domingo, 7 de fevereiro de 2010

Contos embrionários I

Vocês não me são estranhos

As carrancas virtuais dos meus amigos não me assustam. O silêncio pesado dos meus seguidores desconhecidos também não. Temer semelhantes coisas está além de minha capacidade. A promiscuidade reinante nas redes de relacionamento me causa no máximo estranheza. Tudo o que omito dos meus “amigos virtuais” me agride – sinto-me um grande cretino quando deixo de compartilhar um aspecto qualquer de minha intimidade com os demais integrantes da rede. Tenho um prazer sádico em não responder a e-mails e ignorar comentários dos que me seguem e de quem eu sigo. Demoro a confirmar a amizade a quem me adiciona como amigo só pela satisfação de saber que causo ansiedade e desconforto ao solicitante. A mitomania é minha maior bandeira on-line. E o efeito mais nocivo dessa minha inclinação irrefreável à mentira é a desconfiança gerada por cada asserção legítima que solto na web - o que me aborrece e diverte ao mesmo tempo. O exemplo mais recente desse tipo de qüiproquó aconteceu há cerca de três ou quatro meses quando, num acesso incomum de sinceridade, relatei de maneira sucinta um acontecimento extraordinário que acabara de se dar comigo. Enquanto tomava meu segundo banho do dia – pois tomo dois banhos diários invariavelmente, um pela manhã, e outro quando chego do trabalho, ali pelas sete da noite – descobri, ao massagear meu coro cabeludo coalhado de xampu condicionante com ambas as mãos, a fim de produzir espuma em abundância, uma pequena protuberância bem no topo da minha cabeçorra ovalada. Palpei a região saliente durante um bocado de tempo, e tudo teria sido facilmente esquecido caso eu não tivesse experimentado uma ligeira dor aguda a cada vez que pressionava com um pouco mais de força o calombo. Do chuveiro mesmo gritei minha mulher, que demorou alguns minutos a vir em meu socorro porque estava ocupada com a correção de uma penca de trabalhos escolares. Ela é professora primária. Tão logo notou um elevado grau de desespero em meu chamado, minha esposa abandonou sua tarefa e invadiu o banheiro como um agente de polícia invade um cativeiro. Acompanhei aflito sua silhueta embaçada aproximar-se através da parede do box. Com as mãos entrelaçadas, eu formava uma cuia protetora sobre a cabeça como se desejasse guarnecer a moleira que se tinha fechado definitivamente havia quase quarenta anos. Minha mulher praticamente pulou sobre mim, decerto por ter pensado que os anos de sedentarismo e má alimentação finalmente tivessem resultado num grave enfarte. Contudo tratei de tranqüiliza-la e, sem lhe dar chances de elaborar qualquer tipo de pergunta, peguei sua mão direita e a coloquei sobre a parte abaulada da minha cabeça. O que é que tem isso?, ela perguntou, visivelmente irritada, mas não demasiado, de vez que conhecia meu pendor para a hipocondria desde nosso tempo de namoro. Dói, eu disse, e pressionei sua mão, que não chegava à metade do tamanho da minha, contra a região sensível, no intuito ilógico de lhe fazer experimentar a dor lancinante que eu sentia toda vez que repetia aquele gesto. Quase me mata de susto, baixou o tom de voz, recolhendo a mão examinadora até o peito galopante. Não era nada, repetia ela, enquanto eu insistia na hipótese de uma hérnia craniana, um traumatismo, ou uma outra anomalia qualquer. E se não consegui convencê-la de que algo maligno eclodira no alto da minha cabeça, ao menos lhe propiciei um prazer infantil traduzido numa longa e estridente gargalhada que só arrefeceu depois que iniciamos ali mesmo, no chuveiro, uma maratona de carícias cuja intensidade só havíamos experimentado em nossas primeiras manobras amorosas.

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