sábado, 1 de agosto de 2009

Diário de um chimpanzé (VI)

Rotina

Nos últimos dias ele tem alternado sentimentos de resignação e esperança. Quase nunca é agredido pela falta de sentido que sempre o acompanhou. Ainda não é a sensação de conforto absoluto que um dia pretende trazer consigo, a sensação de que viver é natural, e que portanto deve encarar seu destino humano como um chimpanzé ou um lagarto encaram o seu. Depois que experimentou o pânico, nunca mais conseguiu viver com total naturalidade; o tempo todo tem de se esforçar para convencer a si próprio de que estar vivo é natural e devemos tocar nossas vidas de acordo com o que nos constitui.

Tem saído para procurar emprego como de hábito. Na maioria das vezes fica sabendo de oportunidades por meio de amigos e conhecidos. Às vezes consegue uma ou outra entrevista; às vezes essas entrevistas se desdobram em segundas entrevistas ou em testes diversos, os quais ele encara estoicamente, sempre cuidando para transmitir uma impressão melhor do que sua aparência e seu semblante melancólico acusam. Quer impressionar sem cair no ridículo, mas quase nunca consegue. Diz pequenas mentiras e acredita que nunca vai ser desmascarado em razão da inocuidade desse ato. Mais do que mentiras, ele comete omissões. É um sonegador. Se fosse bom nisso, até que sentiria algum orgulho, mas passa muito longe da competência nesse quesito.

Gosta de acordar cedo – talvez pela ausência de obrigatoriedade. Se tivesse de se levantar cedo todos os dias, talvez passasse a não gostar. Gosta de tomar café na rua, e o faria sempre se dispusesse de recursos para tanto. Quando não sai à procura de emprego, vai à biblioteca municipal da cidade vizinha, Lorena. Descobriu o lugar por acaso, numa incursão à cidade, durante a qual deixou alguns currículos na agência de empregos do estado local e, na viagem de ônibus, conheceu uma delegada de polícia de meia-idade que lhe desejou boa-sorte. A biblioteca municipal de Lorena possui um acervo variado que lhe apetece. Além do mais, dispõe de assinaturas de jornais e revistas que ele gosta de ler com alguma periodicidade. Os funcionários o tratam com bonomia; permitem que ele empreste três livros por vez, e nunca o punem – sequer o repreendem – quando devolve os livros fora do prazo. A única ressalva que faz à biblioteca diz respeito à limpeza do local. Os banheiros são imundos. Não dispõem de papel higiênico nem de sabão para a higiene das mãos. A bem da verdade, a culpa pela imundície dos banheiros é dos usuários da biblioteca, que decerto reproduzem no ambiente coletivo o que fazem em casa. Caso essa suposição esteja correta, os azulejos do banheiro dessa gente devem estar sarapintados de bosta humana.

Cães vadios circulam livremente pelo prédio. Duas devotas de são Francisco de Assis - a mulher de cabelos tingidos de ruivo que trabalha no guarda-volumes, e a magrinha de olhos fundos que cuida do acervo restrito ao público – dão liberdade para que os cachorros se sintam à vontade no local, podendo se abrigar debaixo de qualquer mesa ou cadeira sem ser incomodados por ninguém, como se fossem vacas ou macacos sagrados indianos. E ele teme pelo dia em que atolará o pé num amontoado de merda canina ao adentrar o prédio, ao caminhar por entre as estantes de livros disponíveis para empréstimo, ou ao se dirigir ao cantinho debaixo da rampa de acesso à sala de informática para cadeirantes, onde jaz o bebedouro enferrujado.

Desfila suas dúvidas e sua insegurança pelos corredores das estantes. Abre livros empoeirados, lê alguns parágrafos, sente a aspereza do papel velho ao folhear. Agacha-se a fim de apanhar um volume na prateleira mais baixa. Permanece alguns minutos assim, de cócoras, namorando o romance, o volume de memórias, de conto, de poesia... Enrubesce quando se descobre observado: ainda é imaturo demais para ignorar o julgamento alheio. Quando se põe de pé novamente, sente uma dor aguda no joelho esquerdo, doente desde a manhã em que caiu no meio de uma partida de futebol na quadra da escola e nunca mais se levantou. Continua lá, estirado na intermediária, sob os olhares preocupados e zombeteiros dos colegas; sob o sol forte de uma bela manhã de verão.


(Continua.)

2 comentários:

  1. Oi Bruno,
    Sua vida é parecida com a minha:filme sem música.
    Acho que a diferença entre nós é que você enxerga uma selva e eu enxergo um deserto.
    But we're fighting. Don't we?
    Bem, depois de uma quase-morte, duas internações, uma mudança de cidade (voltando a morar com a mãe)e várias medicações inapropriadas, estou de volta ao Éden abandonado. O estranho adão volta a pecar, publicando coisas desnecessárias e expondo-se a rídicula roda fatal da humanidade.
    Também espero que você esteja mais frequentemente no seu galho (continuo te acompanhando mudamente). Abraços fraternos do amigo impróprio.
    Ronaldo Trindade.

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  2. Caro Ronaldo,

    fico feliz em saber que o Estranho Adão voltará a pecar. Espero que o amigo continue a nos brindar com a mais fina e cáustica poesia, aquela que abre nossos olhos para o melhor da existência e não nos deixa perder a capacidade de indignação.

    Abraço grande!

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