converteram em textos literários completos e legíveis. A sensação de ter concluído alguma coisa é muito boa. Mas para cada “embrião ficcional” que rendeu peças literárias inteiras há pelo menos outros dez que não deram em nada. O que menos se aproveitou foram os versos. Ainda bem que tive discernimento suficiente para abortar aqueles poemas tenebrosos. E pensar que cheguei a ser elogiado como poeta por muita gente leiga e amiga. Um conselho: não se deve submeter obras de arte à apreciação crítica de amigos; o parecer nunca será 100% honesto.

A seguir, uma citação de João Antônio extraída da ótima coletânea de perfis do escritor /jornalista / crítico literário José Castello, Inventário das Sombras:

Em matéria de coisas humanas, não devemos temer os exageros nem as imperfeições, pois eles são por fim o que sobra do homem.

Gosto bastante da obra do João Antônio. Tenho dois dos seus principais livros: Malagueta, perus e bacanaço, e Abraçado ao meu rancor – ambos comprados em sebos.

Por ora é só. Mas pretendo voltar a esse assunto mais tarde. Preciso comer alguma coisa. Nem só de café vive o homem.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Um chimpanzé no Twitter

(Ensaios)

Não vou abrir um twitter pra dizer que não saí do buraco / pra dizer que não saí do buraco não vou abrir um twitter
aproximadamente 2 horas ago from web

Poema Brasileiro: No Piauí / de cada 100 crianças que nascem / 78 morrem antes de completar 8 anos de idade
aproximadamente 4 horas ago from web

No Piauí / de cada 100 crianças que nascem / 78 morrem antes de completar 8 anos de idade
aproximadamente 4 horas ago from web

No Piauí / de cada 100 crianças / que nascem / 78 morrem / antes / de completar / 8 anos de idade
aproximadamente 4 horas ago from web

antes de completar 8 anos de idade / antes de completar 8 anos de idade / antes de completar 8 anos de idade / antes de completar 8 anos de idade (Ferreira Gullar, 1962)
aproximadamente 4 horas ago from web

No twitter, todos os gatos são pardos.
aproximadamente 5 horas ago from web

domingo, 19 de abril de 2009

Ursos panda não sofrem de insônia


O outono chegou em surdina e nos deixou a todos resfriados. Os ventos gelados de fim de tarde vieram a reboque. As xícaras de café não perduram fumegantes por muito tempo. Entre um parágrafo e outro, elas nos brindam com beijos mornos ou frios. Entre uma idéia mal acabada e outra. As pessoas vão tirando seus agasalhos do guarda-roupa, eles fedem a bolor e naftalina. Os meninos recolheram suas pipas, muitas delas jazem presas nos fios da rede elétrica, de manhã os pardais pousam nelas. No inverno a decadência é elegante. A moda dos decadentes. Cobertores velhos esquentam qual religião. Um bom livro e um bom amante. A televisão é sexo casual. Alta madrugada, canais estrangeiros exibem documentários sobre a vida selvagem. A vida amorosa dos panda gigantes chineses prende minha atenção. Violência e apreensão no contato sexual entre macho e fêmea, e o milagre prosaico que brota do ventre dela. O filhote nasce cego e pelado. Não difere muito de um filhote de rato. Difícil acreditar que em poucos meses se transmutará num belo e imponente panda adulto. A mãe o cria sozinha: o mantém rente a seu corpo peludo e aconchegante, lambe-o, amamenta-o. Quando ela sai da toca pra se alimentar de bambus silvestres, ele fica sozinho, à mercê dos predadores. Com cerca de três semanas, seu corpo já está todo coberto com uma pelagem bicolor: o branco e o preto característicos e bem distribuídos, o primeiro prevalecendo no tronco e na cabeça do animal, e o segundo cobrindo os membros, as orelhas e as inconfundíveis máscaras ao redor dos olhos. Ao dar pela ausência da mãe, o filhote abandona o confortável berço de folhas secas tramado por ela e engatinha vacilante por sobre as rochas, cabeceando e berrando desesperado como se pressentisse a aproximação de aves de rapina famintas. Não muito distante dali, a mãe ouve o clamor do filho e parte diligente de volta à toca. O reencontro é pleno de satisfação e alívio. Ela o pega ao colo e o embala serenamente com seus enormes braços sobrepostos, à semelhança de uma mãe humana. Em poucos minutos o filhote repousa tranqüilo e destemido no seguro leito materno. Há um hiato de meses e em seguida vemos o filhote já crescido, com pelo menos um terço do tamanho da mãe, aventurando-se nos arredores da toca e trepando nas árvores num arremedo do pai que não chegou a conhecer. O narrador do documentário tece suas considerações finais. A caça aos panda é punida com severidade, mas seu habitat natural está ameaçado pela intervenção humana. Que será de nós se não cuidarmos para que os panda sobrevivam? Quatro da manhã. Desligo a tevê, junto coberta, travesseiro, o livro negligenciado que depositarei sobre a cômoda, e vou pra cama. Que será do filhote de panda? Que será de mim? Tento pegar no sono, em vão.

***
Enquanto o inverno não chega:


quarta-feira, 15 de abril de 2009

Um agradecimento

Olá,

fui um dos finalistas do
Prêmio Sesc de Literatura 2008 na categoria romance, com o livro Paroxetina ou Crônicas de um Ansioso Crônico, pelo qual recebi menção honrosa da comissão julgadora.

Semana passada, chegaram pelo correio o certificado do Sesc e as obras vencedoras de 2007.

Gostaria de agradecer a organização do Prêmio, além de parabenizar a todos pela seriedade e competência com que o concurso é tocado.

Também gostaria de cumprimentar a comissão julgadora pela lisura no processo de avaliação dos livros, e em particular por reconhecer as qualidades (e as limitações) do meu romance. Ainda que eu não tenha alcançado meu objetivo maior, que era vencer o concurso, estou muito satisfeito e lisonjeado com o reconhecimento dos ilustres julgadores.

Espero, num futuro próximo, poder lançar meu livro por uma editora. Desejo a mesma sorte aos demais finalistas. E acredito que a chancela do Prêmio será importante para alcançar meu intento.

Grato,

Bruno Machado de Oliveira.

P.s.- texto enviado hoje ao Departamento Nacional do Serviço Social do Comércio (SESC) por meio do Fale Conosco disponível no site da instituição.

domingo, 12 de abril de 2009

Questão de opiniães

Ontem, a Folha de S. Paulo publicou, no cada dia mais magro caderno Ilustrada, uma resenha de O Culto do Amador, livro em que o americano Andrew Keen critica, entre outros aspectos, a miríade de opiniões lançada cotidianamente na internet por todo tipo de gente. A resenha foi escrita pelo jornalista português João Pereira Coutinho, que avaliou a obra como regular. Segundo Coutinho, os ataques de Keen à imoralidade e à irracionalidade contidas na web são tão justificáveis quanto primários. A ojeriza a novas tecnologias sempre foi comum à parte da sociedade. Várias outras inovações sofreram certo tipo de resistência por parte de pessoas que as julgavam maléficas. E isso continua a ocorrer. O suposto perigo da má utilização da internet é apenas mais um capítulo desta história.

A principal crítica feita por Andrew Keen, um ex-executivo do Vale do Silício, é em relação à qualidade das opiniões enunciadas por amadores na rede. Para ele, as informações veiculadas por gente desqualificada tornam a internet um verdadeiro criadouro de imbecis. O fato de a web ser a mais fácil e prática fonte de informação contemporânea preocupa Keen, que acredita que sites como o Wikipédia contribuem para o fomento à ignorância de estudantes do mundo todo. O amadorismo corrente em blogs e comunidades de sites de relacionamento seria um insulto ao conhecimento acadêmico dos livros e dos manuais.

Como “representante” dos aventureiros que ousam publicar opiniões e outros tipos de escritos na rede, tendo a concordar mais com a análise de Pereira Coutinho do com a de Keen. Não acho que a possibilidade de qualquer pessoa divulgar suas idéias na internet seja ruim, por piores que sejam essas idéias. Ainda que o espaço virtual possa servir a usuários mal-intencionados, não creio que isso seja motivo suficiente para que se crie um órgão regulador ou coisa que o valha. As instituições e os mecanismos oficiais de defesa a que o internauta pode recorrer são suficientes, o que faltam são leis que estabeleçam penas severas a aliciadores de menores, estelionatários, e outras classes de bandidos que atuam no universo on-line.

Parafraseando parte da resenha de Pereira Coutinho, o que as autoridades competentes devem prover é educação pública de qualidade para que todo estudante, ao utilizar a internet para pesquisa, tenha capacidade de separar o joio do trigo. O resto é lero-lero.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Gabo é fã de Nelson Ned

Esta semana o Jornal da Globo exibiu duas reportagens sobre a aposentadoria de Gabriel Garcia Márquez. A primeira foi ao ar na quarta-feira e se restringiu a uma notinha sobre o fato de o célebre escritor colombiano, autor de clássicos como Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera, ter feito saber ao mundo, por meio de um agente, que deixará de escrever. A segunda - espécie de mea-culpa em relação à primeira, uma reportagem pobre demais até para os padrões televisivos - foi exibida na quinta, e contou com um breve perfil de Gabo, como ele é conhecido entre os amigos, além de exaltar o prêmio Nobel recebido por ele em 1982. Embora um pouco mais elaborada que a primeira, esta última matéria não conseguiu desfazer a impressão de que a notícia era irrelevante – não obstante a popularidade do escritor.

A meu ver, a única informação realmente importante dada pelo telejornal foi que Garcia Márquez, também conhecido por seus gostos exóticos (sic), é fã de carteirinha do cantor brasileiro Nelson Ned. Taí, gostei. Eu não sabia. Não sou fã de Garcia Márquez nem de Nelson Ned, embora admire alguns livros do primeiro e respeite a trajetória do segundo. E meu respeito por Nelson Ned advém do fato de ele ser um homem que venceu exclusivamente pelo talento. Ou alguém acha que o cara é só um rostinho bonito? Nós, os feios, os desajustados, os desempregados, os misantropos, os ansiosos crônicos, os escritores não publicados, cineastas sem filmes, pintores sem tela, os amantes do inútil, enfim, toda essa fauna de marginais e marginalizados, regozijamos quando uma criatura da nossa estirpe vence pelo talento. Nós temos orgasmos múltiplos. (Eu tenho!)

Por exemplo, quando vejo um ator / atriz (ou qualquer outro artista) fazer sucesso única e exclusivamente em razão da sua capacidade, fico felicíssimo. Significa que a pessoa chegou lá por suas qualidades realmente importantes. Não foi porque era linda, ou porque pertencia a uma classe de privilegiados qualquer, mas porque seu talento era indiscutível. Há inúmeros exemplos de gente assim. Vou citar um: Woody Allen. Goste-se ou não da obra dele, há que se reconhecer que ele se tornou um artista mundialmente respeitado por ser multitalentoso. Aliás, o tipo esquisitão que o diretor criou no cinema pode ser considerado uma figura icônica do mundo freak. Desde que seu personagem desajustado porém safo surgiu (salvo engano) no filme Bananas (1971), nós acompanhamos, filme após filme, suas desventuras e o modo como, ao final, ele sempre se dá bem. Basta listar a quantidade de mulheres lindas e inteligentes que foram suas amantes. De passagem, listo Mia Farrow, Diane Keaton, Julia Roberts, Mira Sorvino, Charlize Theron, entre outras. E o mais interessante é que, para se dar bem, por assim dizer, o tipo atrapalhado de Woody Allen nunca faz concessões: segue fiel a seu estilo, e cativa as mulheres por isso.

No filme Fatal (2008), baseado no romance O Animal Agonizante, de Philip Roth, a certa altura o personagem principal, um professor universitário (Ben Kingsley) na casa dos sessenta que tem um caso com uma aluna trinta anos mais jovem (Penélope Cruz), diz mais ou menos o seguinte: Quando fazemos amor com uma mulher, é como se nos vingássemos da morte. Inspirado nesta frase, eu diria que, quando uma pessoa “fora dos padrões” conquista um lugar de destaque, todos os freaks se vingam da vida.

P.S. - este texto também pode ser lido no ímpar-par americano, bloguinho que criei para publicar alguns comentários, rascunhos de ficções, cartas abertas, mensagens engarrafadas - enfim, nada muito distinto deste sítio; o que os difere é o fato de seus layouts serem diferentes: o ímpar-par, por exemplo, possui fundo branco.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Réquiem para uma amiga (II)

Todos os garotos nos apaixonamos por ela, mas apenas Júlio ficou refém de uma paixão mais grave. Durante a última festa junina que minha mãe organizou no nosso bairro, em que L. e Júlio formaram um par, e na qual eu fui o noivo pela primeira e única vez, meu amigo aproveitou a queima de fogos para lançar um beijo à parceira e se declarar em seguida, no intuito de não dar margem a uma recusa. A princípio a investida deu certo, e os dois curtiram um namorico de não mais que três semanas. Júlio chorou muito quando L. lhe disse que não queria prosseguir com o namoro. Tentamos consolá-lo, debalde. O fato de ele tentar disciplinar L. com reprovações a determinados comportamentos seus - como o modo com que se postava em meio a um grupo de garotos, sempre gentil e sensual, embora nunca vulgar, o que muitos chimpanzés encaravam erroneamente como flerte – por certo contribuiu para o fim precoce do romance. L. não era garota que se contentasse com amarras.

Gostava de surpreender. Vivia em constante mutação. Sempre a dois ou três passos à frente do restante do grupo, no que tangia à maturidade. Foi uma das primeiras a arrumar emprego, num escritório contábil no centro da nossa cidade (quase) morta. Pouco a pouco nossa infância se dissolvia. Até que chegou o tempo em que nossos corpos já não cabiam mais naquele círculo riscado a giz em que plantávamos, sem ansiedade, nossas raízes. E então os membros da matilha se dispersaram.

L. se casou pouco depois da irmã do meio e antes da primogênita, para desespero desta. Mal tivemos tempo de felicita-la pela gravidez gemelar, pois seu casamento ocorreu às pressas e em surdina, como se a família desejasse purgar a vergonha de ter uma filha de dezessete anos grávida por meio do enlace matrimonial. Um anacronismo. Uma violência. Assim L. foi tirada de nós. Mudou-se para a casa dos pais do marido, um rapaz pouco mais velho que ela, filho dum microempresário. Passamos a vê-la muito raramente. Os gêmeos nasceram. L. mudou o visual, mas continuava bonita. Sempre que nos topávamos de passagem, era amável, encantadora. Veio o terceiro filho. Nossos encontros fortuitos tornaram-se cada vez mais esparsos. No supermercado, na fila do cinema, do pão. Da última vez, estava de cabelo curto. Saía de um restaurante com o marido, trazia o filho caçula ao colo, o casal de gêmeos de mãos dadas com o pai.

Ontem eu soube por meu irmão do meio que L. morreu na última segunda-feira. Há meses se tratava de uma leucemia. Quando a vi de cabelo curto no passeio familiar, não imaginava que ela vivia as implacáveis conseqüências do câncer. Mesmo morando numa cidade pequena, nem sempre as notícias importantes chegam até nós a tempo. Rodrigo, Júlio, Cecília, Amanda... Não sei quantos de nós sabiam da doença de L. Para mim foi um choque. Severo. L. era um ano mais jovem do que eu. Estava no auge da juventude. De repente, eclode a doença fatal. Que conclusões tirar disso? Não sei. Apenas lamento muito sua morte. Muito mesmo. Não merecia. Não merecemos. Mas vida e morte não são mera questão de merecimento. Vive-se e morre-se, ponto.

Pego o velho caderninho de bolso e, ao folheá-lo, descubro que o bichano desenhado por L. continua lá, a lamber a patinha dianteira.

Querida L., nós te amamos.

domingo, 5 de abril de 2009

Réquiem para uma amiga (I)

Quando L. se mudou para nossa rua, não fazíamos idéia do quanto sua chegada mudaria nossas vidas. Era a mais nova de três irmãs, e, ponto pacífico entre os garotos da rua, a mais bonita. Os cabelos e os olhos de um negror intenso contrastavam belamente com a pele bem clara, leitosa. Sua voz era de uma suavidade aguda, nunca irritante; podíamos passar horas ouvindo-a falar. E sobre o que nos falava? Do lugar de onde viera, dos amigos que deixara, das esperanças que nutria a respeito do novo lar... De que mais falaria, ora? Ah, claro que insistíamos para que falasse dos namoros, mas ela sempre tergiversava. Nunca foi grosseira, contudo – muito embora uns tenham feito por merecer em determinados momentos.

Não demorou muito até que se afeiçoasse ao pessoal e se entrosasse de maneira surpreendente: uma capacidade notória dos simpáticos. Amanda e Cecília, que antes reinavam soberanas como fêmeas alfa da patota, se morderam de ciúmes, mas logo se renderam à simpatia de L. Esta se revelou habilidosa no voleibol; como muitas baixinhas, era exímia levantadora. Praticávamos na quadra de areia do clube dos operários, sempre nos finais de semana. Nas férias escolares, não havia dia ruim para nós. Pegávamos nossas bicicletas e seguíamos destemidos até o clube mais popular da cidade, o único cuja mensalidade nossos pais podiam pagar. Lembro que, apesar de muito simpática, era um pouco tímida. Quanto? Menos do que eu e mais do que Rodrigo, por exemplo. Nunca chegamos a vê-la de biquíni. Sempre tinha uma desculpa para não nos acompanhar à piscina. Uma vez fiz companhia a ela: sentados num banco de concreto do jardim que circundava a piscina mais funda, de onde nossos amigos tiravam sarro de nossa cara, caretas e piadinhas de vários tipos, mergulhos acrobáticos em nossa homenagem - era uma maneira de demonstrarem o quanto estávamos perdendo ao ficarmos debaixo daquela sombra rala de uma árvore mirrada em plena canícula, enquanto todo um mundo de sensações aquáticas nos aguardava a não mais de cinco metros do lugar onde estávamos. Esse dia ela me pegou rascunhando um conto num dos cadernos de bolso que eu carregava comigo a todos os cantos. Não foi nada fácil explicar o que eu tanto escrevia com minha letrinha miúda e desgovernada nas páginas anãs do caderninho. Ela pediu pra fazer um desenho. Passei o caderno pras suas mãos pequenas e massudas e dentro de instantes ela mo devolveu com o desenho de um gatinho de bigode espicaçado que lambia a pata esquerda dianteira. Você desenha bem, eu disse. Porque eu gosto, respondeu. Disse que um de seus maiores prazeres era ilustrar o diário secreto que mantinha desde os nove anos, e ao qual só a mãe tinha acesso em ocasiões que ela julgava oportunas. Na sua festa de aniversário de quinze anos, todos pudemos conhecer esse diário, já que ela pediu a cada um dos convidados que deixassem uma mensagem com alvíssaras para os próximos três qüinqüênios. Tento recordar o teor da mensagem que lhe compus mas é inútil. Decerto fiz votos de felicidade e sucesso, além de firmar a convicção de que desejava sua amizade para sempre.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Animais de estimação e de consumo

Os vegetarianos que me perdoem, mas carne é fundamental, ao menos na geladeira aqui de casa. E, nesses tempos politicamente corretos, de mudanças de valores prementes, de repensarmos nossa conduta de vida etc., sinto certa vergonha ao confessar que, pelo menos num futuro próximo, não me vejo parando de comer "animais mortos", como os vegetarianos radicais gostam de se referir às carnes que os humanos consumimos - sempre com o nobre propósito de nos chocar (e insultar).

Semana passada, assisti a um documentário americano chamado I Am An Animal, que relata a trajetória política de Ingrid Newkirk, co-fundadora do PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), uma das mais importantes ONGs de combate aos maus tratos a animais no mundo todo. O PETA é a mais respeitável e temida dessas instituições, tanto por sua influência política quanto por suas manifestações de protesto, que envolvem desde ordeiras passeatas até pichações e depredações a butiques de luxo que vendem casacos de pele, bolsas, e outros produtos de origem suspeita.

Ingrid e seus pares contam com o apoio de várias personalidades americanas, bem como de algumas empresas e grifes como a Calvin Klein, que parou de utilizar materiais de origem animal na composição de suas roupas após sofrer forte pressão do PETA. Um dos métodos mais eficazes de persuasão utilizados pelos ativistas do PETA é a divulgação de vídeos em que animais aparecem sofrendo variados tipos de violência, muitas vezes gratuita. Para registrar esses flagrantes, a organização recruta jovens interessados em defender a causa e os envia a matadouros, criadouros e estabelecimentos correlatos, com a missão de documentar os maus tratos cometidos contra os animais.

Desnecessário dizer que as cenas contidas nesses vídeos são brutais, de revirar o estômago. Elas nos fazem repensar nossa postura de "carnívoros impedernidos", além de suscitarem um importante debate quanto à maneira que nós, os seres humanos, nos relacionamos com os animais de um modo geral. Tratar cães de estimação como iguais e trucidar aves e mamíferos para nossa subsistência é uma atitude correta? Comer um x-burguer ou se fartar numa churrascaria qualquer é compactuar com o sofrimento impingido aos bovinos nos matadouros?

Essas e outras questões espinhosas precisam ser debatidas. Escritores importantes como o Nobel sul-africano J.M. Coetzee, um notório defensor dos direitos dos animais, têm escrito ensaios e até romances em que o assunto é debatido sem qualquer forma de proselitismo. O próprio Coetzee talvel seja o romancista que trata de maneira mais elegante e contundente do tema em suas obras.

No Brasil, pelo que eu saiba, há alguns poucos escritores que tratam do assunto. Um deles é o carioca Rubens Figueiredo, autor do romance Barco a seco, do qual extraí o seguinte trecho:

Era o seu animal de estimação. E, na verdade, como não ter estima por quem obedece imediatamente aos nossos gritos e se curva com presteza às nossas repreensões e ameaças? Como não ter amor por quem podemos amarrar pelo pescoço e prender numa coleira e arrastar aonde bem quisermos, à força de puxões e pancadas educativas? Alguém que podemos trancar num minúsculo banheiro durante a noite e obrigar que fique em silêncio. Como não trazer no coração uma criatura a quem podemos, caso isso nos incomode, cortar um aparte do rabo e das orelhas, injetar hormônios, castrar, secar os testículos, ou retirar o ovário ou o útero inteiro, e com toda razão nos julgarmos, por isso mesmo. Como não prezar como um verdadeiro ser humano alguém que depois de tudo isso nos adora cegamente, geme de alegria atrás da porta quando ouve nossa chave tilintar e corre contente para lamber nossos pés quando chegamos da rua?